RAPARIGA
Cresce comigo o boi com que me vão
trocar
Amarraram-me já às costas, a tábua Eylekessa
Amarraram-me já às costas, a tábua Eylekessa
Filha de Tembo
organizo o milho
organizo o milho
Trago nas pernas as pulseiras
pesadas
Dos dias que passaram...
Dos dias que passaram...
Sou do clã do boi –
Dos meus ancestrais ficou-me a
paciência
O sono profundo de deserto.
O sono profundo de deserto.
A falta de limite...
Da mistura do boi e da árvore
a efervescencia
o desejo
a intranquilidade
a proximidade
o desejo
a intranquilidade
a proximidade
do mar
Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada,
concedeu-me
o favor das suas tetas úberes.
(Do livro Ritos de passagem, 1985)
O LAGO DA LUA
No lago branco da lua
lavei meu primeiro sangue
Ao lago branco da lua
voltaria cada mês
para lavar
meu sangue eterno
a cada lua
lavei meu primeiro sangue
Ao lago branco da lua
voltaria cada mês
para lavar
meu sangue eterno
a cada lua
No lago branco da lua
misturei meu sangue
e barro branco
e fiz a caneca
onde bebo
a água amarga da minha sede sem fim
o mel dos dias claros
Neste lago deposito
minha reserva de sonhos para tomar
misturei meu sangue
e barro branco
e fiz a caneca
onde bebo
a água amarga da minha sede sem fim
o mel dos dias claros
Neste lago deposito
minha reserva de sonhos para tomar
* * *
Aquela mulher que rasga a noite
com o seu canto de espera
não canta
Abre a boca
e solta os pássaros
que lhe povoam a garganta
* * *
Atravesso o espelho
circuncido-me por dentro
e deixo que este caco
me sangre docemente
entre dias e espera
a história deste tempo
em carne viva.
* * *
chegou a noite
onde habito devagar
sou a máscara
Mwana Pwo em traje de festa
dança comigo
de noite todos temos asas
vem, eu sou a máscara
para lá da vida
à beira da noite
bebe comigo
a distância
em vaso de vidro
vem atravessar o espelho em dois
sentidos
depois, podemos, rumo ao sul
navegar
as horas
desembrulhar a espuma desta
lentíssima noite
e ficar por dentro
dançarino e máscara
no meio da noite.
(Do livro O lago da lua, 1999)
O LAGO
Tão manso é o lago dos teus olhos
que temo avançar a mão
cortar as águas
e semear o espanto
na descoberta
da minha sede antiga.
E AS MARGENS
Respira mansa a superfície do lago
silêncio e lágrimas pesam-lhe as
margens.
Uma mulher quieta
enche as mãos de sangue
cortando o azul
da superfície de vidro.
A CURVA DO RIO
Desces a curva do meu corpo, amado
com o sabor da curva de outros rios
contas as veias e deixas as mãos pousarem
como asas
como vento
sobre o sopro cansado
sobre o seio desperto
com o sabor da curva de outros rios
contas as veias e deixas as mãos pousarem
como asas
como vento
sobre o sopro cansado
sobre o seio desperto
Parte a canoa e rasga a rede
tens sede de outros rios
olhos de peixe que não conheço
e dedos que sentem em mim a pele arrepiada
d’outro tempo
tens sede de outros rios
olhos de peixe que não conheço
e dedos que sentem em mim a pele arrepiada
d’outro tempo
Sou a esperança cansada da vida
que bebes devagar
no corpo que era meu
e já perdeste
andas em círculos de fogo
à volta do meu cercado
Não entres, por favor não entres
sem os óleos puros do começo
que bebes devagar
no corpo que era meu
e já perdeste
andas em círculos de fogo
à volta do meu cercado
Não entres, por favor não entres
sem os óleos puros do começo
e as laranjas.
(Do livro Dize-me coisas amargas como os frutos, 2001)
* * *
As flores com que me vestiram
Eram só
Para arder melhor.
* * *
A terra despiu os mantos
de sombra
para curvar ao dia
seus cabelos
Uma mancha clara
tapou os olhos da lua.
* * *
IDENTIDADE
Quem for enterrado
Vestindo só a sua própria pele
Não descansa
Vagueia pelos caminhos.
(Do livro Ex-votos, 2003)
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