sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

BREVE BALANÇO DO ANO

 












O Brasil viveu o período mais macabro de sua história nos últimos seis anos; em 2022, retomamos a esperança, com a eleição de Lula para presidente.

Apenas este fato já valeu por todo o ano.

Na América Latina, tivemos vitórias eleitorais da esquerda e centro-esquerda no Chile, Colômbia e outros países,  mas sofremos um golpe de estado no Peru e a condenação lavajatista da companheira Cristina Kirchner na Argentina.

A América Latina está polarizada e os conflitos, não apenas eleitorais, devem se agravar nos próximos anos.

Na Europa, os Estados Unidos e a OTAN movem uma guerra por procuração contra a Rússia no território ucraniano, enquanto na Ásia e no Oriente Médio crescem as provocações militares contra a China, a Coreia do Norte e o Irã.

Os EUA tentam, desesperadamente, impor a sua hegemonia em todo o planeta,  mas o rápido crescimento econômico e militar da China e o fortalecimento dos Brics, com o retorno do Brasil ao campo multipolar, indicam a inevitável decadência e queda do Império nos próximos anos e décadas.  

Perdemos Gal Costa, uma das maiores cantoras brasileiras de todos  os tempos, e o que há de melhor na música popular brasileira ainda são os artistas da geração dos anos 1960 – Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Maria Bethânia, todos na faixa dos 80 anos de idade.

No plano pessoal, algumas conquistas e perdas: recebi o grau de shodan (faixa-preta) em Kenbu Tenshin-ryu, uma das modalidades da arte da espada japonesa;  abandonei o curso de instrutores de Tai Chi Chuan, por discordar do bolsonarismo atuante na Sociedade Brasileira de Tai Chi Chuan; voltei a praticar Bojutsu, a arte do bastão longo japonês, com o sensei Rubens Espinoza, iniciai a prática do Kinomichi, arte corporal derivada do Aikidô, e retornei às sessões de zazen, a meditação zen-budista, no Templo Busshinji, da Comunidade Budista Soto zenshu, na Liberdade.

Publiquei dois livros de poesia, Sete olhos & Outros poemas, pela editora Córrego, e Cantigas do Luaréu, pela Arribaçã; iniciei o meu terceiro romance, Janaína, e escrevi alguns poucos poemas novos.  Prefaciei – e participei, com dois poemas – da antologia Uma festa de pão e rosas, dedicada ao centenário do Partido Comunista do Brasil, e publiquei, na Zunái, textos relativos aos 100 anos da Semana de Arte Moderna, duas datas importantes neste ano em que também recordamos o centenário da publicação do Ulisses, de James Joyce, da Terra devastada, de T. S. Eliot, de Trilce, de Vallejo, e de outras obras capitais da literatura universal.

Criei o Banquete – Jornal de Resenhas e Crítica Literária;  publiquei poemas na revista Bric a Brac e em algumas outras revistas nacionais e estrangeiras. E continuo ministrando cursos online no Laboratório de Criação Poética, o que me permite um rico diálogo com meus alunos e alunas, que considero meus amigos e parceiros nesse crime chamado Poesia.  

Em casa, todos bem; adotamos a gatinha Lilith, no início do ano, para fazer companhia ao Simon; Bibi fez 16 anos e completou o ensino médio; e Scheila continua a ser a mulher mais maravilhosa do mundo, companheira para a vida inteira. Acho que é tudo o que tenho a dizer.             

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

A POESIA QUE FAZ SENTIDO

 

A POESIA BRASILEIRA QUE FAZ SENTIDO HOJE é quase clandestina. Apresenta um elaborado trabalho de linguagem, tanto no campo da semântica quanto no da sintaxe, no da estrutura e dos códigos, utiliza todos os recursos disponíveis, desde as metáforas, aliterações e assonâncias até recursos sonoros e visuais das mídias eletrônicas, de maneira radical, sem fazer concessões e sem incomodar-se com a acusação de hermetismo ou "incomunicabilidade". É ignorada pelas grandes editoras -- e dá as costas para elas; não é comentada pelo que sobrou da crítica literária e pouco se importa com essa crítica. Está ausente de premiações e festivais literários. Circula em pequenos grupos de leitores cultos, também poetas, na maioria, vide publicações em redes sociais, revistas, blogues, plaquetes ou livros de tiragem reduzida. É uma poesia crítica, não apenas da realidade, mas também da própria poesia -- da facilidade cada vez mais intolerável da "literatura de mercado", que privilegia o que há de mais banal, até infantil, na produção poética contemporânea. Ela será ignorada pelas antologias e pelos construtores de cânones, como algo "maldito", "elitista" ou "inacessível", e permanecerá silenciada por anos ou décadas. Os poetas sérios farão pouco caso disso e seguirão cada vez mais radicais, ousando escrever a poesia mais original e consistente de nossa época.

sábado, 12 de novembro de 2022

A LITERATURA BRASILEIRA NÃO EXISTE

 

Ou melhor, há várias literaturas dentro dessa literatura: 1) o cânone histórico, sujeito a contínuas revisões críticas, com subtrações e acréscimos, que vai de Gregório de Matos a Arnaldo Antunes e Josely Vianna Baptista; 2) a lieratura experimental, menos lida e valorizada, porém a parte mais viva de nossas letras, que vai de Sousândrade e Pedro Kilkerry a Oswald de Andrade, Patrícia Galvão, Campos de Carvalho, Valêncio Xavier e aos (poucos) poetas e prosadores contemporâneos que pesquisam a poesia visual, sonora, performática, videopoesia e textos de invenção; 3) a "literatura de mercado", publicada por grandes editoras, que recebe prêmios e reconhecimento midiático, porém poucas vezes devido à qualidade artística, e muito mais pela viabilidade comercial de certos autores e obras; 4) a literatura periférica, produzida fora dos grandes centros urbanos, que registra o cotidiano de populações excluídas e apresenta novos autores, leitores e obras, cuja importância social talvez supere a sua importância estritamente literária (ao menos por enquanto); 5) as literaturas orais, que incluem desde os poemas cantados das etnias indígenas e dos quilombolas até a tradição do cordel (que é cantado mas também escrito). O que acontece hoje em dia é o esforço das grandes editoras de criar um mercado editorial voltado ao público "médio", com obras medianas, de autores medíocres, obras de fácil compreensão e rápido retorno comercial, que alimente o circuito editoras-livrarias-mídia-cânone universitário. Diante desse fato, o que um escritor sério pode fazer é dar as costas ao mercado, à moda e à mídia e dedicar-se à criação de obras consistentes, densas, inventivas, que circulem fora (e contra) esse sistema de meios termos. Se possível, ir além de si mesmo e colaborar com formas coletivas de resistência, seja através de revistas, jornais, manifestos, performances e outras ações que mostrem, aos poucos leitores interessados, que ainda há vida inteligente na poesia, no romance, no conto, na dramaturgia e em outros gêneros do que se convencionou chamar de literatura.



