quinta-feira, 28 de julho de 2016

ANTICANÇÃO















Hora vermelha, de garras;
hora da gárgula;
hora do grito;
hora da gárgula;
hora do grito.


Hora vermelha, de garras;
percorre linhas 
das mãos, torso,
axilas, até a medula
espinhal; é gárgula.


Hora vermelha, de garras:
sua face rascante, 
de ranhuras;
a língua eritrina;
demente desmundo.


Hora vermelha, de garras:
limosa, ruminante,
esfrega escamas
nos poros da noite
para alucinar-te.


Hora vermelha, de garras:
lambe teu membro,
rugosa melusina,
buceta-escarcéus:
acúmulo de vermes.


Hora vermelha, de garras:
acaso se
entremostraria
no esplendor
de coágulos?


Hora vermelha, de garras:
ferruginosa,
em adensamento
de guinchos.
É gárgula.


Hora vermelha, de garras:
acaso esfiapasse,
seu disfórico vestido
até a final
metempsicose?


Hora vermelha, de garras:
hora da gárgula;
hora do grito;
hora da gárgula;
hora do grito.


Eu sou tua gárgula;
você, meu pesadelo.


Poema inédito de Claudio Daniel, 2016

sexta-feira, 22 de julho de 2016

POEMAS DE OLIVÉRIO GIRONDO



REBELIÃO DE VOCÁBULOS

De repente, sem motivo:
grasnido, palaciano,
carrancudo, micróbio,
padre-nosso, vitupério,
seguidos de: incolor,
bissexto, tegumento,
eqüestre, Marco Polo,
zambro, complexo;
depois de: somormujo,
garanhão, reincidente,
herbívoro, profuso,
ambidestro, relevo;
rodeados de: Afrodite,
núbil, ovo, ocarina,
incruento, escambal,
diametral, pêlo fonte;
em meio de: fraldas,
Flávio Lácio, penates,
laranjal, nigromante,
semibreve, sevícia;
entre: corvo, cornija,
imberbe, garatuja,
parasito, ameado,
tresloucado, equilátero;
em torno de: nefando,
hierofante, goiabeira,
espantalho, confrade,
espiral, mendicante;
enquanto chegam: incólume,
falaz, ritmo, emplasto,
cliptodonte, ressaibo,
fogo-fátuo, arquivado;
e se aproximam: macabra,
cornamusa, heresiarca,
malandro, chamariz,
artimanha, epiceno;
no mesmo instante que
castálico, invólucro,
chama sexo, estertóreo,
zodiacal, disparate;
junto à serpente... não quero!
Eu resisto. Eu recuso.
Os que seguem vindo
hão de achar-se adentro.


GRISTENIA

NOCTIVOZMUSGO insone
de mim a mim refluido para o gris já deserto tão duna
    evidência
gorgogotejando nãos que preulceram o pensar
contra as sempre contras da pós-náusea obesa
tão plurinterroído por noctívagos eus em rompante ante
    a garganta angústia
com seu sonhar rodado de oco sino dado de dado já tão dado
e seu eu só escuro de poço lodo adentro e microcosmo tinto
    para a total gristenia


AS PORTAS

ABSORTO tédio aberto

ante a fossanoite inululada
que em seca greta aberta subsorri seu mais acre recato
aberto insisto insone a tantas mortenazes de incensosom
revôo
até um destempo imóvel de tão já amargas mãos
aberto ao eco cruento por costume de pulso não digo mal
por mero nímio  glóbulo aberto ante o estranho
que em voraz queda enferruja circunrrói as costas parietais
abertas ao murmúrio da má sombra
enquanto se abrem as portas


BAÍA ANÍMICA

ABRA casa
de gris lava cefálica
e confluências de cúmulos memórias e luzpulsar cósmico
casa de asas de noite de rompante de enluarados espasmos
e hipertensos tantãs de impresença
casa cabala
cala
abracadabra
médium lívida em transe sob o gesso de seus quartos de
    hóspedes defuntos travestidos de sopro
metapsíquica casa multigrávida de neovozes e ubíquos ecossecos
    de afogados circuitos
clave demodivina que conhece a morte e seus compassos
seus tambores afásicos de gaze
suas comportas finais
e seu asfalto


TRANSUMOS

AS VERTENTES as órbitas tem perdido a terra os espelhos
os braços os mortos as amarras
o olvido sua máscara de tapir não vidente
o gosto o gosto o leito seus engendros o fumo cada dedo
as flutuantes paredes donde amanhece o vinho as raízes a
frente todo canto rodado
sua corola seus músculos os tecidos os vasos o desejo os sumos que
fermenta a espera
as campinas as encostas os transonhos os hóspedes
seus favos o núbil os prados as crinas a chuva as pupilas
seu fanal o destino
mas a lua intacta é um lago de seios que se banham tomados
pela mão


