quinta-feira, 30 de abril de 2015

POEMA DE CADERNOS BESTIAIS (volume II, inédito)




  


HINO À POLÍCIA

Toca o terror —
cabeças de arimãs

reverberam féretros
assanha-se histérica

turba de behemoths
damballas beherits

capacetes visores
escudos tonfas

vidro moído ferro
esturricado pneus

incendiados entre
balas de borracha

rasgando rasgando
vielas entrevértebras

fantoches toscos
fantoches-ferrabrás

com fuzis automáticos
de mira telescópica

escarnecidos espectros
em carros blindados

para a contra-insurgência
nas avenidas furiosas

de meu próprio país.

POEMA DE CADERNOS BESTIAIS (volume I)



 

















ANTIMÍDIA X

Quelle est ma langue?

Ionesco

GRUNHE repetindo-se repetindo-se rasura ou réplica de réptil fardos que são palavras farpas de um animal samsárico (repetindo-se repetindo-se) fanhos replicantes repousada em úmeros: caveira neanderthal cor de prata sobre fundo negro (ganchos guinchos repetindo-se) horror social belphagor iniquidade: todo um catálogo de demônios repetindo-se balam belial asmodeus astaroth bicos-de-papagaio encurvados lascas de madeira na boca repicadas repicantes sobre fundo negro letras rúnicas inscritas no crânio antiesfíngicas ruminando cólera astarté ruminando Deutschland über alles, / Über alles in der Weltbarão neoliberal bebe urina com os ratos na hora da gárgula na hora vermelha da gárgula na hora do maçarico quando garotos racistas de São Paulo ateiam fogo na mendiga refugos de rastilhos de rebotalhos neste açougue onde repartem carne humana Tíbias são dejetos olhos são dejetos orelhas são dejetos nesta terra de ninguém que a terra há de comer Caso esfiapasse essa pele caso esfiapasse se não fosse hidra se não fosse ira se não fosse asco se não fossem imponderáveis urros no arame da pobre diaba arpejo de pupila em seu desnudamento de planta em seu desnudamento de carne estirada em ganchos balam belial asmodeus astaroth todo um catálogo de demônios repetindo-se em guaches em guantes Tudo queimaela disse Lucidez nenhuma que os dissuadisse nesta terra de ninguém que a terra há de comer

2014

quarta-feira, 29 de abril de 2015

POEMA DE FIGURAS METÁLICAS




















PORQUE A HORA É VIOLENTA

Porque a hora é violenta e tudo esmaga, abrir cabeças
de serpente.
Há o verde sonoro
de metais;
há o roxo
da flor
cujo nome
ignoramos.
Dedos rugem
escura perplexidade;
arcos rebentam
bicos
de pássaro.
Sou anfíbio,
e calo
o que me apavora.
Onde viajar outros dias possíveis?
Como
extirpar
essa desolação?
Eis o inevitável
campo
de batalha;
eis a letra inverossímil, vermelho
decapita
amarelo.
Sinceramente,
confesso
meu pesar:
quando ponteiros corroem pulsos,
povoar
mandíbulas
para corvos.
A hora é violenta e o medo em escamas
arranha
a pele
da voz.
Explodir palavras-de-argila;
degolar
leões
de pedra
(ignotos);
mutilar
a escura epiderme,
em chuva
azul-
de-agonia.
Tudo
por um
nada
soando crânios e trompetes,
cortando (súbito)
o branco-
cinza
da manhã.
Sri Baghavan uvaca:
Yam hi na
vyathayanty ete
purusam
purusarsabha
sama-duhkha-sukham dhiram
so ‘mrtavaya
kalpate.


2002

POEMA DE A SOMBRA DO LEOPARDO

 












POROS

Um silêncio verde
— Paul Celan


O
verde,
sua pele
ácida. Tocar
os poros
do verde, florir
metálico. Ouvir
sua voz de asa
e sombra.
Olhos, faisões
de cegueira.
Jóias de irada
divindade.
Abelhas e lagostas
amam-se, odeiam-se,
tulipas caem
na goela
do tempo.
Tuas mãos tateiam
a nervura imprecisa
da cicatriz
e não há mar,
nem pão, nem página.
Alucino-te
ao mirar-me
no silêncio
de uma laranja
quadrada.
Aqui, nada mais viceja.
Lacraias afogam-me
em tua lágrima
e se fecha a porta
esquerda. Toda palavra
me fere com sua cor.
Quando cessa
o canto, calados,
ouvimo-nos
em um corte
azul.
1999

LETRA NEGRA (fragmento)



 













XXIX

esta é a maneira de sermos brutais,
com a aspereza
de quem caminha
pelas ruas,
mascando lascas.

não preciso dar explicações
com palavras de madeira,
porque sou impuro
e espontâneo
como a fera.

esta é minha sombra magra, confesso,
estes, os meus passos desordenados.

nenhuma estrela para definir o dramatismo da noite
ao longo da jornada,
nem os ramos
de uma árvore inclinada.

quem considere imprecisa a descrição,
que escreva o seu próprio
rascunho,
com a fúria
violeta
do escaravelho.

sem contar nove vezes
menos um eco,
sigo minha jornada bípede,
de energúmeno.

nada aqui faz sentido para os meus lábios
vociferantes;

e como não venero
deuses de esterco,
nem as clausuras
cíclicas da história,

sigo andando
com minhas omoplatas,
minhas axilas,
meu caralho,

minha testa
desenhada
com símbolos alquímicos,

e um poema
escrito para ninguém
nas linhas torcidas
de meus pulsos.