 

sábado, 5 de novembro de 2022

CONTRA A CORRENTE







LIERATURA DE MERCADO é a produção literária divulgada por grandes editoras, em especial a Companhia das Letras, que escolhe autores e obras não (apenas) pela qualidade artística, originalidade temática e invenção formal, mas sobretudo pela facilidade de leitura, ou seja, pelo potencial de consumo. A atividade editorial é um segmento da economia que visa o lucro, assim como os açougues e supermercados. Para promover os seus produtos, a indústria editorial promove poetas e romancistas medíocres, ao lado de autores de qualidade já reconhecidos, influencia o resultado de concursos importantes, como o Jabuti, exerce sua hegemonia no que resta de crítica literária no país e faz da Flip o grande show room de seus produtos. O que tudo isso tem a ver com a literatura de qualidade? Muito pouco. O mais trágico é ver autores vendendo a alma, buscando o "sucesso a qualquer preço". Nada disso pode ser evitado, mas é possível uma resistência por parte daqueles que não concordam com os princípios capitalistas aplicados às letras. Essa resistência ganha alguma visibilidade para os que amam a literatura de verdade graças ao heroísmo de pequenas editoras independentes, como a Kotter, Demônio Negro, Córrego, Urutau, Lumme, entre outras, a revistas eletrônicas de qualidade, como Germina, Mallarmargens, Ruído Manifesto e ZUNÁI, REVISTA DE POESIA & DEBATES . Para reforçar essa linha de frente contra a mediocridade coroada foi criado o Banquete, Jornal de Resenhas e Crítica Literária, editado por Rita Coitinho , Paola Schroeder e por mim.

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

QUEM PRECISA DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS?

 








A relevância da Academia Brasileira de Letras para a divulgação de nossa literatura é, há bastante tempo, discutível: poetas e escritores como Monteiro Lobato, Lima Barreto, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Augusto de Campos, Paulo Leminski, Roberto Piva, jamais foram eleitos para se sentarem à mesa dos “imortais”.

A ABL ofereceu o fardão, o chá das cinco e o túmulo gratuito para personagens sinistros de nossa história, entre eles o general Lira Tavares, um dos autores do AI-5 (que assinava sua obra poética com o pseudônimo de "Adelita"), Marco Maciel, José Sarney, Fernando Henrique Cardoso (autor da célebre frase: “esqueçam tudo o que escrevi”), além de personalidades midiáticas como o cirurgião plástico Ivo Pitanguy, o “bruxo” Paulo Coelho e o jornalista do Globo Merval Pereira, conhecido pelo colérico discurso antipetista.

Talvez devido à má fama desses nomes, em busca de alguma credibilidade, a ABL aceitou recentemente como membros Gilberto Gil – notável cantor, compositor e músico brasileiro, cujas letras de canções podem ser consideradas obras literárias, e a atriz Fernanda Montenegro, a grande dama do teatro brasileiro, cuja contribuição à literatura é desconhecida. A relação de todos os nomes apresentada acima nos leva a pensar: que autoridade tem a ABL para julgar a qualidade de uma obra literária? Qual tem sido a sua contribuição para a divulgação da literatura brasileira, no país e no exterior? Qual é a relevância da ABL em nosso cenário cultural e por qual motivo ela ainda existe? Sem dúvida, todas essas questões merecem ser debatidas pela sociedade brasileira, que merece ser informada sobre o que é realizado por essa instituição.

O que pretendo discutir aqui, porém, é outro coisa: o país está tão pobre assim em matéria de poesia? Ou será que não temos uma crítica literária especializada séria na imprensa diária? Lançamentos de livros de poesia raramente são noticiados na mídia impressa (a menos que seus autores pertençam a famílias de prestígio social ou poderio econômico), autores contemporâneos quase nunca são entrevistados em programas de rádio e televisão, as grandes livrarias, como a Livraria Cultura, preferem colocar nas vitrines livros esotéricos, de autoajuda ou de gurus da extrema-direita, como o falecido astrólogo Olavo de Carvalho e o coronel torturador Brilhante Ustra e, para completar o triste cenário, as escolas de ensino médio e muitas faculdades de Letras evitam a literatura contemporânea.

Neste contexto cruel, quem faz a diferença são as pequenas editoras, como a Kotter, Urutau, Córrego, Patuá, Demônio Negro, Oficina Raquel, Dobra Editorial, Lumme Editor, entre outras, que assumem o risco de publicar livros de poesia e prosa de qualidade, geralmente em edições de pequena tiragem e com apurado cuidado gráfico. Livros que, quase sempre, são totalmente ignorados pelos jurados de concursos literários como o Jabuti, que, por razões pouco claras (mas que nada têm a ver com qualidade literária), preferem premiar, sempre, livros publicados pela editora Companhia das Letras (SEIS dos dez semifinalistas na categoria Romance Literário da edição de 2022 do Jabuti são da mesma editora, fato escandaloso e pouco comentado).

