terça-feira, 16 de março de 2010

CÃNONE E ANTICÂNONE (V)

Ferreira Gullar, em crônica publicada no dia 07 de março na Folha Ilustrada, escreve: “A grande arte inventa o real, subverte-o, enriquece-o, mesmo quando se trata de realistas como Corot ou Coubert. Digo que a arte existe porque a realidade é pouca, não nos basta. (...) A tendência realista foi consequência da substituição da visão religiosa pela concepção científica e do desenvolvimento industrial. (...) Os estetas e teóricos da arte, como os artistas, sempre entenderam que arte e realidade são coisas distintas, pelo fato mesmo de que a arte-pintura, sendo um modo de expressão, não tem a materialidade das coisas reais. Ao substituir as significações simbólicas pela exposição pura e simples dos fenômenos reais, abre-se mão da capacidade humana de criar um universo imaginário que, durante milênios, contribuiu para fazer de nós seres culturais, distintos dos demais seres vivos que, estes, sim, limitam-se à experiência do mundo material”. Estas observações foram feitas pelo poeta maranhense a respeito das artes plásticas, mas, a nosso ver, são pertinentes a todas as formas de expressão artística, especialmente a poesia, ainda que ela trabalhe com palavras e não com cores, linhas e volumes.

Uma conquista da modernidade, em oposição à tradição clássica, foi justamente a de afirmar a autonomia da arte em relação ao real; não se trata mais de retratar o mundo, e sim de criar um mundo com as palavras. O próprio poema é uma realidade autônoma, um pequeno universo, “com sua própria fauna e flora”, como dizia o poeta chileno Vicente Huidobro. O poema é concebido pela modernidade como uma estrutura em que as relações entre as palavras, os efeitos sonoros e visuais, a semântica, a invenção sintática e metafórica, enfim, a função poética (Jakobson) se afirma, deixando em segundo plano a mera apresentação de uma idéia de mundo.

É claro que em autores como Maiakovski, Brecht ou Carlos Drummond de Andrade (Rosa do Povo) há um sentido referencial crítico, de violenta contestação social, mas este sentido é integrado à composição, é inseparável do jogo formal que define a poesia como poesia, e a distingue de uma crônica, um artigo acadêmico ou um texto de política ou sociologia. Não é o conteúdo de um poema de Drummond que o torna válido, mas a maneira como ele se relaciona com a arquitetura verbal. Esta longa introdução quer apenas situar as referências teóricas utilizadas para a leitura comparativa de dois poetas brasileiros contemporâneos, que publicaram os seus primeiros livros na década de 1990: Fábio Weintraub e Antonio Risério.

No livro Literatura Brasileira Hoje (São Paulo: Publifolha, 2004), o crítico da Folha de S. Paulo Manuel da Costa Pinto afirma o seguinte sobre a poesia de Fábio Weintraub, a quem é dedicado todo um capítulo: “Os dois traços marcantes da poesia de Fábio Weintraub são a crítica da realidade social brasileira e a atitude de dar voz ao outro, com poemas que narram uma situação em que irrompem falas dos ‘personagens’. (...) Os dramas urbanos de Weintraub parecem extraídos de manchetes de jornal; seus poemas trazem o protesto da viúva no velório (...) ou o desespero do morador de rua”. Estes comentários fazem referência ao livro Novo Endereço, de Fábio Weintraub, que recebeu dois prêmios literários, o da Funalfa e o Casa de las Américas, e obteve resenhas em jornais diários, como a Folha de S. Paulo, e sites de literatura. O autor colaborou nas revistas CULT e Inimigo Rumor. Vamos agora ler um dos poemas do livro:


BARRABÁS

Vocês não podem velar
o corpo do meu marido
ao lado do desse aí
que a polícia acertou

Vocês me desculpem
imagino o sofrimento
perder um filho assim moço

Meu Cícero
morreu trabalhando
Um tiro pelas costas
às duas da manhã
Ao lado desse aí
o corpo dele não vai gelar

Não adianta insistir
ao lado de bandido
meu marido não fica

(Novo endereço. São Paulo: Nankin Editorial, 2002.)

O poema é construído como um monólogo em que uma personagem sem nome, a Viúva, faz a narrativa de um caso de violência urbana. O vocabulário é simples, mimetizando a possível fala de uma mulher de condição social desfavorecida. Não há estrutura métrica ou rimas; o poema é construído em versos livres, curtos e coloquiais, sem nenhum artifício de linguagem, como metáforas ou metonímias. O autor não busca uma construção rítmico-melódica, nem apresentar imagens verbais de qualquer tipo. É uma antipoesia de crítica social que funcionaria de modo mais eficaz, talvez, no espaço do teatro, ainda que falte ação dramática à cena, que é estática. Como texto literário, não tem força de impacto, inclusive do ponto de vista emocional, pela aproximação com o melodrama. Ele se justifica, ou quer se justificar, pela realidade que retrata nos bastidores da cena, pelo “conteúdo”, mas não se sustenta, ao nosso ver, como construção textual, pela ausência de uma arquitetura poética, enfim, de um universo semântico próprio. Como escreveu certa vez Ana Hatherly, a poesia não busca retratar o mundo, e sim “acrescentar mundos ao mundo”.