2009


quinta-feira, 23 de abril de 2015

ZUNÁI, REVISTA DE POESIA E DEBATES






  














www.zunai.com.br

Volume II, n. II, abril / 2015

Topografias nômades em Herberto Helder

A teoria estética de Hans Robert Jauss e a recepção das crônicas rosianas de guerra no século XX

Entrevista com Márcia Denser

Poemas de Antonio Risério, Claudio Daniel, Jorge Lúcio de Campos, Adriana Zapparoli, Luiz Ariston, Ricardo Portugal, Valério Oliveira, Alexandre Guarnieri, Filipe Marinheiro, Fabrício Clemente, Fernando Lopes, Lilian Aquino, Vivian de Moraes, W. B. Lemos,

Galeria: exposição virtual de Isadora Reimão, poemas visuais de Elson Fróes e Mário Alex Rosa

Traduções de Nicanor Parra, Stefan George, Paul Celan, Gottfried Benn, Edmond Jabès, Bertolt Brecht, Giuseppe Ungaretti, Anize Koltz, Uljana Wolf, Steffen Popp, Richard Anders, Mark Strand, Thomas Transtromer, Heiner Muller,

Prosa: Márcia Barbieri, Patrícia Rameiro, Isabel Mendes Ferreira, Ronie Von Rosa Martins

Opinião / Cadernos da Palestina: o cotidiano da ocupação em textos e imagens

Especial: Revisitando Lupe Cotrim (ensaio, poemas, entrevista a Carlos Drummond de Andrade)



Endereço eletrônico: www.zunai.com.br

Onde encontrar: no ciberespaço, essa “gran cualquierparte” (Vallejo)

Preço: Inefável. Inconcebível.

domingo, 19 de abril de 2015

POEMAS DE MAX MARTINS



















O ESTRANHO

Alheio – contudo tão próximo.
Em ti busco a dor que me corrige
na tarde
em um a um dos teus perigos
que reduzo em flor para meu uso
particular, estranho.
O teu grotesco
na impossibilidade de me deter
já me consola.
Ajusto as botas que me levam ímpar
calejado,
de gravata e triste.


1958

Aéreatarde naufragava
em chumbo
e a rubra ponta das folhas
se partia:
O outono
autônomo se despregava
das paredes.
Sobre a mesa
o Ás e a alma
embaralhos
jazem.


A NOVA FLOR

A nova flor se chama
-- no rio defunto – A ALMA
É uma flor de escamas,
pluma de espuma e borra.

A cor é baça
talvez de chumbo
ou de fumaça.

Quando de tarde
a bolha espoca
as larvas fervem
dentro do pólen
azedo e mole.

A COISA

Lá do olhar a cúpula
lunar que tece
esfera e gaze
a coisa insone
de suor e incenso
a arquejar dobrada
mais do que fruta
ou pétala ou luta
quase morrer
submersa nasce
em tempo e brasa
massa
saliva áspera: o nome.



O ANIMAL SORRI

O animal sorri. Seus dentes
são rochas
e ruínas
por onde a noite
sem memória desce
sua demência.

Teu corpo (ainda leve)
-- indelével sombra
Sobra
duma remota juventude
está de volta.
Ninguém te segue, e cega
a ave fere a tarde
te denuncia
às febres deste dia.
Rios se desesperam
pedras agonizam
se torturam
se procuram.

(Virás à jaula
Deste animal remanescente
Do fogo e do Dilúvio?)
Atraiçoado
oco
ex-
posto em praça pública
para os olhos
das crianças, dos fotógrafos?
EU-COBERTO-DE-PÊLOS: virás me ver
atrás das grades?)


OS CHAMADOS DO TIGRE ME ATRAVESSAM

Os chamados do tigre me atravessam. Ardem 
e medram em sangue sob escombros, plasmam 
a carne do meu fruto flamejando-o
Quem defende o meu corpo deste incêndio 
desta palavra corpo se afogando? 
E quem sou eu para guardar um nome de sua noite? Quem 
das grades dessa noite, a pele majestosa, tenso 
vibra seus punhos contra a neve?
                                                              Tu 
que não me dizes nem me sabes, tu 
que do topo dos topos da metáfora me alivias 
                                                                      vê:
Do fundo de meus olhos cego-deslumbrados 
obscuros laivos de ternura me procuram



NEGRO E NEGRO

Sem tom nem som
-- não tonsurada
Oculta de si própria
e de seu nome
cega


no seu ovo a letra-
aranha sonha
sabe:

Guarda o silêncio
antes do incêndio


SANGRADO DE TI

                            À minha mãe
Teu, meu corpo
sangrado de ti
Osso doloroso
Aureolado de ti

Nos confins de mim
tua sede ressoa infinita
se o nome nos cala faminto:

Eu, rico de sombras desertas
Tu, coberta de sombras sonâmbulas.


PEDRA DE MÚSICA

Os sons da água
nas bocas da pedra
Gozos da água
nos dentros da pedra.


VELUDO DE SOMBRA

O amor cresceu para dentro.
Uma noite cobre o coração.
Teu veludo de sombra.


AO LUAR

Um ramo de loucura.


ELA,

a rosa de Celan
e de ninguém             Estrela
tumular de Trakl        Irmã
azul do fogo tremula
de sigilos
signos

solidão 

terça-feira, 14 de abril de 2015

O OVO DA SERPENTE

O crescimento do ódio, da intolerância, do racismo, da homofobia e de outros sintomas da paranoia coletiva que ameaça a democracia brasileira, em minha opinião, tem várias causas: 1) o enfraquecimento da Teologia da Libertação durante os papados de John-Paul II e do Fuhrer Ratzinger, que afastaram a Igreja Católica da população mais pobre e abriram o caminho para as seitas evangélicas caça-níqueis; 2) a política de comunicação dos governos Lula e Dilma, que não implementaram a regulamentação da mídia nem criaram jornais, emissoras de rádio e televisão em contraposição ao discurso único da mídia golpista; 3) a ausência de ações permanentes dos partidos de esquerda -- em especial o PT -- para mobilização e politização da sociedade, ao longo dos últimos 12 anos. Não basta investir no crescimento do consumo da classe trabalhadora sem educá-la politicamente; 4) um sistema educacional falido, especialmente no ensino fundamental e no médio -- de responsabilidade dos governos estaduais e municipais. Se quisermos uma revolução social no país, é urgente começarmos uma verdadeira Revolução Cultural.