A mesma Companhia das Letras que também é a principal beneficiária dos eventos da FLIP, que divulgam sobretudo autores publicados por essa casa editorial, o que contribui tanto para o marketing da editora quanto para a sua contabilidade. Está surgindo no Brasil, impulsionada pelo establishment midiático-editorial, uma LITERATURA DE MERCADO, voltada não à pesquisa de linguagem, à investigação e denúncia da realidade social, à originalidade temática e à criatividade artística, mas destinada a atender um público leitor “mediano”, que jamais leria o Finnegans Wake, mas é capaz de assimilar romances mornos, lineares, com início, meio e fim, ou livros de poesia “angelicais”, fáceis, cheias de piadinhas tolas, à maneira da Poesia Marginal, e um conteúdo diluído do “politicamente correto”. Esta é a receita do sucesso!

Claro: assim como relógio parado está certo ao menos duas vezes por dia, notamos no catálogo da Companhia poetas de qualidade que há muito tempo receberam o reconhecimento por parte da crítica literária, como Arnaldo Antunes e Armando Freitas Filho, autores que “agregam valor à marca” da editora, para usarmos o jargão do marketing. A Companhia publicou uma tradução do Ulisses de James Joyce, mas podemos imaginar o que aconteceria se, em vez de um nome basilar da literatura ocidental, Joyce fosse um jovem romancista brasileiro que oferecesse os originais de Ulisses a essa mesma editora... talvez nem ao menos recebesse uma carta de recusa em linhas breves e polidas, por ser autor de livros difíceis, longos, “cheios de palavras”, como diria certo capitão, que em matéria de livros conhece apenas o de seu ídolo, o coronel torturador Brilhante Ustra.

O que faz a Academia Brasileira de Letras para divulgar os jovens autores de qualidade em relação à publicação, divulgação e reconhecimento de seus livros? Absolutamente nada, apesar do número expressivo de autores que têm publicado livros excepcionais nos últimos anos, como Jade Luísa, Paola Schroeder, Daniela Pace Devisate, Sidnei Olívio, Guilherme Delgado, Edelson Nagues, entre tantos outros, cercados pelo silêncio dos contentes. No entanto, essa é uma poesia que não depende do clube de autoelogio a que se resumiu a ABL, não obtém favores da moda e da mídia, mas insiste em existir e se reinventar, mesmo na condição de ruído, dissonância, resistência à mediocridade. Esta é a poesia de qualidade. É o que conta para hoje e para a posteridade.

OS DESAFIOS DE LULA


 






1) A vitória de Lula, no contexto internacional, significa o fortalecimento do campo democrático-progressista de esquerda ou centro-esquerda na América  Latina, que inclui hoje Cuba, México, Honduras, Nicarágua, Venezuela, Colômbia, Chile, Bolívia, Peru, Argentina e Brasil, restando ainda enclaves de direita no Equador, Uruguai, Paraguai e em vários países da América Central. Com o retorno do Brasil ao polo progressista, organismos de cooperação regional como o Mercosul, a Unasul e a Alalc, que não têm a participação dos Estados Unidos, ficarão mais fortes, e a Organização dos Estados Americanos  (OEA), ou o “ministério das colônias ianques”, segundo Che Guevara, cairá na irrelevância.  

2) O Brasil terá uma presença mais destacada nos Brics, ao lado da Rússia, Índia, China e África do Sul, e talvez o bloco se amplie com o ingresso da Argentina e do Irã. Com isso, o Banco dos Brics poderá substituir as organizações financeiras controladas pelos EUA, financiando projetos de desenvolvimento com juros mais baixos, e em algum futuro os Brics poderão adotar uma moeda própria, em substituição ao dólar. Com o Brasil na vanguarda da América Latina, os acordos comerciais entre os Brics e o Mercosul também poderão crescer, o que contribuirá para o enfraquecimento da hegemonia norte-americana e para a construção de uma nova ordem multipolar.

3) A derrota de Bolsonaro é uma derrota para o fascismo internacional, que até então tinha o Brasil como país-líder, sobretudo em organizações para o combate ao aborto e à assim chamada “ideologia de gênero”. Após a derrota de Trump nas eleições norte-americanas, Bolsonaro passou a ser o líder de referência dos movimentos fascistas, que hoje estão no poder na Hungria, Polônia, Itália, Suécia e outros países europeus.

4) No plano nacional, a primeira observação importante a ser realizada é que as eleições mostraram um Brasil dividido: enquanto o Sul, Sudeste e Centro-Oeste deram a vitória a Bolsonaro, o Norte e o Nordeste deram a vitória final a Lula. Um país dividido é sempre mais difícil de ser governado e Lula terá que adotar uma política de curto prazo para ampliar a sua popularidade e conquistar corações e mentes até agora contrários ao petista.

5) Esta divisão acontece também nos governos estaduais, que igualmente estão polarizados, 11 governadores estão alinhados com Lula e 14 contra. Como os estados e municípios dependem de verbas federais, porém, talvez Lula consiga costurar, com prefeitos e governadores de oposição, uma política de convivência mutuamente satisfatória, que evite uma ruptura e conflito entre o Executivo Federal e os governos estaduais e municipais.

6) No Congresso Nacional, essa polarização adquire outro contorno, pois mais da metade do Congresso Nacional é controlado pela direita e pela extrema-direita. Os partidos da coligação de Lula somam pouco mais de cem deputados, o que significa a necessidade de se obter apoio de outras legendas e parlamentares para a aprovação dos projetos do Executivo. Geraldo Alckmin foi escolhido para ser o vice de Lula exatamente para desempenhar esse papel: o de conversar com deputados e senadores do MDB, PSDB, União Brasil e outros do Centrão que eventualmente possam somar forças à bancada governista. Não será uma tarefa fácil e, caso fracasse, nada impede que o Congresso Nacional tente votar o impeachment de Lula. Aguardemos.

7) A Lei de Diretrizes e Bases Orçamentárias, ou LDO, para 2023 já foi aprovada, com cortes significativos para as áreas de saúde, educação, ciência e tecnologia etc. Lula terá de dialogar com o Congresso para mudar a LDO, caso queira, em seu primeiro ano de governo, retomar programas sociais como o Minha Casa Minha Vida, o Ciência sem Fronteiras etc.

