terça-feira, 29 de setembro de 2015

UM POEMA INÉDITO DE CLAUDIO DANIEL






















OXAGUIÃ

Ajagunã, aquele-que-muda-todas-as-coisas-
muda-noite-em-rio-
pedra-em-flor-
mulher-em-tempestade. 
Kabiyesi —
aquele-que-sabe-
todos-os-saberes
sabe das minas de prata
sabe dos rios de água quente.
Eléèjìgbó —
orixá-comedor-de-inhame-
inventor do pilão
pai de todos os inventos
aquele-que-dança-com-espada-na-mão. 
Eléèjìgbó —
orixá-comedor-de-inhame-
aquele-que-é-branco-
aquele-que-é-vermelho-
aquele-que-dança-com-espada-na-mão. 
Oisa-Je-Iyán,
o grande teimoso
aquele-que-nunca-
se-conforma-
Oisa-Je-Iyán,
o grande teimoso
aquele-que-nunca-
silencia-
toma de quem
tudo tem
para saciar
a fome de seus filhos.
Filho de Oxalufã,
o astucioso
livra da miséria
todos os teus filhos.
Babá Ejigbô, aquelele-que-dança-
vestido-de-branco-
aquele-que-canta-
vestido-de branco-
aquele-que-canta-
e-encanta-
todas-as-cores-
do-céu.

Epe, Epe, Babá Oxaguiã!

2015

O LIVRO DE ORIKIS DE CLAUDIO DANIEL É PUBLICADO PELA EDITORA PATUÁ




 















Oriki é o poema ritual da tradição iorubá, cantado até hoje nos terreiros de umbanda e candomblé, celebrando deuses, reis e herois lendários. Quem introduziu o oriki no Brasil foram os negros africanos, escravizados no período colonial-monárquico, que conservaram as suas tradições religiosas sob o aparente sincretismo com o culto aos santos da devoção cristã. As primeiras traduções desses textos orais para o idioma português em forma poética foram realizadas por Antonio Risério em seu belíssimo livro Oriki orixá, publicado pela editora Perspectiva na coleção Signos, dirigida por Haroldo de Campos. Nesse livro, Risério apresenta aos leitores excelentes ensaios críticos e traduções de alguns desses poemas cantados. Ricardo Aleixo publicou orikis de sua autoria no livro A roda do mundo. Ricardo Corona, Fabiano Calixto e Frederico Barbosa também escreveram bons orikis. Claudio Daniel, em seu Livro de orikis, procura manter elementos do oriki tradicional -- os nomes e epítetos dos orixás, seus mitos, atribuições e atributos, com uma visada crítica contemporânea, incorporando temas da situação política e social do país. Todos os poemas que compõem o livro foram escritos entre fevereiro e março de 2015, com exceção do Oriki de Orunmilá, redigido em 2006. As linhas apresentadas em itálico no interior dos poemas são citações de “pontos” cantados nos rituais em diversos terreiros no Brasil e os textos são apresentados conforme a ordem do xiré cantado no candomblé (foi adotada a sequência estabelecida por Pierre Verger no livro Os orixás, com poucas variações). A seleção de 18 orixás homenageados no livro incorporou divindades cultuadas nas tradições ketu, bantu e jejê. No final do volume, é apresentado um glossário com as palavras em iorubá que aparecem nos poemas. Quem quiser adquirir o livro pode solicitá-lo ao editor Eduardo Lacerda pelo e-mail editorapatua@gmail.com

Leia abaixo alguns poemas do livro:
 

EXU

Lagunã corrige o corcunda.
Faz crescer a lepra do leproso.
Põe pimenta no cu do curioso.

Legbá ensina cobra a cantar.
Entorta aquilo que é reto,
endireita aquilo que é curvo.

Exu Melekê — o desordeiro
faz a noite virar dia e o dia
virar noite. Surra com açoite

o colunista da revista. Cega
o olho grande do tucano —
e zomba do piolho caolho.

Marabô vai-vem-revém.
Quente é a aguardente
do delinquente. Elegbará

com seu porrete potente
quebra todos os dentes
do entreguista privatista.

Bará tem falo de elefante.
É o farsante dos farsantes:
fode a mulher do deputado

hoje – e faz o filho ontem.
Agbô confunde o viajante
e o faz perder a sua rota.

Bará Melekê compra azeite
no mercado — levando peneira
volta sem derramar uma gota.