NOITE TÓTEM

São os transfundos outros da in extremis médium
que é a noite ao entreabrir os ossos
as mitoformas outras
aliardidas presenças semimorfas
sotopausas, sossopros
da enchagada libido possessa
que é a noite sem vendas
são os grislumbres outros atrás esmeris pálpebras videntes
os atônitos gessos do imóvel ante o refluído
ferido interogante
que é a noite já lívida
são as crivadas vozes
as suburbanas veias de ausência de remansas omoplatas
as acrinsones dragas famintas do agora com seu limo de nada
os idos passos outros da incorpórea ubíqua também outra
escavando o incerto
que pode ser a morte com sua demente muleta solitária
e é a noite
e deserta

DESTINO

E PARA CÁ OU ALÉM
e desde aqui outra vez
e volta a  ir de volta e sem alento
e do princípio ou término do precipício íntimo
até o extremo ou meio ou ressurrecto resto de este ou aquele
ou do oposto
e roda que te rói até o encontro
e aqui tampouco está
e desde acima abaixo e desde abaixo acima ávido asqueado
por viver entre ossos
ou do perpétuo estéril desencontro
ao demais
de mais
ou ao recomeço espesso de cerdos contratempos e destempos
quando não a bordo senão de algum complexo herniado em pleno
vôo
cálido ou gelado
e volta e volta
a tanta terça turca
para entregar-se inteiro ou de três quartos
farto já de metades
e de quartos
ao entrevero exausto dos leitos desfeitos
ou dar-se noite e dia sem descanso contra todos os nervos do
mistério
do além
daqui
enquanto se resta quieto ante o fugaz aspecto sempiterno do
aparente ou do suposto
e volta e volta fundido até o pescoço
com todos os sentidos sem sentido
no sufocotédio
com unhas e com idéias e poros
e porque sim não mais


Traduções: Claudio Daniel 

domingo, 17 de julho de 2016

POEMAS DE PAULA TAVARES


















RAPARIGA

Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarraram-me já às costas, a tábua Eylekessa

Filha de Tembo
organizo o milho

Trago nas pernas as pulseiras pesadas
Dos dias que passaram...

Sou do clã do boi –

Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono profundo de deserto.

A falta de limite...

Da mistura do boi e da árvore
a efervescencia
o desejo
a intranquilidade
a proximidade
do mar

Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada,
concedeu-me
o favor das suas tetas úberes.

(Do livro Ritos de passagem, 1985)



O LAGO DA LUA

No lago branco da lua 
lavei meu primeiro sangue 
Ao lago branco da lua 
voltaria cada  mês 
para lavar 
meu sangue eterno 
a cada lua
 No lago branco da lua 
misturei meu sangue 
e barro branco 
e fiz a caneca 
onde bebo 
a água amarga da minha sede sem fim 
o mel dos  dias claros 
Neste lago deposito 
minha reserva de sonhos para tomar


* * *

Aquela mulher que rasga a noite
com o seu canto de espera
não canta
Abre a boca
e solta os pássaros
que lhe povoam a garganta


* * *

Atravesso o espelho
circuncido-me por dentro
e deixo que este caco
me sangre docemente

entre dias e espera
a história deste tempo
em carne viva.


* * *

chegou a noite
onde habito devagar
sou a máscara
Mwana Pwo em traje de festa

dança comigo
de noite todos temos asas
vem, eu sou a máscara
para lá da vida
à beira da noite

bebe comigo
a distância
em vaso de vidro

vem atravessar o espelho em dois sentidos
depois, podemos, rumo ao sul
navegar
as horas
desembrulhar a espuma desta
lentíssima noite
e ficar por dentro
dançarino e máscara
no meio da noite.

(Do livro O lago da lua, 1999)


O LAGO

Tão manso é o lago dos teus olhos
que temo avançar a mão
cortar as águas
e semear o espanto
na descoberta
da minha sede antiga.


E AS MARGENS

Respira mansa a superfície do lago
silêncio e lágrimas pesam-lhe as margens.

Uma mulher quieta
enche as mãos de sangue
cortando o azul
da superfície de vidro.