8) Além das articulações políticas em Brasília, os movimentos sociais terão importância fundamental para pressionar o Congresso Nacional a votar a favor das pautas sociais; resta saber se os partidos de esquerda, centrais sindicais, entidades de negros, mulheres, estudantes etc. serão protagonistas ou se, como aconteceu na época dos governos de Lula e Dilma, guardarão suas bandeiras em casa.

9) A ameaça golpista não está descartada, porém, não tem a força que os bolsominions acreditavam, por várias razões: a) os Estados Unidos já declararam não apoiar qualquer aventura golpista e Biden já telefonou a Lula para lhe dar os parabéns; b) no mesmo dia da apuração, além dos EUA, China, União Europeia, México, Argentina e outros países reconheceram a vitória de Lula; c) os presidentes da Câmara Federal e do Senado também reconheceram o novo governo e até o Inominável, que telefonou para Alexandre de Moraes aceitando o resultado das eleições; d) a Fiesp, a Febraban e até entidades do agronegócio já se manifestaram no ano passado, no 7 de setembro, contra qualquer aventura golpista e pelo respeito ao estado de direito e à democracia; e) a Igreja Católica e parte da mídia hegemônica assumiram idêntica postura; f) as Forças Armadas nunca deram um golpe de estado sozinhas. Mesmo em 2016, quando Dilma foi derrubada, houve um amplo leque de forças, sobretudo civis, que “legitimaram” o golpe de estado. Em 1964, aliás, também foi assim, apesar do protagonismo assumido pelas Forças Armadas. Hoje, concretamente, o golpismo se resume ao movimento dos caminhoneiros, que pode ser facilmente desarticulado pela Polícia Federal ou pela Polícia Rodoviária Federal, por pressão do Judiciário, e às loucuras de Roberto Jefferson e da pistoleira espanhola  Carla Zambelli, que podem ter agido do modo como agiram para incentivar uma ação das milícias paramilitares, o que não aconteceu. Sem uma articulação de forças que envolve planejamento, logística e sobretudo o apoio do Exército, da Polícia Militar, do STF, da classe média e sobretudo dos EUA, não se faz golpe de estado. Ações isoladas são demonstrações psiquiátricas, patéticas, nada mais. Claro que haverá tentativas golpistas contra Lula, sobretudo com um Congresso Nacional dominado pela direita, mas o que vemos hoje é algo tão bizarro e tosco quanto o desfile de tanques velhos da Marinha soltando fumaça preta no 7 de setembro.

A existência dessas milícias e de arsenais privados de armas, porém, ameaçam a democracia e Lula precisa, em seu primeiro ano de mandato, adotar uma política de desarmamento, que inclua o fim dos clubes de tiro e de caçadores de animais. Não será uma tarefa fácil desarmar os fascistas e para isso o Congresso deve votar novas leis específicas e a Polícia Federal ser chamada, sempre que for necessário.

10) O bolsonarismo, enquanto ideologia, prática política, conjunto de preconceitos, discurso de ódio e ações de violência continuará a existir por anos ou décadas. Assim como a Alemanha, após a derrota na II Guerra Mundial, iniciou um processo de desnazificação, com o julgamento e prisão dos criminosos nazistas e a interdição de qualquer tipo de propaganda inspirada nas ideias de Hitler, precisamos desbolsonarizar o país, em uma ação que envolva a educação, a imprensa, o judiciário, campanhas públicas para a reeducação da sociedade e a dissolução das Polícias Militares e outras organizações terroristas. É necessário desarmar e prender os milicianos, os agropecuaristas envolvidos em atos de violência no campo e a adoção de leis duras que punam qualquer ação de racismo, homofobia ou misoginia. As instituições religiosas precisam pagar impostos e serem orientadas a não realizarem discursos de ódio, sob pena de responder a ações legais. As Forças Armadas devem cumprir apenas a função de defender a soberania do território nacional contra agressões externas, sendo necessário para isso alterar a Constituição. Por fim, todos os responsáveis por atos de corrupção, violência ou propaganda de ódio durante o período bolsonarista precisam ser presos, julgados e condenados. Tudo isso parece utopia e com certeza não será feito em curto período de tempo, mas, se não houver uma política eficaz de combate ao fascismo, seremos novamente vítimas dele em futuro próximo.        

11) Por fim, a economia. O governo Lula não será um governo petista, nem de esquerda, no máximo de centro-esquerda, em aliança com setores democráticos da burguesia. O PAPEL HISTÓRICO DE LULA não é o de liderar a revolução socialista no Brasil, mas sim o de fortalecer a democracia, o estado de direito, o desenvolvimento econômico com distribuição de renda e inclusão social, com soberania e defesa dos interesses estratégicos nacionais. Com Lula será possível fazer com que o Brasil finalmente ingresse na idade contemporânea, superando o atraso secular do país em relação às nações desenvolvidas. Cabe a ele a tarefa de impulsionar o desenvolvimento industrial, científico e tecnológico do país, investir na educação, na saúde, na cultura, na erradicação da fome e da miséria. Nessa reinvenção ou refundação do Brasil é preciso defender a visão do país como um estado laico, que respeite os direitos dos trabalhadores, das mulheres, negros, índios, homoafetivos e outros grupos sociais discriminados. Hoje, não há condições objetivas ou subjetivas para que aconteça uma revolução. Fazer com que o Brasil se torne um país próspero, independente, moderno, que supere a monocultura para exportação e implemente a reforma agrária, fortaleça a agricultura familiar e a produção de alimentos orgânicos, sem destruir o meio ambiente, já será um imenso avanço civilizacional. O principal desafio econômico de Lula será o de conciliar um programa de reindustrialização do país com algum controle do teto de gastos e a adoção de uma Nova Legislação Trabalhista, construída conjuntamente pelo governo federal, as centrais sindicais e as entidades empresariais. Como isso acontecerá, não tenho a menor ideia, e com certeza será o maior desafio histórico de toda a carreira política de um operário metalúrgico pernambucano chamado Luís Inácio Lula da Silva, que se tornou pela terceira vez presidente do Brasil.

domingo, 23 de outubro de 2022

PARA DESAFINAR O SILÊNCIO DOS CONTENTES

 










A literatura brasileira morreu? Não, ela está viva, muito viva, só não encontra recepção adequada da crítica literária que, esta sim, morreu, ao menos nos espaços tradicionais onde antes ela se manifestava. Os grandes jornais diários extinguiram seus suplementos de cultura, como o antigo Folhetim ou o caderno Mais!, do jornal Folha de S. Paulo,  o Suplemento de Cultura do Estado de S. Paulo e o Suplemento Literário de Minas Gerais, substituídos por editorias de variedades que preferem abordar filmes de sucesso comercial, best-sellers de grandes editoras ou programas de televisão. 

