domingo, 17 de julho de 2016

POEMAS DE PAULA TAVARES


















RAPARIGA

Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarraram-me já às costas, a tábua Eylekessa

Filha de Tembo
organizo o milho

Trago nas pernas as pulseiras pesadas
Dos dias que passaram...

Sou do clã do boi –

Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono profundo de deserto.

A falta de limite...

Da mistura do boi e da árvore
a efervescencia
o desejo
a intranquilidade
a proximidade
do mar

Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada,
concedeu-me
o favor das suas tetas úberes.

(Do livro Ritos de passagem, 1985)



O LAGO DA LUA

No lago branco da lua 
lavei meu primeiro sangue 
Ao lago branco da lua 
voltaria cada  mês 
para lavar 
meu sangue eterno 
a cada lua
 No lago branco da lua 
misturei meu sangue 
e barro branco 
e fiz a caneca 
onde bebo 
a água amarga da minha sede sem fim 
o mel dos  dias claros 
Neste lago deposito 
minha reserva de sonhos para tomar


* * *

Aquela mulher que rasga a noite
com o seu canto de espera
não canta
Abre a boca
e solta os pássaros
que lhe povoam a garganta


* * *

Atravesso o espelho
circuncido-me por dentro
e deixo que este caco
me sangre docemente

entre dias e espera
a história deste tempo
em carne viva.


* * *

chegou a noite
onde habito devagar
sou a máscara
Mwana Pwo em traje de festa

dança comigo
de noite todos temos asas
vem, eu sou a máscara
para lá da vida
à beira da noite

bebe comigo
a distância
em vaso de vidro

vem atravessar o espelho em dois sentidos
depois, podemos, rumo ao sul
navegar
as horas
desembrulhar a espuma desta
lentíssima noite
e ficar por dentro
dançarino e máscara
no meio da noite.

(Do livro O lago da lua, 1999)


O LAGO

Tão manso é o lago dos teus olhos
que temo avançar a mão
cortar as águas
e semear o espanto
na descoberta
da minha sede antiga.


E AS MARGENS

Respira mansa a superfície do lago
silêncio e lágrimas pesam-lhe as margens.

Uma mulher quieta
enche as mãos de sangue
cortando o azul
da superfície de vidro.


A CURVA DO RIO

Desces a curva do meu corpo, amado
com o sabor da curva de outros rios
contas as veias e deixas as mãos pousarem
como asas
como vento
sobre o sopro cansado
sobre o seio desperto
Parte a canoa e rasga a rede
tens sede de outros rios
olhos de peixe que não conheço
e dedos que sentem em mim a pele arrepiada
d’outro tempo
Sou a esperança cansada da vida
que bebes devagar
no corpo que era meu
e já perdeste
andas em círculos de fogo
à volta do meu cercado
Não entres, por favor não entres
sem os óleos puros do começo
e as laranjas.

(Do livro Dize-me coisas amargas como os frutos, 2001)


* * *

As flores com que me vestiram
Eram só
Para arder melhor.


* * *

A terra despiu os mantos
de sombra
para curvar ao dia
seus cabelos

Uma mancha clara
tapou os olhos da lua.


* * *

IDENTIDADE

Quem for enterrado
Vestindo só a sua própria pele
Não descansa
Vagueia pelos caminhos.

(Do livro Ex-votos, 2003)

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