Larôye Exu! O desalmado
soma pedras e perdas na sina
do condenado. Sete Caveiras:

que seja suave minha sina
neste mundo tão contrariado.
Que seja suave – Larôye Exu!
 

OGUM

Ogum Oniré
pisca o olho
e cai um dedo
do mentiroso.
Pesca o peixe
sem ir ao rio.
Molamolá
— farejador
de farelos —
livra seus filhos
do abismo.
Ogum Ondó
viajou a Ará
e a incendiou.
Viajou a Irê
e a demoliu.
Senhor de Ifé,
livra seus filhos
do abismo.
Ogundelê
malha o ferro
e faz flechas
de flagelo.
Comedor de cães
fulmina o racista.
Ogum Megê
queima o sangue
do fascista.
Megegê
golpeia o golpista
da revista.
Ferreiro-ferrador
forja a foice
forja o martelo.
Que não falte
o inhame.
Que não falte
massa de pão.
Pai do meu avô,
livra seus filhos
do abismo.

Ògún ieé!


 OXOSSI

Akueran feiticeiro
sabe folha
que mata.

Akueran feiticeiro
sabe folha
que cura.

Akueran feiticeiro
fere o olho
do sol.

Akueran feiticeiro
mata a morte
de medo.

Akueran feiticeiro
faz janeiro
virar outubro.

Akueran feiticeiro
faz amarelo
virar vermelho.

Akueran feiticeiro
encanta a lua
com sua beleza.

Akueran feiticeiro
apavora a terra
com sua força.

Akueran feiticeiro
livra seus filhos
da fome.

Akueran feiticeiro
livra seus filhos
da usura.

Òké Aro! Arolé!

 
XANGÔ

Xangô Oluaxô —
o raio rubro
rasga o céu.
Obakossô
faz o forte fugir
de medo.
Alafim de Oió
não lute comigo.
Alafim de Oió
seja meu abrigo.
Oba Arainã
fala com boca
Oba Arainã
fala com olhos
Oba Arainã
fala com pele
Oba Arainã
fala com raio.
Leopardo de Oiá
não lute comigo.
Leopardo de Oiá
seja meu abrigo.
Aganju
olho-de-chispa
mata o que mente
com pedras de raio.
Mastiga os juízes.
Castiga a mídia.
Oba Lubê
não lute comigo.
Oba Lubê
seja meu abrigo.
Oba Orungá dança alujá
queima a xota
da dondoca.
Oba Orungá dança alujá
queima o falo
do Bolsonaro.
Oba Orungá dança alujá
e saúda a beleza
que há no mundo.
Oba Orungá dança alujá
e saúda a beleza
que há no mundo.

Kawó Kabiesilé!

 
LOGUNEDÉ

Dedicado a Gilberto Gil

Logunedé
leopardo-menino-
aquele-que-nasceu-
numa-pétala-
de-flor-
Logunedé
leopardo-menino-
beleza-preta-
senhor-de-toda-
a-beleza-
Logunedé
leopardo-menino-
filho-d’Oxum-
pesca-nas-águas-
d’Oxum-
Logunedé
leopardo-menino-
filho d’Oxóssi-
caça-nas matas-
d’Oxossi-
Logunedé
leopardo-menino-
sabe-todos-os
feitiços-
Logunedé
leopardo-menino-
sabe-feitiço-
que-mata-
Logunedé
leopardo-menino-
sabe-fetiço-
que-cura-
Logunedé
leopardo-menino-
o-que-foi-mudado-
em-cavalo-
marinho-
Logunedé
leopardo-menino-
muda-de-forma
em-todas-as-
formas-
Logunedé
leopardo-menino-
vira-lua-pavão-
e-água-do-rio-
Logunedé
leopardo-menino-
vira-onça-
poesia-estrela-
tempestade-
Logunedé
leopardo-menino-
senhor-de-todas-
as-surpesas-
Logunedé
leopardo-menino-
faz-o-baobá-
virar-formiga-
e-a-formiga-
virar-centelha-
Logunedé
leopardo-menino-
o-que-veste-saia-
no-palácio-
d’Oxum-
Logunedé
leopardo-menino-
castra-aquele-
que-estupra-
Logunedé
leopardo-menino-
protege-as-suas-
três-muitas-
rainhas-
Logunedé
leopardo-menino-
protege-todas-
as moças-
todas-as-moças-
são-rainhas-
Alaketo-ê
Ala Ni Mala
Ala Ni Mala
okê

Eru wawá!