A THING OF BEAUTY IS A JOY FOREVER


domingo, 12 de abril de 2015

CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS (IV)








Aos 28 anos de idade, assisti a mudanças políticas que criaram uma nova situação no Brasil e no campo internacional. Nas eleições de 1989, a candidatura de Lula a presidente da república pela Frente Brasil Popular (PT-PCdoB-PSB-PCB), com um programa abertamente de esquerda, é derrotada nas urnas pelo candidato da direita, Fernando Collor de Mello, após intensa campanha midiática que culpava o PT pelo sequestro do empresário Abílio Diniz. A Rede Goebbels editou o debate entre Lula e Collor, para favorecer este último, e todos os jornais diários alinharam-se explicitamente em favor do candidato dos ricos. Foi um grande revés para os movimentos sociais, agravado pela derrota dos sandinistas na Nicarágua (após dez anos de bloqueio econômico e intervenção militar indireta dos Estados Unidos, que apoiavam os contrarrevolucionários), pela queda do Muro de Berlim e posterior desaparecimento do campo socialista na Europa Oriental. Esta derrota histórica colocou a esquerda numa situação de defensiva estratégica, que permanece até os dias de hoje (apesar da vitória de candidatos progressistas na América Latina e da formação dos BRICs: o imperialismo ainda mantém a supremacia militar, promove golpes de estado, intervenções armadas, impõe sanções contra a Rússia e trava uma luta discreta contra a China).

Em 1990, fui demitido, juntamente com toda a equipe de redação, da empresa onde trabalhava – a Editora Universo, que fazia parte do Grupo Abril, e com a indenização resolvi sair da casa de meus pais e morar sozinho, em um apartamento no bairro do Bexiga. Viajei até o Espírito Santo, onde passei uma semana no mosteiro zen-budista em Morro da Vargem, onde pratiquei meditação e estudei haicai. De volta a São Paulo, convencido de que não tinha vocação para ser monge, fui trabalhar, como revisor free-lancer, na VEJA (!!!) e no antigo jornal Diário Popular, onde conheci Regina, com quem casei poucos meses depois, e que foi minha companheira por duas décadas.  Nessa época, praticava Tai Chi Chuan, fazia terapia lacaniana e dediquei-me à leitura intensa de poetas que falavam mais à minha sensibilidade e inclinação estética: João Cabral de Melo Neto, Haroldo de Campos, Rimbaud, Mallarmé, Blake, Bashô, Pound, Cummings, Maiakovski, Khlébnikov. Estudava também várias filosofias místicas do Oriente – além do zen-budismo, o vedanta indiano, o taoísmo, o sufismo.

O resultado desse caldo de desencantamento político, mudanças na vida pessoal, luta pela sobrevivência, leituras e estudo de poetas e místicos foi o meu primeiro livro de poesia, Sutra, em 1992, que custeei por conta própria. O livro passou despercebido, não recebeu nenhuma resenha ou nota nos jornais, mas foi bem recebido por alguns poetas, como José Paulo Paes, Claudio Willer, Augusto de Campos. Relendo este livro hoje, não me reconheço nos temas, mas na linguagem: acredito que toda a minha poesia posterior seja consequência das experiências com a palavra que realizei nesse primeiro caderno de estudos poéticos.

O meu desencanto com a política foi longo, motivado, possivelmente, pela ausência de uma interpretação marxista aprofundada, naquela época, sobre o que estava acontecendo no mundo: os trotsquistas saudavam o fim da URSS como sendo a tão propalada “revolução política” defendida pela IV Internacional, que destruiria a “burocracia stalinista” para fazer avançar a “revolução proletária mundial”, bobagem ideológica que logo revelou ser o que realmente era: verniz “ultra-esquerdista” para encobrir o compromisso de tais organizações com a reação e com o imperialismo (vale a pena recordar o recente apoio de Luciana Genro ao golpe de estado pró-nazista na Ucrânia, com as mesmas palavras e argumentos com que os trotsquistas saudaram o fim do campo socialista na Europa Oriental). Outros setores, como boa parte do antigo PCB, então liderado por Roberto Freire, resolveram adotar o discurso ideológico do “fim da história”, aceitaram a hegemonia do neoliberalismo e da democracia burguesa e mudaram o nome do partido para PPS, hoje fiel escudeiro do PSDB no Congresso Nacional. O PT saiu enfraquecido e amargou divisões e derrotas até a vitória de Lula, em 2002, que inaugurou um novo ciclo político no país, que trouxe diversas conquistas importantes para os trabalhadores, mas com desdobramentos ainda incertos.

No período entre 1990-2007, privilegiei a vida familiar – meu filho, Iúri, nasceu em 2000 –, a atividade profissional e o trabalho com a poesia (que comentarei em outra confissão), afastado de qualquer atividade militante. Foi um período de grandes dúvidas, incertezas e confusão pessoal, que seria depois superado por uma reconciliação com os meus ideais de juventude e o posterior ingresso no Partido Comunista do Brasil, motivo de imenso orgulho para mim.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

VENCER O RETROCESSO!