Já o poeta e antropólogo baiano Antonio Risério, em seu livro Brasibraseiro (São Paulo: Landy Editora, 2004. Prêmio Jabuti), escrito em parceria com Frederico Barbosa, faz um amplo painel da cultura brasileira, registrando desde a presença da tradição poética oral africana (Oriki p/ Oiá-Iansã, Obô Mejá) até o diálogo com a poesia arcadista de Claudio Manuel da Costa, ao mesmo tempo em que faz reflexões sobre o próprio conceito de nacionalidade e os conflitos sociais da realidade brasileira, mas sempre investindo na interação do sentido com a elaboração poética de cada texto, como nesta peça, que vamos ler agora:


STRASSENKINDER

crianças que miram espelhos
e giram as caras cansadas
onde narciso não é conselho
nem comboio acha a estrada

crianças de poucos pentelhos
de rubras roupas rasgadas
entre guinchos gosmas e relhos
orgasmos de putos no ralo

crianças de coxas vermelhas
no beco das bocas usadas
moeda e moenda dos grelos
nas fodas das doidas danadas

crianças que masturbam velhos
e chupam xotas grisalhas
lambendo o sangue dos medos
nos dedos grudando de gala

*

sob a navalha da ira
o sol se descola sagrado
que a vida por mais que me fira
não me verá conformado


O poema de Antonio Risério, ao contrário daquele de Fábio Weintraub, não imita a fala de um Outro, mas é dito em primeira pessoa: é o poeta que articula o discurso, com a sua própria dicção, sem fingir um timbre estranho ao seu. Podemos recordar aqui, novamente, das concepções de Jakobson, para quem, conforme diz Terry Eagleton, “A literatura transforma e intensifica a linguagem comum, afastando-se sistematicamente da fala cotidiana”, que estaria desgastada pelo uso ordinário. Por isso mesmo, Jakobson reivindica a “violência organizada contra a fala comum”, para que o texto poético tenha mais força de impacto. Eagleton acrescenta ainda: “À crítica caberia dissociar arte e mistério e preocupar-se com a maneira pela qual os textos literários funcionavam na prática: a literatura não era uma pseudo-religião, ou psicologia, ou sociologia, mas uma organização particular da linguagem” (in Teoria da Literatura, Uma Introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006).

O poema de Antonio Risério tem uma construção deliberadamente “artificial”: é construído em cinco quartetos, sem métrica fixa mas com uso de rimas; há o emprego visível de assonâncias e aliterações, de trocadilhos e metonímias, com imagens fragmentadas e concisas de alta expressividade, como closes cinematográficos, mas, ao mesmo tempo, a linguagem coloquial é incorporada a essa estrutura, com o recurso à gíria e ao palavrão, e desse choque entre a norma culta e a fala chula, o cerebral e o espontâneo, o eu que fala do mundo e o eu que cria um mundo, surge um texto poético muito mais violento, forte e eficaz, inclusive do ponto de vista do sentido, que não é oculto, mas explicitado (“que a vida por mais que me fira / não me verá conformado”). Não há conflito entre engenhosidade formal e sentido, mas sim a habilidade do poeta (ou a falta dela) para estabelecer uma unidade de efeito entre forma e fundo, de modo a causar impacto no leitor. Sem essa habilidade, a função poética se perde em mero registro de informações já bem conhecidas pela leitura dos jornais, sem acréscimo de informação nova.

9 comentários:

  1. Caros, todas os comentários com opiniões diferentes das minhas serão publicados aqui, sempre que forem baseados em argumentos e com o respeito necessário ao debate de idéias. O objetivo desta série, como já foi dito, é o de discutir os critérios de escolha da crítica literária, pela análise comparativa de textos. O que faz com que um poema seja considerado, hoje, como válido? O que significa que um projeto apresentado num concurso tem consistência e originalidade? Quais são os parâmetros para se avaliar isso? Os autores premiados e louvados pela mídia, hoje, são de fato os mais representativos da literatura brasileira? Com base em quê? A crítica jornalística reflete a qualidade e a variedade da poesia contemporânea, ou apenas reproduz um cânone de validade discutível? Enfim, está aberto o debate!