OBÁ

Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
lutou
com Oyá
venceu
Oyá.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
lutou
com Exu
venceu
Exu.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
lutou
com Oxalá
venceu
Oxalá.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
cortou
a orelha
por intriga
d’Oxum.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
cortou
a orelha
por amor
de Oba-
Orungá.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.
Obá Obá
protege
aquele
que ama.
Obá Obá
protege
aquele
que luta.
Obá Obá
moça que
é noite
moça que
é rio.

Obà Siré!


OXALÁ

Oxalufon —
aquele-que-caminha-
na-areia-
mestre dos corcundas
Obatalá —
aquele-que-come-
caracol-
forte como touro branco
Onírinjà —
aquele-que-nunca-
se-esquece-
faz o mentiroso
ficar surdo.
Ọbaníjìta —
aquele-que-nunca-
se-esquece-
faz o mentiroso
ficar mudo.
Olufón —
aquele-que-grita-
quando-acorda-
livra a filha
da armadilha.
Òòsàálá —
aquele-que-come-
rato-e-peixe
faz a moça estéril
embarrigar.
Olúorogbo —
aquele-que-fulmina-
fascista-
faz tucano virar
farelo.  
Orixanlá —
aquele-que-se-veste-
de-branco
aquele-que-canta-
vestido-de branco
aquele-que-dança-
vestido-de-branco
aquele-que-é-dono-
da-xota-de-Iemanjá
— Òrìşáko!

Epa Bàbá!

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

PORQUE A LUTA DE CLASSES NÃO TEM IDADE


BURGUESIA BRASILEIRA



A burguesia brasileira soube conviver com o trabalho escravo, a monarquia, a oligárquica república velha, o Estado Novo, o latifúndio, a ditadura militar. Ela sempre foi uma classe social parasitária, machista, racista, homofóbica, inimiga de qualquer avanço social. É uma classe que não tem – nunca teve – qualquer compromisso com a democracia, a ética, os direitos humanos, o crescimento econômico independente e soberano, a distribuição de renda, o progresso social – foi incapaz de realizar uma autêntica revolução democrática e, ao contrário, aceita ser sócia menor do imperialismo, comendo as sobras. Hoje, seu objetivo maior é destruir o PT e colocar na ilegalidade o conjunto da esquerda -- partidos, sindicatos, movimentos sociais -- para desencadear uma contrarrevolução que destrua todas as conquistas obtidas nos últimos treze anos de governos democrático-populares. NÃO PASSARÃO!!!

OU BARBÁRIE



As ciências humanas tiveram rápido desenvolvimento no início do capitalismo porque a burguesia precisava opor um conhecimento laico à herança cultural da Igreja Católica e da Monarquia, formar novos quadros intelectuais e políticos e criar um outro sistema político e administrativo, a democracia representativa parlamentar, sustentada pelo sufrágio universal dos cidadãos. Entre o final do século XVIII e o final do século XX, inúmeras disciplinas universitárias e ciências surgiram, inclusive para fomentar empregos para jovens e mulheres da pequena burguesia, como os estudos literários, a sociologia, a antropologia. Hoje, não é mais necessário, ao desenvolvimento do capitalismo, essa pluralidade de saberes, nem os direitos sociais conquistados ao longo do século XX, nem mesmo a democracia burguesa: com as vitórias eleitorais da esquerda na América Latina, a própria democracia é vista como contrária aos interesses das elites, que sonham com uma nova sociedade, muito parecida com o que foi o nazifascismo na Europa: uma sociedade altamente hierarquizada, verticalizada, com rígido controle das classes populares pelos capitalistas e a eliminação de qualquer forma de pensamento crítico, seja nas escolas, universidades, seja na vida política e social, seja na internet e nos veículos de comunicação. Nos próximos anos ou décadas, a escolha da humanidade, como dizia Rosa Luxemburgo, será entre o socialismo e a barbárie.