O Congresso Nacional, sob o comando de Renan Calheiros e Eduardo Cunha, ambos do PMDB, apresenta um projeto político claro: realizar um governo paralelo, em oposição à presidenta da república, e impor uma pauta conservadora: flexibilização das leis trabalhistas (a lei relativa à terceirização é apenas o começo), redução dos direitos sociais -- maioridade penal aos 16 anos, revisão da lei sobre o aborto para a sua total proibição, aprovação de projetos homofóbicos (como a proposta de Eduardo Cunha de um "Dia de Orgulho Hétero"), revisão da lei partilha para a exploração do pré-sal, entre outras medidas antinacionais e antipopulares. Bloco conservador mantém Dilma na posição de refém, com a ameaça de votação da proposta de impeachment. Agora, a guerra está clara: cabe aos movimentos sociais, centrais sindicais, entidades estudantis, de mulheres, negros e LGTBs organizarem uma grande greve geral no país e mobilização de massas permanente para pressionarmos o Congresso Nacional. É preciso mudarmos a correlação de forças no país, para impedirmos o maior retrocesso político da história do Brasil desde o golpe de 1964.

terça-feira, 7 de abril de 2015

CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS (III)



Cometi a insensatez de ingressar no curso de Jornalismo, na remota década de 1980, por acreditar ingenuamente, naquela época, que o jornalismo era uma trincheira necessária para a “batalha das ideias” e para a democratização da sociedade. A decisão foi tomada num tempo em que havia pluralidade ideológica nos jornais: a FALHA de São Paulo, por exemplo, publicava artigos de Luiz Carlos Prestes, Florestan Fernandes, Marilena Chauí, ao lado de “pérolas” de Plínio Correia de Oliveira – guru da TFP --, Jorge Boaventura e outros próceres do fascismo caboclo. Havia reportagens investigativas sérias, como as de Ricardo Kotscho e Clóvis Rossi (naquela época, um ser pensante melhor do que é hoje). Havia correspondentes internacionais nas principais capitais do mundo e bons suplementos de cultura, tanto na FALHA quanto no ESGOTÃO. A partir de 1983-4, quando me formei, porém, as coisas começaram a mudar: os grandes jornais diários informatizaram as redações, demitiram os revisores (o que explica o péssimo português da mídia impressa), demitiram gradualmente os velhos jornalistas e correspondentes internacionais, passando a publicar, exclusivamente, press releases das agências de notícias norte-americanas. Os cadernos de cultura foram sendo fechados, um a um, e os cadernos de “variedades” passaram a dar prioridade ao mundo do entretenimento e da “literatura de mercado”. O pluralismo ideológico desapareceu após o fim da ditadura: os jornais tiraram a máscara de “defensores da liberdade e da democracia” e assumiram o discurso único, regido pelos valores do neoliberalismo, que perdura até os dias atuais.

O que fazer, com o diploma de jornalista debaixo do braço e a necessidade de ingressar no mercado de trabalho? Meu primeiro posto profissional foi na antiga Editora Universo (uma empresa do Grupo Abril, responsável pela edição da versão brasileira da Enciclopédia Larousse). Havia um clima bastante descontraído e irreverente na redação, flexibilidade de horários e pouca pressão da diretoria, ao contrário do que acontece hoje. Como redator da enciclopédia, fiz algumas traquinagens: criei um verbete para Ivan Iakovlev Templiakov, suposto matemático, filósofo, poeta e astrofísico soviético, autor da teoria da biocinética estelar, que faleceu aos 101 anos em Miami, nos braços de sua amante, Dorothy Grace, de 18 aninhos. Construí o verbete com tal secura e precisão de informações que ele permaneceu em todas as futuras edições da enciclopédia, gerando inclusive artigos, livros e dossiês sobre tão proeminente sábio do século XX (os autores de tais trabalhos, evidentemente, conheciam a farsa). O que escrevi como brincadeira, de certo modo, reflete minha opinião sobre a mídia: não importa a “verdade” ou “mentira” de um fato, se é noticiado, passa a ser considerado, pela maioria das pessoas, como “realidade”. Aprendi, por experiência própria, que o jornalismo é exatamente isso, a produção ideológica de uma suposta “realidade”, com o objetivo de influenciar a sociedade, de acordo com interesses específicos (em meu caso, o da sátira).

Em 1988, a CUT convocou uma greve geral contra a política recessiva de Sarney. Fui de mesa em mesa, convoquei meus colegas para uma assembléia, defendi a proposta da paralisação e ela foi apoiada por imensa maioria. Resultado: tive a honra de organizar a única greve em uma das empresas do Grupo Abril naquele período. No ano seguinte, criamos na redação um comitê informal de apoio à candidatura de Lula, pela Frente Brasil Popular (PT-PCdoB-PCB-PSB), fato que hoje seria impossível em qualquer redação da grande mídia. Organizamos bocas-de-urna, distribuímos panfletos e, sobretudo, convencíamos os colegas a votarem em Lula. Nossa alegria terminou com a vitória discutível de Fernando Collor de Mello nas eleições presidenciais (a partir do boato de que o empresário Abílio Diniz teria sido sequestrado pelo PT,  além da edição pela Rede Goebbles do debate entre Lula e Collor, para favorecer este último, entre muitas outras ações da mídia golpista, no sentido de fabricar uma realidade que prejudicasse a vitória de Lula). Fomos demitidos, todos nós, em 1990, após a conclusão dos trabalhos da Enciclopédia, e o que aconteceu depois comentarei em outro capítulo desta emocionante novela. 

CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS (II)



Minha primeira namorada fumava maconha, ouvia rock pesado, bebia cachaça com limão, conversava com bêbados e prostitutas, gostava de revólveres, lenços de seda indiana, livros de Jung. Em cada encontro, ela fazia algo inusitado. Uma de suas transgressões favoritas era jantar em restaurantes caros e sair sem pagar a conta. Outro passatempo predileto era o de roubar livros. Eu era um rapaz tímido, bem-comportado, ficava assustado com as suas traquinagens – como disparar uma bala no meio da rua, de madrugada – e fascinado. Após dois anos de relacionamento, ela se apaixonou por um estudante de medicina – muito, muito, muito mais careta do que eu – e fiquei sem ter notícias dela por duas décadas. Imaginava coisas terríveis: que ela tinha sido morta pelo marido, ou cometido suicídio (seu espírito de autodestruição era considerável). Encontrei-a novamente, por acaso, há cerca de dois anos: continuava linda, apesar de contar 50 anos e das duas gestações. Permanecia casada com o mesmo sujeito, hoje um bem-sucedido clínico, gordo, careca e rico. Trocamos mensagens românticas, marcamos um encontro, para recordarmos os velhos tempos (ela estava insatisfeita com o casamento). Antes do grande dia, porém, leio suas postagens: um imenso festival de preconceitos de toda ordem, com os inevitáveis “Fora Dilma!” “abaixo o bolsa-miséria”, “vai pra Cuba”, “fora o Foro de São Paulo”. Desmarquei o encontro no mesmo instante, bloqueei a criatura e espero nunca mais revê-la. Realmente: aquela garota que conheci na juventude tinha morrido.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS














Meu pai, Orlando, era um técnico eletrônico com segundo grau incompleto, leitor de Shakespeare e Homero, que trabalhou a vida toda em fábricas de caldeiras e equipamentos eletrônicos. Minha mãe, Lazara, era secretária nas Indústrias Reunidas F. Matarazzo. Cursei o ensino fundamental e o médio num colégio particular, adventista, no bairro de Moema – minha mãe conseguiu uma bolsa de estudos de quase 100% para mim –, frequentado por filhos da elite paulistana. Ela acreditava que, em tal instituição, eu receberia uma boa formação educacional. As lembranças que eu tenho das aulas são péssimas: ensino superficial, com método pedagógico defasado, voltado para o “mercado” – por minha sorte, tive formação autodidata, devorando livros de história, literatura, filosofia, política. Se pouco aprendi com os professores, muito aprendi com meus colegas, filhos da mais ilustre burguesia paulistana: aprendi o que era preconceito de classe, de etnia, de gênero, de orientação sexual e até estética: obesos são discriminados? Magros também. Fui alvo de bullyng por anos, mas nunca fui adepto da resistência pacífica, e espanquei sem dó vários filhinhos de papai. Aos 16 anos, depois de conviver tanto tempo com a doutrinação religiosa adventista (meus pais, aliás, eram católicos) e todo o discurso ideológico de meus colegas – admiradores confessos da ditadura –, passei a declarar-me ateu e marxista-leninista revolucionário, do que tenho muito orgulho até os dias de hoje.

POEMAS DE MÁRIO FAUSTINO












ROMANCE

Para as Festas da Agonia
Vi-te chegar, como havia
Sonhando já que chegasses:
Vinha teu vulto tão belo
Em teu cavalo amarelo,
Anjo meu, que, se me amasses,
Em teu cavalo eu partira
Sem saudade, pena, ou ira;
Teu cavalo, que amarraras
Ao tronco de minha glória
E pastava-me a memória
Feno de ouro, gramas raras.
Era tão cálido o peito
Angélico, onde meu leito
Me deixaste então fazer,
Que pude esquecer a cor
Dos olhos da Vida e a dor
Que o Sono vinha trazer.
Tão celeste foi a Festa,
Tão fino o Anjo, e a Besta
Onde montei tão serena,
Que posso, Damas, dizer-vos
E a vós, Senhores, tão servos
De outra Festa mais terrena
Não morri de mala sorte,
Morri de amor pela Morte.


SOLILÓQUIO

- Tudo o que importa é ser maravilhoso.

A maravilha: gesto de inocência.
E do aceno o milagre a renascença
de deslumbrados olhos infantil espaço
e primavera – o homem volta ao homem;
o inefável gera enfim o mal sublime
no coração deserto; e da terna doença
a rosa azul desponta e levanto-me rei.
- Eu mesmo sou o encantador do mundo!
Seres e estrelas brotam de meus lábios…
e morro deste belo sofrimento
de ser maravilhoso!

– Ah, quem pudesse
gritar à noite e ao tempo essas palavras
e partir pelo vento semeando versos
e terminando a criação da terra…


VIDA TODA LINGUAGEM

Vida toda linguagem,
frase perfeita sempre, talvez verso,
geralmente sem qualquer adjetivo,
coluna sem ornamento, geralmente partida.
Vida toda linguagem
há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome
aqui, ali, assegurando a perfeição
eterna do período, talvez verso,
talvez interjetivo, verso, verso.
Vida toda linguagem,
feto sugando em língua compassiva
o sangue que criança espalhará – oh metáfora ativa!
leite jorrado em fonte adolescente,
sêmen de homens maduros, verbo, verbo.
Vida toda linguagem,
bem o conhecem velhos que repetem,
contra negras janelas, cintilantes imagens
que lhes estrelam turvas trajetórias
Vida toda linguagem –
como todos sabemos
conjugar esses verbos, nomear
esses nomes:
amar, fazer, destruir,
homem, mulher e besta, diabo e anjo
e deus talvez, e nada.
Vida toda linguagem,
vida sempre perfeita,
imperfeitos somente os vocábulos mortos
com que um homem jovem, nos terraços do inverno,
/ contra a chuva,
tenta fazê-la eterna – como se lhe faltasse
outra, imortal sintaxe
à vida que é perfeita
língua
eterna.

BALADA
(Em memória de uma poeta suicida)



Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmos sangrento e a alma pura.
Porém, não se dobrou perante o fato
Da vitória do caos sobre a vontade
Augusta de ordenar a criatura
Ao menos: luz ao sul da tempestade.
Gladiador defunto mais intacto
(Tanta violência, mas tanta ternura),

Jogou-se contra um mar de sofrimentos
Não para pôr-lhes fim, Hamlet, e sim
Para afirma-se além de seus tormentos
De monstros cegos contra um só delfim,
Frágil porém vidente, morto ao som
De vagas de verdade e de loucura.
Bateu-se delicado e fino, com
Tanta violência, mas tanta ternura!