A devastação do jornalismo cultural é antiga, vem desde a reforma editorial dos jornais diários que sucedeu à queda do regime militar, em 1984, quando a imprensa tirou a sua máscara de “pluralista e democrática” e se assumiu enquanto segmento empresarial que visa o lucro, similar à agropecuária e aos açougues, deixando sua ideologia cada vez mais explícita, desde os editoriais até os enfoques dos artigos (supostamente) de informação. 

No campo do neoliberalismo, a cultura vale apenas os anúncios publicitários pagos por grandes editoras, pela indústria fonográfica ou distribuidoras de cinema. As poucas revistas mensais que dedicam algum espaço (cada vez menos) à literatura, por sua vez, têm a “curadoria” de grupos estreitos, que só publicam resenhas de autores que fazem parte de suas “panelinhas” de ferrabrazes. E assim a crítica literária minguou, ao menos na mídia impressa, embora sobreviva nas universidades públicas, nas pesquisas de mestrado e doutorado, que apresentam trabalhos de alta qualidade, mas, no entanto, ficam restritas aos muros acadêmicos. 

Há revistas eletrônicas de qualidade na internet, como Germina, Musa Rara, Mallarmargens, Zunái e muitas outras, porém, não são publicações especializadas na crítica literária; são revistas de cultura, que mantêm viva no Brasil a circulação de nossa melhor poesia e prosa, e também obras de artistas plásticos, entrevistas, artigos de polêmica, entre outras pautas. 

Por todas essas razões, os editores do Banquete – que pedem essa palavra de empréstimo ao ideário antropofágico de Oswald de Andrade, no ano do centenário da Semana de Arte Moderna – resolveram criar a presente publicação, que procura conciliar o pluralismo com a exigência da qualidade, sem endeusarmos úteros angelicais de supostos cânones fabricados pelo marketing rumoroso. 

Banquete não se curva aos poderosos das grandes editoras; nosso princípio é oferecer aos leitores leituras críticas de obras em prosa e poesia que se destacam pela inventividade formal, pela originalidade temática, pela consistência, enfim. Em nosso festim antropofágico, só queremos as carnes mais suculentas, não as peles e os ossos oferecidos nos açougues pelos sobrinhos do Capitão. 

Enfim, é isso. Viemos para desafinar o silêncio dos contentes, parodiando outro antropófago visionário, Joaquim de Sousândrade, em seu épico O guesa. Agora, arregacem os caninos e boa leitura!

(Editorial-manifesto do Banquete -- Jornal de Resenhas e Crítica Literária. Endereço: https://www.banquetejornal.com/blog)

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

ESPELHOS D’ÁGUA EM NOITES SEM LUA

 






Poesia é um lugar que não se revela, do poeta Sidnei Olívio, publicado pela editora Penalux, é um livro singular, em que o autor revela raro manejo das artes do verso, sensibilidade musical acurada, criação sutil de cenas e atmosferas e um certo abstracionismo verbal, notável sobretudo nesta composição sem título, uma das mais densas e bem elaboradas do volume: “os olhos atrás do espelho: / pálpebras / que não se abrem por inteiro / (alguma coisa de encanto um canto / que atravessa o silêncio / e não se diz”, peça de extrema delicadeza que convida o leitor para uma viagem interpretativa, sem planos prévios ou roteiros. Na segunda parte do poema, o autor prossegue: “pele nua escassa melanina / que recusa o sol / a luz que reflete / o nome apenas / invólucro tênue / como a pena modulando / a palavra / é voo”. Temos aqui um jogo engenhoso entre o visível e o invisível, o audível e o inaudível, o pensável e o impensável, enfim, um jogo nas fronteiras, nos interstícios do pensamento e da percepção sensorial. Neste sentido, é um poema logopaico, palavra que se refere à “dança do intelecto entre as palavras”, segundo o poeta e crítico norte-americano Ezra Pound. Se é possível relacionarmos esta poesia com a discussão sobre o conhecimento e a reflexão existencial, ela é, antes de tudo, metalinguística: antes de dizer algo sobre o mundo e as coisas, e até mesmo sobre o íntimo, ela diz algo sobre si mesma, como lemos em outra peça: “toda imagem multiplicada / reluz a nudez/  :/  pele / tinta / pincel / o papel ainda que longevo / é palco de desejos / e gestos”, poema de extrema concisão que recorda a arquitetura poética japonesa, inclusive pela disposição geométrica das linhas na página, quase à maneira da caligrafia oriental. O debate sobre o estar no mundo está presente, porém de um modo tão sutil e misterioso que ultrapassa qualquer viés confessional, como lemos nestas linhas: “tudo o que contorce dentro do corpo / suspensos como nuvens / voltam sempre a desaguar / invento pois dois longos olhos / à frente do abismo”. Estamos diante de um livro de enigmas, um livro-oráculo, voltado ao leitor capaz de decifrar “o reflexo impossível dos espelhos d´água em noite sem lua”. Seria tarefa muito difícil descobrir a vertente poética em que se situa o autor, pela extrema singularidade de seus versos, mas poderíamos incluí-lo entre poetas portugueses como Fiama Hasse Pais Brandão, Antônio Ramos Rosa, Luiza Neto Jorge, um certo Herberto Helder, ou talvez junto a poetas brasileiros insólitos, como Roberto Piva ou Hilda Hilst. É uma poesia inclassificável, que nos surpreende a todo momento por sua beleza e alto lirismo.   