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  2. Caros, recebi o seguinte comentário de Celso Vegro, que enviou-me por e-mail, porque não conseguiu postar no blog:

    "Prezado Claudio Daniel
    O assunto é por demais empolgante. Creio que a aposta no vetor de se criar um mundo por meio das palavras é o apelo maior para a poesia contemporânea. Todavia, prescindir do subjetivismo dos julgamentos alheios é algo inerente de quem se arrisca a trazer a esse mundo suas modestas contribuições. a Meu ver, os referenciais para se julgar o que se encontra justo e o que não sempre são idiossincráticos à personalidade de cada um, e por isso um aspecto menos relevante. O objetivo do poeta é que todos leiam e produzam poemas independente da filiação literária na qual se sinta mais confortável. Pelo menos nisso é que me empenho."

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  3. Caro Celso, concordo inteiramente com você. O que tento discutir aqui, com base em argumentação crítica e teórica e análise estética, é a eficácia ou não de um poema, e, mais do que isso, os motivos de sua valorização pela crítica, que nem sempre se guiam apenas por aspectos literários. Claro que em toda tendência há bons e maus poetas, e que todas as tendências devem ser respeitadas. Mas os critérios de avaliação e
    valorização, sim, acho que precisam ser questionados e debatidos, bem como a hegemonia de uma única tendência e o banimento das demais. O abraço do

    CD

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  4. Anônimo17.3.10

    Claudio, há vários aspectos do seu texto que podem ser desenvolvidos, mas este é um blogue, então, talvez seja melhor apenas levantar algumas questões para refletirmos:

    1. O próprio Gullar, em sua poesia, utiliza-se frequentemente do prosaísmo, dos fragmentos cotidianos;
    2. Acho que a escassa crítica que ainda circula em grandes jornais e sites privilegia uma poesia que dialoga diretamente com os grandes nomes do alto modernismo (nem preciso escrever quem, né?). O desconforto do poeta diante da escalada desmedida do capitalismo, a desconfiança em relação à própria voz poética, a tentativa de dar voz aos excluídos são clichês críticos (eu também, às vezes, cometo) que mais atrapalham a leitura de uma obra, hoje, do que auxiliam na sua compreensão.
    3. Você começa a analisar o texto “Barrabás” (estrutura dramática de monólogo, transposta para a lírica como “voz de outro”; versos curtos, ausência de recursos “tradicionalmente poéticos; emprego de termos coloquiais...) apontando recursos de escrita que justamente apontam para um caminho possível da poesia contemporânea. Não dá para separar a construção formal do poema do que ele diz (como/o quê).
    4. Há alguns aspectos do como no poema, que me interessam: a negação (“não” aparece quatro vezes em um poema curto) que, por tão repetida, aponta para uma inocuidade (o poema figura, assim, uma fala fantasma – ninguém responde, talvez ninguém ouça); a indiferenciação (visualmente os versos se assemelham na disposição e no tamanho, o vocabulário é repetitivo, há apenas uma voz que, apesar de apontar para os outros - marido, ladrão, família do ladrão-, está isolada) que dificulta justamente a discriminação entre o trabalhador e o bandido, já que ambos pertencem a um mesmo estrato social; a oscilação que ocorre na segunda estrofe, quando a voz principal abandona a sua argumentação e expõe uma precariedade que – antes voltada apenas ao outro – a invade.
    5. Nesse sentido, o como está sintonizado com o quê, em “Barrabás”, de maneira diversa do que ocorre em “Strassenkinder”. Neste último, a sintonia se dá pelo contraste.
    6. Penso que o aspecto melodramático, que você aponta, poderia, sim, ser um problema...Talvez justamente por uma adesão lírica a uma outra voz, que aparta desse movimento a crítica, a ironia...
    7. Bom, já ficou muito grande o texto. Escrevo em branco, me calo.
    Andréa Catrópa

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  5. Andréa, agradeço pelo comentário, você é sempre bem-vinda aqui. Realmente, o Gullar condena o realismo nas artes visuais, embora o pratique na poesia, mas eu achei o comentário dele muito oportuno, e pode ser estendido às outras artes, inclusive a poesia. Acho ótimo haver diversidade de análises sobre a poesia contemporânea (e respeito tua argumentação), e é exatamente nessa tecla que eu estou batendo: pela pluralidade de análises, contra a unanimidade do pensamento único. Coloquei os dois poemas lado a lado porque ambos tratam da realidade social, de maneira diversa, como voce notou, o que permite discutir a eficácia dos procedimentos estéticos adotados por esses poetas (e a meu ver, é isso o que falta na crítica... não importa elogiar ou meter o pau, e sim avaliar os textos de modo consistente). Beso,

    Cld.