domingo, 20 de setembro de 2015

SOBRE A LITERATURA DE MERCADO


Há uma literatura de mercado no país, desenvolvida pelas grandes editoras, especialmente a Companhia das Letras e a Record, com apoio da mídia hegemônica, como a FALHA de S. Paulo, de eventos midiáticos como a FLIP, subsidiada pelo BNDS – logo, por nossos impostos – e pelo Ministério da Cultura, que financia “aviões da alegria" para Frankfurt e Paris, em que 80% ou 90% dos autores convidados são publicados pelas empresas editoriais citadas acima (e com explícito predomínio da prosa sobre a poesia: no último convescote internacional, de 40 autores, apenas DOIS eram poetas). No caso específico da poesia, o lobby da revista carioca Inimigo Rumor monopoliza editais de concursos, bolsas de criação literária, como a da Petrobrás, onde as mesmas pessoas se revezam, ora como jurados, ora como poetas contemplados (este é o verdadeiro escândalo da Petrobrás) e inventa autores de qualidade duvidosa da noite para o dia, valendo-se de sua influência nos meios universitários e jornalísticos. O que caracteriza essa literatura de mercado não é a qualidade estética, a pesquisa formal, a reflexão crítica sobre a realidade ou qualquer justificativa humanista, mas a consolidação de um “segmento do mercado” ou “unidade de negócio”, que oferece aos leitores / consumidores obras bastante convencionais, não raro medíocres – vide os casos de Angélica Freitas, Ricardo Domeneck ou Fernanda Torres, para citar poucos exemplos. São obras de consumo fácil, que dispensam a densidade, o rigor, a preocupação filosófica, cultural ou política, e mesmo assim (ou por isso mesmo) monopolizam a atenção da crítica midiática e são os grandes favorecidos em concursos, bolsas e viagens, além de serem vendidas para bibliotecas públicas e secretarias de educação e cultura, rendendo bons dividendos às empresas editoriais. Este não é um fato literário, mas comercial. Não basta, porém, reconhecermos o óbvio: é preciso pensarmos coletivamente em estratégias voltadas à outra face da moeda: a literatura séria, consistente, que sobrevive em nosso país graças ao esforço das pequenas editoras, como a Patuá, Lumme, Dobra, Demônio Negro, Oficina Raquel, a revistas como a CULT e, claro, ao trabalho sério de poetas e prosadores. Gostaria de apresentar quatro propostas para discussão: 1) criarmos um coletivo que seja representativo dos autores brasileiros, já que não dispomos de nenhuma entidade séria e atuante nos dias de hoje; 2) estreitarmos relações com as universidades, onde se encontra boa parte do público leitor, promovendo feiras de livros, festivais de poesia, eventos de prosa, entre outras ações; 3) estreitarmos relações com as entidades que representam as pequenas editoras, como a LIBRE; e 4) cobrarmos do governo federal e das secretarias municipais e estaduais de educação e cultura quais são os critérios para as compras de livros, que favorecem apenas o lobby das grandes casas editoriais, em detrimento da qualidade, da diversidade, da transparência e da igualdade de oportunidades.      


(Resumo de minha comunicação apresentada hoje no evento LETRAVIVA – LITERATURA DE CONFRONTO, no Centro Cultural São Paulo.)

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

LABORATÓRIO DO OUVIDO & CINE-OLHO














Dziga Vertov (1896-1954), um dos principais cineastas soviéticos da primeira metade do século XX, iniciou sua atividade artística no campo da poesia experimental. Com apenas 15 anos de idade fundou o “Laboratório do ouvido”, para pesquisar as possibilidades da poesia sonora – ele gravava falas e ruídos das ruas, fábricas, praças, com um fonógrafo Pathéphone, depois editava as gravações, criando a ambientação sonora de seus poemas. Aos 22 anos, começou a trabalhar com cinema – ingressou no Kino Komittet de Moscou e tornou-se redator do primeiro cinejornal soviético, o Kinonedelia (“cinema semanal”). Inventou então um novo conceito de documentário, que chamou de “Cine-olho” (Kino Glaz) e “Cine-verdade” (Kino Pravda), ou cinema não-ficcional, sem roteiro, sem atores e sem estúdio, focado na nova realidade socialista, no mundo das máquinas, da produção industrial, da agricultura coletivizada e das relações pessoais. Dziga Vertov tinha vários cinegrafistas à sua disposição, que registravam cenas do cotidiano, e depois editava esse material na sala de montagem, empregando técnicas revolucionárias de construção fílmica, só comparáveis às de Sergei Eisenstein. Entre seus trabalhos mais brilhantes estão Um homem com uma câmera (1928) e Réquiem para Lênin (1934).

terça-feira, 15 de setembro de 2015

LANÇAMENTO DO LIVRO DE ORIKIS





















A Editora Patuá e o Bar Canto Madalena convidam a todos para o lançamento LIVRO DE ORIKIS, novo livro de poemas de Claudio Daniel.