Sidnei Olívio é um poeta raro entre os raros.

 

Claudio Daniel 

UMA MENSAGEM DENTRO DA GARRAFA

 



 





A presença do índio na literatura brasileira é registrada desde a Carta de Pero Vaz de Caminha (“homees pardos todos nus sem nhuua cousa que lhes cobrisse suas vergonhas”, “moças asy nuas que nom pareçiam mal”), primeiro documento literário produzido nesta Terra de Santa Cruz. No século XVI, está inclusa no vocabulário do poeta baiano Gregório de Matos, em sua inventiva miscigenação de termos indígenas (caramuru, paiaiá, cobepá, aricobé), africanos, latinos e lusitanos, e também na temática de cartas e sermões do padre Antônio Vieira, como o Sermão da Sexagésima ou o Sermão da Epifania, mas é a partir do Romantismo que o índio será protagonista dos poemas de Gonçalves Dias, como I Juca Pirama, e dos romances de José de Alencar, como Iracema e O guarani, ainda que numa feição europeizada, que Oswald de Andrade chamaria, no Manifesto Pau-Brasil, de “índio de lata de biscoito”. 

Apesar da retórica pomposa e idealizante, esses autores incorporaram no léxico português palavras como maracá, cauim, piaga muçurana, bem como as referências a armas, adereços, instrumentos musicais e outros objetos utilizados no cotidiano pelos índios. O primeiro poeta a tratar do tema indígena com enfoque crítico foi o maranhense Joaquim de Sousândrade, autor do poema épico O guesa errante, que denuncia os males do colonialismo português, da exploração da mão-de-obra escrava e da catequização jesuíta, responsáveis por um processo de genocídio humano e cultural que persiste até os dias atuais. Sousândrade, o mais moderno de nossos românticos, na seção do Guesa intitulada O inferno de Wall Street, no Canto X, irá ainda além, observando a hegemonia do capitalismo financeiro e suas consequências para os povos de países sob o jugo do grande capital internacional (“Desde Christie, a Grande Bretanha / Se mede co’o Império que herdei... / Rainha-Imperatriz...! / = Os Brasis / Vos farão Imperador-Rei...”). 

No episódio do Canto II intitulado Tatuturema, palavra que designa um festim oferecido a Jurupari, na região do Alto Solimões, na Amazônia, Sousândrade escreve: “Missionário barbado / que vens lá da missão / Tu não vais à taberna / que interna / tens em teu coração”. A denúncia da hipocrisia religiosa e a exaltação da sensualidade indígena estará presente, sobretudo, em outro poeta de nosso Romantismo, Bernardo Guimarães, autor de peças de irreverente erotismo como O elixir do pajé, onde lemos: “E ao som das inúbias, / ao som do boré /, na taba ou na brenha, / deitado ou de pé, / no macho ou na fêmea / de noite ou de dia, fodendo se via / o velho pajé!”. No poema de Guimarães, o índio é retratado não como um Siegfried amazonense, ao estilo d’Os Timbiras, mas como o puro pagão, sensual e feiticeiro, tão estranhamente outro, em contraste com o pundonor lusitano.  Este poema, assim como A origem do mênstruo, também de Guimarães, foi recuperado na segunda metade do século XX pelo poeta mineiro Sebastião Nunes, que resgatou do esquecimento essa lírica erótico-satírica, que ele editou em álbum primoroso pelo selo Edições Dubolso.

Será a partir do Modernismo, porém, em especial com Mário e Oswald de Andrade e Raul Bopp, que nossa literatura irá não apenas resgatar o vocabulário, costumes, religião, mitologia, folclore e manifestações artísticas dos povos indígenas, mas também interagir com eles, de maneira criativa, em diálogo com as vanguardas europeias, no Movimento Antropofágico, responsável por obras como Macunaíma, de Mário de Andrade, Cobra Norato, de Raul Bopp, e, nas artes visuais, por quadros como A cuca e o Abaporu, de Tarsila do Amaral. Os modernistas buscaram nas culturas indígenas um antídoto libertário à sociedade patriarcal, católica e aristocratizante de nossas elites provincianas. O recurso utilizado pelos modernistas para dessacralizar os valores e práticas discriminatórias daquela sociedade, nascida da monocultura, da catequese e do escravismo foi o escracho, o deboche, o sarcasmo. 

Assim, Oswald de Andrade escreve em seu poema Erro de português: “Quando o português chegou / debaixo de uma bruta chuva / vestiu o índio / que pena! fosse uma manhã de sol / o índio tinha despido / o português”. Mário de Andrade, por sua vez, irá recuperar os mitos indígenas, reinterpretados sob viés paródico – como o Curupira, Ceiuci, Ci, a Mãe do Mato, as icamiabas –, em seu romance-rapsódia Macunaíma, onde a demanda do Santo Graal é substituída pela busca ao muiraquitã, amuleto amazônico roubado por Piaimã, rico fazendeiro de São Paulo que gostava de comer carne humana.