A CURVA DO RIO

Desces a curva do meu corpo, amado
com o sabor da curva de outros rios
contas as veias e deixas as mãos pousarem
como asas
como vento
sobre o sopro cansado
sobre o seio desperto
Parte a canoa e rasga a rede
tens sede de outros rios
olhos de peixe que não conheço
e dedos que sentem em mim a pele arrepiada
d’outro tempo
Sou a esperança cansada da vida
que bebes devagar
no corpo que era meu
e já perdeste
andas em círculos de fogo
à volta do meu cercado
Não entres, por favor não entres
sem os óleos puros do começo
e as laranjas.

(Do livro Dize-me coisas amargas como os frutos, 2001)


* * *

As flores com que me vestiram
Eram só
Para arder melhor.


* * *

A terra despiu os mantos
de sombra
para curvar ao dia
seus cabelos

Uma mancha clara
tapou os olhos da lua.


* * *

IDENTIDADE

Quem for enterrado
Vestindo só a sua própria pele
Não descansa
Vagueia pelos caminhos.

(Do livro Ex-votos, 2003)

POEMAS DE MARIA ALEXANDRE DÁSKALOS

 


1º. POEMA

Nasceu em  mim uma fonte

nada sabia dessa água

até encontrar as margens

desta escrita

que quis fosse lisa

como pedra mármore


2º. POEMA

Amendoeiras selvagens

em flor

a rasgar o verde

da mata de inverno.


Plenitude de maturidade

como relógio de areia

a marcar os quarenta anos.

  
3º. POEMA

Um homem ao crepúsculo

sabe que os poetas e as mulheres

percorrem as ruas da cidade

na peregrinação dificílima do amor.
Esperam-nos em caves secretas

ungüentos e odores tropicais

então, um homem tranqüilo torna fácil a nudez.

  
4º. POEMA

As velhas tias organizam velórios

e com o pêndulo do ocaso

invertem as rotas dos barcos

saídos do cais ao fim da tarde.


Ecos que já não lutam com ventos perigosos

de aromas marinhos 

anseiam chegar à ilha para ver os pássaros

e

preguiçar na promessa de uma ilusão cumprida

Ao fim da tarde...


E AGORA SÓ ME RESTAM
E agora só me restam
os poetas gregos.
O silêncio diz — esquece.
E o espinho da rosa enterrado no peito
é meu.
 
Os deuses não assistiram a isto.


* * *


talvez o nosso corpo
seja pequeno
para ser a casa
do amor

que não guarde só indícios
e
não troque só sinais e entregas
que não seja tranquilo
nem fiel à rosa
e ao fio da lâmina


* * *

cheguei às portas secretas
atravessei as passagens interditas
e
no labirinto que negou os meus passos
vi tesouros que não eram meus


* * *

Ali estão elas de cabelos brancos
lisos ou em tranças apertados.
Ali estão elas suspensas sem um suspiro,
sem uma lágrima.

Os cabelos brancos gritam
gritos alucinados.


* * *

Poeta, somos filhos da diáspora
olhamos para trás e desfilam
os que amamos.
Os deuses abandonaram-nos –
–  é  conhecer o desespero
e saber
que uma mulher ajoelhada
não os faz regressar.


* * *

O rio corre manso
fumos sobem até ao azul-cinza.
A memória dos nossos corpos
perde-se nas águas.
E as nossas palavras
desfazem-se em círculos.
Perdemo-nos quando olhamos o rio.
Saudade de chegar ao mar.


* * *

A noiva costurava com pontos de alquimia
o seu vestido branco.
Chegou a guerra e jaz morto
o noivo.
Ela não pode lavar
com o seu vestido feito de fumos e água.

Vieram os soldados e levaram-na.
Para lá, onde cada palavra
é um silêncio
e cada silêncio
um túnel
como um olho cego.


* * *

O relâmpago desfez o sonho
como a raiz ficou nua na terra seca.
Uma palavra matou a onça e a zebra.

O porto é um abismo
e
das chaminés dos barcos naufragados
saem fumos listrados.


Maria Alexandre Dáskalos nasceu no Huambo (antiga Nova Lisboa), em Angola, em 1957. Depois de ter frequentado o Colégio Ateniense e o de São José de Cluny, licenciou-se na área de Letras.  Devido aos graves problemas decorrentes da guerra civil, em 1992 vem para Portugal com a mãe e o filho, reiniciando, em Lisboa, os seus estudos em História. Filha do poeta Alexandre Dáskalos e casada com Arlindo Barbeitos, outro grande nome da poesia angolana, Maria Alexandre é hoje uma das principais vozes femininas da poesia angolana. Publicou, entre outros livros, os seguintes:  O jardim das delícias (1991), Do tempo suspenso (1998), Lágrimas e laranjas (2001).