O evento será realizado dia 26 de setembro (sábado) a partir das 19h no Bar Canto Madalena - Rua Medeiros de Albuquerque, 471 - São Paulo - SP.

A entrada para o evento é gratuita e o exemplar estará à venda por R$ 35,00 (Atenção: pagamento em dinheiro, cheque e cartões de crédito e débito).

No mesmo dia realizaremos o lançamento dos livros Bocas de lobo, de Rosana Piccolo e Livro dos Epílogos, de Assis de Melo

Amigos e leitores de qualquer cidade do país que realizarem a compra antes do lançamento receberão o exemplar autografado após o evento. Imperdível!

O livro já está à venda em nosso catálogo. As compras pelo site podem ser parceladas em até 12x. Aproveite!

Saiba mais sobre o livro e o autor em: http://www.editorapatua.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=358

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

CADERNOS BESTIAIS















Amador Ribeiro Neto

Claudio Daniel (São Paulo, 1962) é poeta, tradutor, ensaísta, jornalista e professor. Mestre e Doutor em Literatura Portuguesa pela USP. Autor dos seguintes livros de poesia: Sutra (1992), Yumê (1999), A sombra do leopardo (2001), Figuras metálicas (2005), Fera bifronte (2009), Letra negra (2010), Cores para cegos (2013).

Cadernos bestiais (São Paulo: Lumme Editor, 2015), recém lançado, é dividido em três seções. A primeira, “Infernais fungos-de-papiro”, é um libelo antimídia e antipolíticas ditatoriais. Tudo é detonado num forte tom satírico. A segunda, “(Intermezzo)”, dá seguimento à poesia detratora da fase anterior. Versa sobre preconceitos e privilégios. A terceira, “Fabulações de outra margem”, é um poema erótico. Dado o contexto do livro, pode ser lido como metáfora de um novo tempo, usufruído em delícias. A semelhança com o bíblico “Cântico dos cânticos” não é gratuita coincidência.

A poesia cifrada e construída sobre imagens nem sempre decodificáveis, que marca certa produção de Claudio Daniel, cede lugar a uma linguagem expressa e direta. Com isto não queremos afirmar que sua poesia fosse neobarroca. Ele é tradutor e organizador de antologias neobarrocas. Que fique claro. Mas sua poesia, ainda que postergando significados numa chuva de significantes, não é neobarroca. Talvez se aproxime mais do nonsense ou mesmo de certos procedimentos surrealistas.

No presente volume o poeta embrenha-se na poesia engajada. Sem descuidar da forma. E, talvez devido à necessidade de refletir sobre temas sociais, empenha-se na elaboração de uma linguagem mais evidente.

Isto pode ser perigoso, sob a pena de escorregar para o panfletário. Mas não acontece. Claudio Daniel, por ser ensaísta, poeta e professor de literatura, domina admirável repertório teórico. O que não lhe autoriza as facilidades das pasmaceiras que desgraçam boa parte da produção poética hoje. Pelo contrário: sua poesia prima por acentuada consciência de linguagem. Com Valéry e Pound, entre outros, sabemos que, em arte, este traço é fundamental.

O poema que abre o volume intercala vozes diferentes, separadas por versos demarcados por parênteses, que se interpenetram. Ler cada fala e a seguir a interação entre elas, como terceira via, é necessário. Além de rico e elucidativo.

A seguir temos a série intitulada “Antimídia”, numerada de I a X. Cito uma parte do poema II: “Tempo carreira / desenterra / escaravelhos ao contrário / onde abismais / esqueletos do nunca / fornicam trevas. / Esta é a cidade esfíngica /onde passos trilhados / ao avesso da membrana. / Esta é a cidade esfíngica / onde a desrazão / navega a insanidade. / Porco burguês. / Porca burguesa. / Chafurdam na mídia pré-histórica, / colecionando cifras. / Onde neste caos aritmético, / há lugar para o infinito?”.

“Cantiga”, poema que fecha o livro, formado por sete partes, diz: “todas as mulheres / são tigres desenhados / em teus olhos, que se desdobram / na noite estrelada: olhos-pés, olhos-mãos, / olhos-boca, olhos-peitos, olhos-nada”, num enlevo que vai do da louvação encantatória ao apagamento absoluto. Em outro momento: “porém, a delícia / de caminharmos lado a lado, / sem destino, nessa terra ignorada, / quando lagartos devoram cicatrizes, / e então mais uma vez, / você é para mim um anjo, e eu a sua sombra”. A construção final retoma a epígrafe de Tristan Tzara: a amada é vista angelicalmente, enquanto o eu-lírico se projeta como nefelibata. Ou seja: o mundo onírico surge enquanto uma das asas da utopia.