Todo esse breve histórico da presença indígena na literatura brasileira foi necessário para situarmos o novo livro de Edir Pina de Barros, Lâminas da barbárie (Kotter Editorial), poeta e antropóloga que desenvolve o tema de maneira original e consistente. A obra é dividida em três partes, Conquista, Barbárie Bakairi, em que a autora desenvolve, em seu percurso criativo, temas como a tomada das terras indígenas, o genocídio, a perda da identidade cultural, a transformação do meio ambiente pelos interesses econômicos, o ocultamento da história das nações indígenas, usando para isso as mais diversa estruturas formais, como o soneto camoniano, o poema em prosa e o pantum –composição poética oriunda da Malásia, com os versos divididos em quartetos e as rimas cruzadas. Nesse gênero pouco praticado em nossa literatura, Edir Pina Barros escreve:

 

MUTAÇÕES
(Pantum)

Um mar de soja é tudo o que se vê
agora ali, nos campos do cerrado,
não resta mais sequer um pé de ipê
nem olhos d’água, tudo foi arado;
 
agora ali, nos campos do cerrado,
não correm mais riachos transparentes,
nem olhos d’água, tudo foi arado 
de soja e sorgo, viçam as sementes;
 
não correm mais riachos transparentes,
nem lambaris pequenos, mas ladinos,
de sorgo e soja, viçam as sementes;
por conta da ganância, desatinos;
 
nem lambaris pequenos, mas ladinos,
porque foram as matas derrubadas,
por conta da ganância, desatinos, 
secaram os riachos, as aguadas;
 
porque foram as matas derrubadas,
não mais  existem bichos pequeninos, 
secaram os riachos, as aguadas
onde pescavam homens e meninos;
 
não mais existem bichos pequeninos, 
nem peixes não existem mais nos rios
onde pescavam homens e meninos,
(os leitos estão secos, tão sombrios);
 
nem peixes não existem mais nos rios
- piquiras, lambaris ou matrinxãs –
os leitos estão secos, tão sombrios,
nas beiras não se têm panapanãs;
 
piquiras, lambaris ou matrinxãs,
não buscam, rio acima, seus berçários,
nas beiras não se têm panapanãs
nem cantam juritis, japus, canários;
 
não buscam, rio acima, seus berçários,
os peixes que passavam reluzentes,
nem cantam juritis, japus, canários.
que, outrora, ali viviam tão contentes;
 
os peixes que passavam reluzentes,
nos rios desses povos milenares,
que, outrora, ali viviam tão contentes,
no seu sagrado chão, antigos lares;
 
nos rios desses povos milenares,
(quem olha não entende ou mesmo crê)
no seu sagrado chão, antigos lares,
um mar de soja é tudo o que se vê!

 

 

Em versos impecáveis, com métrica de dez sílabas e ritmo binário, a poeta registra, com clareza cabralina, a mutação geográfica imposta na região do cerrado pelos reis da soja, onde “ não resta mais sequer um pé de ipê / nem olhos d’água, tudo foi arado”. Mutação geográfica que traz consequências para todo o ecossistema, pois agora não há  “nem lambaris pequenos, mas ladinos, / porque foram as matas derrubadas, / por conta da ganância, desatinos, / secaram os riachos, as aguadas; / porque foram as matas derrubadas, / não mais existem bichos pequeninos, / secaram os riachos, as aguadas / onde pescavam homens e meninos”. 

O impacto humano e cultural dessa cruel metamorfose é sintetizada com sutileza na última estrofe: “nos rios desses povos milenares, / (quem olha não entende ou mesmo crê) / no seu sagrado chão, antigos lares, / um mar de soja é tudo o que se vê!”. A vocação colonial e semicolonial do Brasil para a monocultura destinada à exportação, tema abordado por Gilberto Freyre em seu clássico Casa grande & senzala, é aqui sintetizado de modo lapidar pela poeta, que na segunda seção do livro, Barbárie, faz o relato do assassínio das comunidades indígenas, iniciado em 1500 e continuado até os dias atuais. Um morticínio humano e cultural, como a autora registra no primeiro poema da série (sem título):

 

I

 

Quantas balas

em cinco séculos

para exterminar

mais de mil povos?

 

Bugreiros, capangas,

batedores de mato,

correrias e chacinas,

“guerras justas”, álcool.

 

 

II

 

Quantas balas

no tekoha sagrado

dos Guarani-Kaiowá?

Nem Ñanderu sabe.

 

Milícias encapuzadas

fecham o cerco,

acuam, matam

como se matam bichos.

 

Nesta composição, como em outras do volume, Edir Pina de Barros utiliza de forma expressiva, quase mântrica, palavras como tekoha ou tekoa, termo que significa o “lugar onde os Kaiowa realizam o seu modo de ser, espaço geográfico em que se realiza a vida econômica, social, política e religiosa”, conforme nota da própria autora. Em outra composição, agora escrita em prosa, a autora nos remete à quase invisibilidade do massacre dos Akroá-Gamella, em timbre seco de crônica jornalística, como em algumas peças de Manuel Bandeira:

Luta desumana, desigual.  Duas centenas de homens com armas de fogo, facões, pedaços de pau, contra trinta homens, mulheres, crianças, correndo e caindo no pasto: vinte e dois feridos. Um foi baleado no tórax, na perna, golpeado na testa e viu serem decepadas as suas duas mãos. Outro, ferido à bala, depois de muitas pauladas teve sua mão direta arrancada por golpe certeiro de facão. Seus joelhos foram cortados nas articulações para que não pudessem correr, como se faz com búfalos e bois que invadem roça dos outros na baixada maranhense.  O agressor relatou que precisou “pisar em suas pernas para retirar o facão que ficou cravado no osso, como quem retira um machado cravado no tronco de uma árvore”. Ribamar não dança mais, a sua mão reimplantada não lhe pertence mais: não bate tambores rituais, não caça-pesca-planta, não tem forças para nada, nada suporta, apenas dói.  

 

 Na terceira seção do livro, por fim, Edir Pina de Barros poetiza a saga dos bakairi, grupo indígena que habita o centro de Mato Grosso, em particular as terras indígenas de Santana (Iemârire) e Bakairi. Numa sequência de poemas numerados, sem título, a poeta nos apresenta a uma insólita paisagem onde “Nenhuma fruta é a mesma / que mãos estranhas colhem. / Nenhuma pedra é a mesma / que outros olhos veem. / Tudo, tudo é diverso. / Vê-se a Serra Azul outro mundo, outro universo. Não só se vê o diverso / escuta-se o diverso / porque as falas são outras.