Cruel foi teu triunfo, torpe mar.
Celebrara-te tanto, te adorava
De fundo atroz à superfície, altar
De seus deuses solares - tanto amava
Teu dorso cavalgado de tortura!
Com que fervor enfim te penetrou
No mergulho fatal com que mostrou
Tanta violência, mas tanta ternura!

Envoi

Senhor, que perdão tem o meu amigo
Por tão clara aventura, mas tão dura?
Não está mais comigo. Nem conTigo.
Tanta violência. Mas tanta ternura.

SINTO QUE O MÊS PRESENTE ME ASSASSINA

Sinto que o mês presente me assassina,
As aves atuais nasceram mudas
E o tempo na verdade tem domínio
Sobre homens nus ao sul de luas curvas.
Sinto que o mês presente me assassina,
Corro despido atrás de um cristo preso,
Cavalheiro gentil que me abomina
E atrai-me ao despudor da luz esquerda
Ao beco de agonia onde me espreita
A morte espacial que me ilumina.
Sinto que o mês presente me assassina
E o temporal ladrão rouba-me as fêmeas
De apóstolos marujos que me arrastam
Ao longo da corrente onde blasfemas
Gaivotas provam peixes de milagre.
Sinto que o mês presente me assassina,
Há luto nas rosáceas desta aurora,
Há sinos de ironia em cada hora
(Na libra escorpiões pesam-me a sina)
Há panos de imprimir a dura face
À força de suor, de sangue e chaga.
Sinto que o mês presente me assassina,
Os derradeiros astros nascem tortos
E o tempo na verdade tem domínio
Sobre o morto que enterra os próprios mortos
O tempo na verdade tem domínio,
Amém, amém vos digo, tem domínio
E ri do que desfere verbos, dardos
De falso eterno que retornam para
Assassinar-nos num mês assassino.

(Do livro O Homem e sua Hora e Outros Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002)

domingo, 5 de abril de 2015

RETRATO DO ARTISTA













Confiram meu artigo sobre a poesia de Horácio Costa na edição de abril da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA. Em maio, será a vez de Antonio Risério, e em junho, de Duda Machado.

BREVE REFLEXÃO SOBRE A DEMOCRACIA BRASILEIRA












A ditadura militar caiu em 1985, pela mobilização de centenas de milhares de pessoas que foram às ruas por eleições diretas já, no maior movimento popular de nossa história. Apesar da pressão das ruas, a mudança de regime aconteceu via negociação entre as elites, que conseguiram eleger, por via indireta, Tancredo Neves (PMDB) e o seu vice, José Sarney (PFL, atual DEM), dando início à chamada "Nova República". Com a morte de Tancredo, pouco tempo após assumir a presidência da república, Sarney assume o cargo no Palácio do Planalto e inicia algumas ações de democratização do estado: convoca uma Assembleia Nacional Constituinte, revoga a maioria das leis de exceção, como a lei de censura (a Lei de Segurança Nacional permanece até os dias de hoje), legaliza os Partidos Comunistas. O antigo Código Civil, que considerava a mulher um "ser relativamente incapaz" (ao lado das crianças, dos índios e dos loucos) tem o seu conteúdo revisado.

O processo de democratização, porém, é acompanhado de corrupção intensa, inflação elevada, desemprego, recessão. Sarney termina o mandato com elevada porcentagem de descontentamento popular e é sucedido por Fernando Collor de Mello, em 1989, numa eleição em que a mídia -- especialmente a Rede Goebbels -- colaborou e muito para a derrota de Lula, atribuindo ao PT o sequestro do empresário Abílio Diniz e apresentando na televisão uma versão editada do debate entre Lula e Collor, para favorecer este último. Collor não avança um milímetro na democratização do estado iniciada por Sarney, confisca a poupança de milhões de brasileiros e inicia a política neoliberal que teria continuidade na gestão de Itamar Franco (vice de Collor, que assumiu a presidência após o impeachment do titular do cargo) e nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB): privatização de empresas estatais, aplicação de medidas econômicas recessivas, arrocho salarial, submissão ao monitoramento de nossa economia pelo FMI (que já acontecia nos governos militares).

A vitória de Lula nas eleições presidenciais em 2002 iniciou uma nova fase em nossa história política, marcada por profundas transformações sociais: ao longo de doze anos, nas duas gestões de Lula e no primeiro mandato de Dilma, mais de 30 milhões de brasileiros saíram da situação de miséria e 40 milhões ingressaram na classe média. Os programas sociais implementados pelo governo federal tiraram o Brasil do mapa da fome, garantindo a segurança alimentar à população mais carente, ampliaram o acesso ao ensino técnico e à educação superior, com a construção de mais de 400 escolas técnicas, 18 universidades e a adoção de programas como o ProUni e o FIES. Outros programas federais, como o Minha Casa Minha Vida, Luz para Todos, o crédito do BNDS para a agricultura familiar e os microempresários, entre outras ações, elevaram o padrão de vida das classes populares. O Brasil pagou a sua dívida com o FMI e deixou de ter sua economia monitorada por essa instituição, manteve a estabilidade da moeda implementada por Itamar Franco – o Plano Real – e conseguiu gerar 22 milhões de empregos no período.