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  6. Ótima reflexão, Claudio! Concordo com você. Toda ‘poesia’ que mimetiza a realidade factual de maneira especular, ou seja, que não a transfigura (fazendo uso daquilo que Jakobson chamou de “função poética da linguagem”) pouco ou nada contribui para o enriquecimento da Literatura.

    Gostaria de expor algumas outras reflexões do próprio Gullar sobre as artes plásticas, mas que, como você próprio disse, também podem ser aplicadas à poesia:

    Falando acerca da pintura abstrata, Gullar nos diz o seguinte:

    “Quando a pintura elimina progressivamente os temas (religiosos, mitológicos, históricos, literários) e mais tarde a própria imagem das coisas e das pessoas, fazendo convergir as referências de sua linguagem para o interior dessa mesma linguagem, ela entra em crise: passa a duvidar da sua própria razão de ser” (Argumentação Contra a Morte da Arte, p. 56).
    Mais adiante, num ensaio intitulado “O que diz a obra de arte”, Gullar retoma a ideia concluindo que: “afirmar-se que a arte é o meio menos indicado para dizer alguma coisa implica uma definição da linguagem artística, segundo a qual esta linguagem é um universo fechado que se alimenta exclusivamente de si mesmo” (IDIBEM, p. 71).

    Citei Gullar para dizer que poesia contemporânea, muitas vezes, se aproxima perigosamente dessa espécie de pintura abstrata fechada em si mesma. Se por um lado mimetizar a realidade factual à maneira de um espelho é um grave equívoco, por outro acreditar que vivemos num mundo cuja realidade se restringe a um sistema de signos, por mais complexo que este seja, é igualmente equivocado (Edmund Hurssel o demonstrou com a sua fenomenologia).

    Muitos poetas contemporâneos mais parecem diluidores tardios daquela “estética do nonsense” de Edward Lear (que, à época dele, até fazia algum sentido), pois se comprazem em criar monstros verbais cujo único sentido é a completa ausência de sentidos. Mircea Eliade, no livro Mito e Realidade, interpreta, à luz da antropologia, tal estratégia dos artistas contemporâneos: “no fundo, a fascinação pela dificuldade, e mesmo pela incompreensibilidade das obras de arte, trai o desejo de descobrir um novo sentido, secreto, até então desconhecido do Mundo e da existência humana. Sonha-se em ser ‘iniciado’, em chegar a compreender o sentido oculto de todas essas destruições de linguagens artísticas, de todas essas experiências ‘originais’ que, à primeira vista, parecem nada mais ter em comum com a arte.(...) O que nos interessa aqui, entretanto, é que as elites encontram na ininteligibilidade das obras modernas, a possibilidade de uma gnose iniciatória. É um ‘novo mundo’ que está sendo reconstruído a partir das ruínas e de enigmas, um mundo quase privado, que se gostaria de manter para si mesmo e para alguns raros iniciados. Mas é tal o prestígio da dificuldade e da incompreensibilidade, que o ‘público’, por sua vez, é rapidamente conquistado e proclama sua total adesão às descobertas da elite” (apud SANT’ANNA, Desconstruir Duchamp, p. 27-28). A fascinação do público por boa parte da poesia contemporânea, portanto, podemos concluir, deve-se à fascinação por uma falaciosa aura enigmática, à fascinação pelo enigma vazio.

    É claro que muitos poetas contemporâneos produzem poemas herméticos de qualidade, mas o fazem porque escolheram se distanciar do que chamo de “estética do nonsense”, “estética” que se opõe completamente, aliás, à concepção de poesia formulada por Valéry, segundo a qual o poema deve fundar-se na permanente hesitação entre o som e o sentido. Para os “nonsenses”, vale única e exclusivamente o famoso aforismo de Lewis Carroll: “tome conta dos sons que o significado tomará conta de si próprio”.

    Gosto da sua poesia, Claudio, porque ela distancia-se da prosaica representação especular das coisas e não mergulha nesse nonsense de enigmas vazios, sendo uma poesia alicerçada naquilo que Borges chamou de “lógica da imaginação”.

    Abração,

    Bernardo,

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  7. Esse poema, Barrabás, é maravilhoso. Me remeteu ao WCW...

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  8. ... não vejo por que o paralelo com Williams... que aliava precisão verbal, objetividade, imagética rica, cortes elípticos e música das palavras... Weintraub dialoga mais com certos momentos prosaicos de Manuel Bandeira, querendo despoetizar a poesia e abdicar da metalinguagem em favor de um retrato social que considero bem ingênuo.

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  9. Anônimo21.3.10

    Claudio, não gostei do texto Barrabás, de Fábio Weintraub; achei muito simplista, muito pobrezinho, onde está a poesia?

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