Cadernos bestiais investe na expressividade poética. Com a beleza do leve e transparente. 

(Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 28 de agosto de 2015, p. B-7.)

CADERNOS BESTIAIS, A LINGUAGEM FUNDIDA DA POESIA


 
















Antônio Moura

Uma das mais marcantes definições de arte que conheço é também bastante conhecida de muitos, trata-se do célebre postulado do Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont, em que afirma que “a arte é o encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação”.  A força dos elementos díspares reunidos num mesmo espaço e nesta frase é a mais próxima tradução daquilo que, a meu ver, faz a força da arte, a união de contrários para a explosão de novos sentidos. Este choque de opostos gera o impacto necessário para fazer a linguagem acordar, levantar de súbito como que num susto e recobrar a vida, a energia vital que havia desaparecido ou estava adormecida por baixo dos panos do entorpecedor discurso mercadológico. Este acordar da linguagem faz também acordar o leitor, que, também, de súbito, se ergue através de suas emoções, sua memória, seu pathos e seu ethos. 

Ao abrir os Cadernos bestiais, Lumme Editor, 2015, de Claudio Daniel, temos a sensação do encontro entre a máquina de costura e o guarda-chuva sobre a mesa de dissecação de Ducasse.  Isso acontece de maneira mais contundente, principalmente, por causa do primeiro poema da coletânea, chamado Anônimos. Nele, um certo número de diferentes realidades encarnadas através de vários personagens se encontram e se conflitam  numa espécie de cinema fragmentado em que ainda se acrescenta uma tipo de voz em surdina, onde frases paralelas aparecem entre parênteses, como uma forma de coro surreal que evoca e aproxima realidades distantes daquela que se desenrola, digamos, no corpo principal do poema. Uma realidade banal que vai se transformando num estado de coisas absurdo, como, às vezes, parece ser o estado cotidiano do mundo em que vivemos e não percebemos. Leiamos um trecho inicial do poema Anônimos:

Há um louco na rua.

 (Os livros dos uigures foram escritos para serem esquecidos)

Um policial pede os seus documentos.

 ( três ou quatro especialistas em língua suméria.)

O louco entrega-lhe um tijolo.

(Uma tribo na Ásia Central escreve seus livros sagrados nos ventres de mulheres anãs.)

Para, mais adiante, finalizar:

A mulher gorda ataca o louco com um sapato.

(Quem conhece um grande romancista da Lituania?)

O Cinegrafista do Grande Telejornal filma todo episódio para exibir no horário nobre.

(Há indícios de vogais e consoantes em teus pequenos lábios.)

Logo surgem legiões de publicitários, jornaleiros e vendedores de apólices de seguros e tem inicio uma pancadaria.

(Poucos são capazes de ler as mensagens ocultas no interior das nozes.)

O livro divide-se em três secções: Infernais fungos de papiro, (Intermezzo) e Fabulação de outra margem. Na primeira parte está o já citado poema acima e a série de poemas intitulados Antimídia, que vão do numero I até o número X. Aqui estamos diante aquilo que muitos costumam chamar de uma poesia participativa. Termo que acho vago e impreciso já que toda poesia, toda poesia de verdade é, de certa forma, participativa de alguma esfera da realidade, seja ela política, social, lírica ou metafísica, já que, assim como o visível, o invisível também é parte constituinte da existência. Mas vamos aqui nos restringir a esfera de participação, digamos, na falta de melhor termo, sócio-política. Costumo dizer que fazer poesia engajada, aliás, não só poesia, mas arte que, de forma geral, é chamada de participativa ou engajada, é um grande risco por tratar-se de uma matéria muito difícil de modelar. Nestes casos o autor sempre corre o risco de enveredar pela simples propaganda ideológica, pelo discurso panfletário, mas, são os ossos do ofício, assim como na lírica corre-se o outro risco de se derramar e cair no confessional. No caso dos Cadernos bestiais, nos poemas Antimídia, o autor consegue caminhar equilibradamente sobre uma lâmina em que não se deixa sucumbir apenas pelo discurso, mas, que ao contrário, o constrói com bases plenamente fincadas no terreno fértil da poesia, onde a metáfora, a ironia, o estranhamento, a surpresa e o ritmo estão presentes, não permitindo que a linguagem, o que muitas vezes acontece nesses casos, torne-se elemento de viés mais antropológico e sociológico do que estético. Em seus poemas dessa ordem Claudio dispara sua mira certeira contra os usos e abusos de uma sociedade doente, mas o seu gatilho, a sua arma continua sendo feita do material fundido da poesia. Mas, melhor do que falar do objeto é mostrar o objeto. O poema Antimídia VIII que corrobora plenamente o que há pouco foi dito e que faço questão de transcrever alguns trechos: 