A política exterior brasileira, pela primeira vez em nossa história recente, afastou-se da agenda norte-americana: o Brasil reconheceu o Estado da Palestina, condenou as agressões contra a Líbia e a Síria, fortaleceu as relações econômicas e políticas com a América Latina, participando de instituições de integração e cooperação regional como o Mercosul, a Unasul e a Celac (que excluem a participação dos Estados Unidos), além de integrar os BRICs. Com a descoberta das jazidas de pré-sal, Dilma consegue aprovar no Congresso Nacional que 75% dos royalties (além de 10% do PIB) sejam aplicados na educação e 25% na saúde, atendendo às reivindicações das manifestações populares de julho de 2013. O governo federal, nos governos Lula e Dilma, deixou de ser um carrasco dos trabalhadores e dos estudantes, dialogando constantemente com as centrais sindicais – legalizadas durante o governo de Lula  –, os movimentos de trabalhadores rurais sem terra, as entidades estudantis e populares, criou políticas de cotas para afrodescendentes e de defesa dos direitos das mulheres. Apesar de todos estes avanços, porém, a democratização do estado e da sociedade não se aprofundou – os Conselhos Populares defendidos pelo governo federal foram vetados pelo Congresso Nacional, a Reforma Política e a Reforma Tributária, com a taxação das grandes fortunas, não saíram do papel (a Reforma do Judiciário sequer foi cogitada) e o projeto para o fim do financiamento empresarial das campanhas políticas foi engavetado por Gilmar Mendes.

A eleição de um Congresso Nacional extremamente conservador, com bancadas que defendem interesses de empreiteiras, bancos privados, grandes proprietários de terras, empresas de comunicação, seitas evangélicas e outros setores reacionários ameaça impor uma agenda de retrocesso ao país: redução da maioridade penal, revisão da lei relativa ao aborto, para a sua total proibição, restrições aos direitos de mulheres e homossexuais, fim do regime de partilha para a exploração do pré-sal, extinção do programa Mais Médicos – responsável pelo atendimento médico a uma população estimada em 50 milhões de pessoas – entre outros projetos esdrúxulos, incluindo o próprio impeachment da presidenta Dilma. A situação política atual é de crise, confronto, acirramento da luta de classes, estimulados pela mídia, e ainda não é possível prever o seu desfecho, para o qual será de importância fundamental a atuação dos movimentos sociais nas ruas, respondendo à burguesia e pressionando o Congresso Nacional.

Quais foram os grandes erros cometidos pelo PT ao longo destes 12 anos? 1) O mais grave de todos: não ter politizado a sociedade. Não basta reduzir a miséria e elevar o grau de consumo dos cidadãos sem um investimento correspondente na elevação de sua consciência política, o que abriu brechas para o crescimento de evangélicos e da extrema direita. 2) não ter pressionado o Congresso Nacional, já nos mandatos de Lula, pela aprovação de uma lei de regulamentação dos veículos de comunicação; 3) não ter investido na criação de emissoras públicas de rádio, televisão, jornais e revistas com conteúdo diferente do discurso único da mídia golpista; 4) não ter esclarecido a população, nas campanhas políticas das últimas quatro eleições presidenciais, sobre a necessidade de eleger grandes bancadas de deputados e senadores progressistas, para a continuidade dos avanços sociais; 5) não ter enfrentado, politicamente, a questão do suposto “mensalão”, permitindo que a mídia criminalizasse o partido – situação que perdura até hoje; 6) ter realizado concessões excessivas ao PMDB, recebendo em troca a infidelidade desse partido no Congresso Nacional; 7) não ter chamado os movimentos sociais em apoio ao governo federal ANTES que a crise política chegasse ao atual ponto de ebulição.

É possível reverter esse quadro? Sim, é possível, mas o PT só poderá dar continuidade ao projeto democrático-popular iniciado por Lula se tiver a coragem de aprofundar, por todos os meios, a democratização do estado e da sociedade brasileira. A outra alternativa é a do retrocesso e do caos.

sábado, 4 de abril de 2015

POEMAS DE OSWALD DE ANDRADE



CÂNTICO DOS CÂNTICOS PARA FLAUTA E VIOLÃO

 oferta

Saibam quantos este meu verso virem
Que te amo
Do amor maior
Que possível for


canção e calendário

Sol de montanha
Sol esquivo de montanha
Felicidade
Teu nome é
Maria Antonieta d' Alkmin
No fundo do poço
No cimo do monte
No poço sem fundo
Na ponte quebrada
No rego da fonte
Na ponta da lança
No monte profundo
Nevada
Entre os crimes contra mim
Maria Antonieta d' Alkmin

Felicidade forjada nas trevas
Entre os crimes contra mim
Sol de montanha
Maria Antonieta d'Alkmin

Não quero mais as moreninhas de Macedo
Não quero mais as namoradas
Do senhor poeta
Alberto d'Oliveira
Quero você
Não quero mais
Crucificadas em meus cabelos
Quero você

Não quero mais
A inglesa Elena
Não quero mais
A irmã da Nena
Não quero mais
A bela Elena
Anabela
Ana Bolena
Quero você

Toma conta do céu
Toma conta da terra
Toma conta do mar
Toma conta de mim
Maria Antonieta d'Alkmin

E se ele vier
Defenderei
E se ela vier
Defenderei
E se eles vierem
Defenderei
E se elas vierem todas
Numa guilanda de flechas
Defenderei
Defenderei
Defenderei

Cais de minha vida
Partida sete vezes
Cais de minha vida quebrada
Nas prisões
Suada nas ruas
Modelada
Na aurora indecisa dos hospitais

Bonançosa bonança.


convite

Escuta este verso
Qu'eu fiz pra você
Pra que todos saibam
Qu'eu quero você


imemorial

Gesto de pudor de minha mãe
Estrela de abas abertas
Não sei quando começaste em mim
Em que idade
Em que eternidade
Em que revolução solar
Do claustro materno
Eu te trazia no colo
Maria Antonieta d'Alkmin


Te levei solitário
Nos ergástulos vigilantes da ordem intraduzível
Nos trens de subúrbio
Nas casas alugadas
Nos quartos pobres
E nas fugas