Os mapas são outros, / outras são as águas / outra língua e pensar. / As correlações são outras, / as traduções são outras, / e o tempo é circular”. Nessa terra de radical estranheza, devastada pela sanha do saque, a magia e o mito insistem em existir, apesar da cruz e da espada, como lemos nesse belíssimo poema em prosa de Edir Pina de Barros:

 

HOMEM-JAGUAR

 

Em nada lembrava o homem da noite anterior. Era outro quando evocou seu poder xamânico na kâti pouco iluminada. Com assovio agudo invocava seus piajes. Dialogava com senhores de vários domínios e de poderes diversos. Entre nuvens de fumaça se debruçava sobre a rede de algodão. Lutava para curar a criança em febre. Atravessara os reinos sombrios dos rios subterrâneos. Cortara os ventos e campos à procura de uma de suas almas perdidas. Em transe, falara a língua das onças e dos mortos para salvar sua vida. Amanhecera. Agora estava ali, sentado no banco zoomorfo. O olhar perdia-se no chão do taséra. Daquele homem-jaguar, poderoso e altivo, nada restara.  O dia trouxe consigo a realidade do jugo colonial.

  

Numa leitura intertextual, comparativa, poderíamos comparar este poema, por sua perfeição formal e riqueza de imaginário, a certas composições de Josely Vianna Baptista – outra estudiosa de mitos brasileiros e ameríndios – em livros como Roça barroca, e ainda aos orikis iorubás traduzidos por Antônio Risério, em seu livro essencial Oriki Orixá, dois marcos da etnopoesia no Brasil, porém, há aqui um elemento diferenciador: ao lado da recuperação da fala do outro, em toda a sua beleza e singularidade, da recuperação de sua língua, de seus deuses, cantos e danças, temos o olhar contemporâneo de quem registra, para a posteridade, o brutal assassinato de centenas de povos da floresta, os motivos econômicos por trás do morticínio e o silêncio ruidoso daqueles que têm olhos para ver, e não veem. O livro de Edir Pina de Barros não é apenas uma bela reunião de poemas, mas uma mensagem dentro de uma garrafa jogada ao oceano, para ser descoberta, quem sabe, em algum futuro mais feliz para a nossa nação.

 

Claudio Daniel 

terça-feira, 11 de outubro de 2022

O ESPANTO EM FORMA DE POESIA

 










À beira da palavra, livro de estreia de Paola Schroeder, reúne uma série de composições líricas em que se destacam a temática erótica, o mergulho existencial, a reflexão sobre o tempo, o amor, a beleza, a poesia, a morte e as relações interpessoais, por vezes com tinturas de melancolia: “Tudo na alma é assombro, tudo desencontro”, escreve a autora paranaense, nascida na cidade de Toledo.  Esta é uma escrita ácida, que nos faz lembrar da concisão cortante de um Paul Celan – “Forca virada para o inferno. / À boca uma fenda, um abismo”. A sintaxe é reduzida ao mínimo necessário para a expressão poética e no campo semântico vigora o princípio da economia construtiva, para que não haja desperdício – nesse sentido, ela se afasta do barroquismo de um Herberto Helder, com o qual tem outras afinidades, como a celebração do corpo. Há também uma abstração metafórica que solicita a participação imaginativa do leitor, que pode traçar diferentes rotas interpretativas, e sobretudo imagens de alto impacto, em que não estão ausentes a ironia, o sarcasmo e o humor negro. Paola Schroeder apresenta uma escrita poética densa, enigmática, de alguém que costuma “habitar labirintos”. O seu cadinho utópico –  não no sentido coletivo, talvez presente de modo indireto em certos poemas que tratam da exclusão social urbana – “A ideia de pátria se dissolve / na carne cortada pelo frio” –, mas no sentido de uma utopia individual, sensorial e estética, é a busca da beleza como antípoda da mesquinharia, da miséria material e de espírito, enfim, da barbárie contemporânea, que no lugar da divindade ou da arte presta serviço devocional ao lucro capitalista, à violência, à ignorância e à completa ausência do espírito de compaixão e solidariedade. Ao eleger a experiência sensorial e o cultivo do belo, a autora não se isola numa torre de marfim ou de ametista, mas exibe para nós, em um espelho imaginário, a feiura do mundo em que vivemos. Encontramos, nessa poesia inquieta, a influência das artes visuais, sobretudo do desenho anatômico, com descrições imagéticas minuciosas – “Pescoço traçado por finas ondas. / Colo brilhante de linhas e sombras. / Pele fluída revela veias, ossos e movimentos”, e ainda figuras de linguagem como o paradoxo e o oxímoro – “Minha infância envelhecida”, “Amarelo que te quero azul”; “Me alimento do tempo que em mim não há” – e imagens poéticas quase surrealistas: “Meus olhos nas tuas mãos / Tuas mãos dentadas / Meus olhos sem asas”. O universo feminino, noturno, aquático, lunar, regido por Lilith, dá o tom em diversas composições do volume, numa releitura menos romântica do que sensual, quase mística e órfica, em paralelo possível com Herberto Helder e Hilda Hilst: “Antes da fala, / a mulher. / Antes da palavra, / a imagem. / No início do verbo, / Seu corpo. / No fim da boca, / sua boca. / Mulheres de água / em dissolução”. O diálogo consigo mesma, com o seu “duplo” (Doppelgänger), seguindo uma tradição alemã medieval que teve ilustres desdobramentos em autores como Gerard de Nerval e Jorge Luis Borges, também está presente na poesia de Paola Schroeder, como nesta peça notável, da qual citamos alguns versos: “Estou indo / de forma brutal / ao meu encontro. (...) Quem sou eu nessa imagem invertida, / brincando de mimetismo / em busca de dor. / Me farei existência / quando um dia flor”. Estes são apenas alguns dos múltiplos aspectos que poderíamos abordar na imersão nessa poesia de águas profundas, mas talvez sejam pistas suficientes para despertar o interesse do leitor, que em sua jornada nessa insólita e fascinante escrita descobrirá outras camadas de sentido. Paola Schroeder é, sem favor, uma das poetas que mais se destacam no panorama da nova poesia brasileira, aquela que circula na contramão do lobby conformista hegemônico, e sua estrela tende a brilhar cada vez mais, com a bênção de todas as deusas. 

 

Claudio Daniel, 2022, ano regido por Iemanjá