A Colunista do Grande Jornal Diário
equilibra-se
nos indispensáveis
saltos Christian Louboutin
para analisar os fatos políticos
com distanciamento crítico
e objetividade jornalística.

Mais adiante o poema , num humor sardônico, evidencia o contraste:

Entre um e outro gole de cherry brandy
folheia, na revista nova-iorquina,
as últimas criações de Domenico Dolce
e Stefano Gabana, inimagináveis
nessa selva selvagem de mortos de fome.


Para, enfim, finalizar:

Ela acredita na Divina Providência,
no Destino, nas Forças Vivas da Nação.
E aplica suavemente gotas aromáticas
(Ralph Lauren) em sua nuca,
enquanto espera pela Vinda de seu Führer.


A terceira parte do livro, (Intermezzo), constitui-se de um único poema chamado Cabeça de Não, dedicado “a meninada da Batucada Popular Carlos Marighella”, em que parece operar-se uma fusão entre o combatente e o lírico, que virá em seguida, na terceira e última parte da obra, dando, dessa forma, uma organicidade ao livro. Um poema onde a revolta se apresenta de forma compassiva e comovente, construído numa concisão, numa economia de recursos, como se o próprio poema se apoiasse num material léxico precário, numa linguagem sem fartura, exígua, quase esquelética, como que para torna-se semelhante ao próprio objeto de sua fala, os mal nutridos, os mal aceitos. Eis um trecho:

Cabeça de negro –

não entra –

cabeça de branco –

entra –

cabeça de pobre –

não entra –

cabeça de nobre –

entra –

cabeça de pardo –

não entra –

cabeça de podre –

entra

(...)

Há, por fim, uma última e especialíssima parte deste livro que, na verdade constitui-se em uma unidade, Fabulação de outra margem, que, como o próprio intertítulo aponta levará o leitor para um outro lado de tudo que foi lido/vivido até agora. Esta outra margem é o lirismo, onde, ao cruzá-lo, vamos nos encontrando com explosões de luminosidade, lembrando, por vezes, as súbitas imagens luminosas de Tristan Tzara, que, não por acaso, assina a epígrafe desta secção do livro. Mas um lirismo que em nenhum momento faz concessões ao edulcoramento, ao meramente confessional, pois nesta série de pequenos poemas sob o único de título de Cantiga, o lirismo contem “a ferocidade no limiar da noite”, para citar um dos próprios poemas. Um lirismo, onde a experiência vivida ou imaginária transforma-se em uma espécie de jubileu da linguagem, encarnando poeticamente uma celebração perplexa da beleza, da arte e do amor diante do imenso vazio que nos cerca.

Porém, a delícia
de caminharmos lado a lado,
sem destino, nessa terra ignorada,
quando lagartos devoram cicatrizes
e então, mais uma vez,
você é para mim um anjo, e eu sua sombra.


Agora, curiosamente, quando estou prestes a terminar de escrever este texto, o gato de estimação, o Nhõnho, a quem já dediquei um poema em um dos meus livros, vem e, felinamente, misteriosamente, debruça-se sobre o Cadernos bestiais que está aberto ao meu lado. Debruça-se e olha fixamente para as páginas abertas, dando a nítida impressão de o estar lendo. É a poesia que atrai poesia.

Belém, 14 de julho de 2015.


(Resenha publicada originalmente na revista Zunái.)