Cais da minha vida errada
Certeza do corsário
Porto esperado
Coral caído
Do oceano
Nas mãos vazias 
Das plantas fumegantes


Mulher vinda da China
Para mim
Vestida de suplícios
Nos duros dorsos da amargura
Para mim
Maria Antonieta d'Alkmin


Teus gestos 
Saíram dos borralhos incompreendidos
Que tua boca ansiosa
De criança repetia
Sem saber
Teus passos subiam
Das barrocas desesperadas 
Do desamor
Trazias nas mãos
Alguns livros de estudante
E os olhos finais de minha mãe


alerta

Lá vem o lança-chamas
Pega a garrafa de gasolina
Atira
Eles querem matar todo amor
Corromper o pólo
Estancar a sede que eu tenho doutro ser
Vem do flanco, de lado
Por cima, por trás
Atira
Atira
Resiste
Defende
De pé
De pé
De pé
O futuro será de toda a humanidade.


fabulário familiar

Se eu perdesse a vida
No mar
Não podia hoje
T'a ofertar
Os nevoeiros, as forjas, os Baependis


acalanto

Acuado pelos moços de forcado
Flibusteiro
Te descobri

Muitas vezes pensei que a felicidade sentasse à minha mesa
Que me fosse dada no locutório dos confessionários
Na hipnose das bestas-feras
No salto mortal das rodas-gigantes
Ela vinha intacta, silenciosa
Nas bandas de música
Que te anunciavam para mim
Maria Antonieta d'Alkmin

Quando a luta sangrava
Nas feridas que sangrei
C'o alfinete na cabeça te deixei
Adormecida
No bosque
T'embalei
Agora te acordei 


relógio

As coisas são
As coisas vêm
As coisas vão
As coisas
Vão e vêm
Não em vão
As horas
Vão e vêm
Não em vão


compromisso

Comprarei
O pincel
Do Douanier
Pra te pintar
Levo
Pro nosso lar
O piano periquito
E o Reader's Digest
Pra não tremer
Quando morrer
E te deixar
Eu quero nunca te deixar
Quero ficar
Preso ao teu amanhecer


dote

T'ensinarei
o segredo onomatopaico do mundo
Te apresentarei
Thomas Morus
Federico García Lorca
A sombra dos enforcados
O sangue dos fuzilados
Na calçada das cidades inacessíveis
Te mostrarei meus cartões postais
O velho e a criança dos Jardins Públicos
O tou-tou de dançarina sobre um táxi
Escapados ambos da batalha de Marne
O jacaré andarilho
A amadora de suicídios
A noiva mascarada
A tonta do teatro antigo
A metade da Sulamita
A que o palhaço carregou no carnaval
Enfim, as dezessete luas mecânicas
Que precederam teu uno arrebol


marcha

Todos virão para teu cortejo nupcial
A princesa Patoreba
Coroada de foguetes
A Senhora Dona Sancha
Que todos querem ver
O tagolomango
E seus mortos mastigados
Nas laboriosas noites processionais

Todos comparecerão
O camarada barbudo
O bobo-alegre
O salvado de diversos pavorosos incêndios
O frade mau
O corretor de cemitérios
E onde estiver
O Pinta-Brava
Meu irmão
Tatá, Dudu, Popó, Sici, Lelé
Não quero sombra de cera
Nem noite branca de reza
Quero o velório pretoriano
De Sócrates
Não o bestiário
De Casanova
Não quero tochas
Não quero vê-las
Tatá, Dudu, Popó, Sici, Lelé
O tio da América
A igreja da Aparecida
O duomo de Milão
O trem, a canoa, o avião
Tudo darei às mesas anatômicas
Do mastigador d'entranhas


himeneu

Para teu corpo
Construirei o dossel
Abrirei a porta submissa
Ligarei o rádio
Amassarei o pão


black-out

Girafas tripulantes
Em paraquedas
A mão do jaburu
Roda a mulher que chora
O leão dá trezentos mil rugidos
Por minuto
O tigre não é mais fera
Nem borboletas
Nem açucenas
A carne apenas
Das anêmonas
Na espingarda 
Do peixe-espada
Transcontinental ictiossauro
Lambe o mar
Voa, revoa
A moça enastra
Enforca, empala
À espera eterna
Do Natal


mea culpa, lear

Na hora do fantasma
Entre corujas
Jocasta soluçou
O palácio de fósforo
Múltiplas janelas
Desmaiou 

-Por que calaste o sino
 Meu filho, filho meu!
-Dei, dei, dei
-Onde puseste os reinos e as vitórias
 Que minha estranha serenidade prometia?
-Era usurpação. Paguei
-Passaste fome?
-Muitas vezes comi as marés de meu cérebro


encerramento e gran-finale

Nada te sucederá
Porque inerme deste o teu afeto
No soco do coração
Te levarei
Nas quatro sacadas fechadas
Do coração
Deixarei de ser o desmemoriado das idades de ouro
O mago anterior a toda cronologia
O refém de Deus
O poeta vestido de folhagem
De cocos e de crânios
Alba
Alfaia
Rosa dos Alkmin
Dia e noite do meu peito que farfalha

Ao teu lado
Terei o mapa-múndi

Em minhas mãos infantes
Quero colher
O fruto crédulo das semeaduras
Darei o mundo
A um velho de juba
A seu procurador mongol
E a um amigo meu
Com quem pretenderam
Encarcerar o sol

Viveremos
O corsário e o porto
Eu pra você
Você pra mim
Maria Antonieta d'Alkmin

Para lá da vida imediata 
Das tripulações de trincheira
Que hoje comigo
Com meus amigos redivivos
Escutam os assombrados
Brados da vitória
De Stalingrado


São Paulo, dezembro de 1942.