CADERNOS BESTIAIS OU AS PALAVRAS A DESPEITO DAS PALAVRAS: UM LIVRO POLÍTICO



Ana Cristina Joaquim

Em 2015, numa aldeia situada ao sul do hemisfério sul, historicamente nomeada São Paulo de Piratininga,  habitavam algumas espécies de animais selvagens — grande quantidade delas, diziam alguns, já em vias de extinção — que, por estarem excessivamente atreladas aos tempos de antanho (em sua maioria, parentes mais ou menos próximos do caranguejo, mas que destes se distinguiam pela maior extensão corporal e por prescindirem da água para sua sobrevivência), não eram capazes de perceber que as palavras haviam ocupado suma importância nos modos todos de relação implicados na convivência interespécies. Utilizavam-se, portanto, de grunhidos muito pouco diversificados, que causavam grande irritação naqueles que a eles eram submetidos.

Neste mesmo ano de 2015, na aldeia que popularmente ficou conhecida como Paulicéia, Sampa ou Sampã (graças ao refinamento de três grandes retores do português brasileiro: Mário de Andrade, Caetano Veloso e José Celso Martinez Corrêa) — parte do estado federativo homônimo: o maior representante da lusofonia na América Latina (irônico?) — surge, entretanto, uma forma altamente elaborada de intervenção, que aponta justamente para a bestialidade envolvida no desprezo pelas palavras, ou, o que de alguma maneira é equivalente, no uso da palavra como mídia (meio ou mero veículo) de um conteúdo completamente destituído de valor para uma comunidade de proporções tais.

Refiro-me ao primeiro volume dos Cadernos bestiais, do poeta Claudio Daniel, publicado pela Editora Lumme nesta famigerada aldeia. Livro incisivamente atual que vem lembrar à comunidade selvática deste nosso estado paulista, que não apenas por meio de grunhidos nos expressamos.

A série de 10 poemas antimídia — um verdadeiro manifesto ético-político — oscila entre o trágico e o cômico da denúncia, como se entre um e outro houvesse apenas um direcionamento do agudo olhar. Sobre o  trágico, eis algumas das violentas panóplias: "(…) a morte engole manápulas/ e adensa paisagens-vértebras/ daqueles que não têm nome daqueles que/ não tem nome nenhum nada além/ de ninguém", "tateando entre os tufos da fome/ entre os húmus da usura tateando entre", "o estrondo mudo/ de uma pistola de 9mm"; "Nenhuma hipótese/ de lucidez/ nessa máquina/ para a produção do medo"; "fala para si, solipsista,/ como jargão/ de ofícios militares"; "unhas enegrecidas/ maxilares arrancados,/ miuçalha de carcaças". Sobre o cômico e o bufo expressionista: "O Apresentador do Grande Telejornal/ sofre de terríveis/ dores estomacais./ Tosse./ É impotente./ E peida muito."; "A Colunista do Grande Jornal Diário/ (…) folheia, na revista nova-iorquina,/ as últimas criações de Domenico Dolce/ e Stefano Gabbana (…)". Eis a mão impiedosa do poeta.

Há ainda um último poema da série antimídia, cuja epígrafe de Ionesco, "Quelle est ma langue?", coloca a questão poética no centro do interesse; questão com a qual o poeta debate-se no desenrolar dos ritmos e grunhidos que atravessam o poema: é como se  o poeta sussurrasse em meio a barulhos indistinguíveis, chamando a atenção dos Anônimos (título do poema que abre o livro), que devem buscar o poema num esforço de escuta contra toda a algaravia: "(Um miniaturista persa escreveu um longo poema épico numa pena de faisão"), "(Nuvens serão letras de um alfabeto cabalístco?)", "(quem conhece um grande romancista na Lituânia?)", "letras que são bichos no escuro letras que/ são lepras de lorpas no escuro",  "(…) um poeta (tunisiano?) soletra a sub-reptícia/ sombra da vivissecção.", etc. Trata-se da metalinguagem muito apropriadamente usada com o propósito de ressaltar o duplo poder da palavra: arma e escudo contra a selvageria reinante, contra a linguagem inarticulada, em suma, a guerra contra os meios de comunicação.

Com fabulação de outras margens, uma série de breves poemas amorosos-sensuais, este primeiro volume dos Cadernos se encerra, de modo a oferecer ao leitor esta outra face da palavra, sua via de exaltação, um direcionamento possível.

Por fim, desde esta Paulicéia errática, Sampa ou Sampã melodiosa, proponho o movimento circular em direção à epígrafe (nunca em retrocesso, vale frisar), um atentado contra os caranguejos selvagens deste brejo ressequido: "Ao Desconhecido/ que sempre muda tudo".

(Resenha publicada originalmente na revista Germina.)