terça-feira, 11 de outubro de 2022

O ESPANTO EM FORMA DE POESIA

 










À beira da palavra, livro de estreia de Paola Schroeder, reúne uma série de composições líricas em que se destacam a temática erótica, o mergulho existencial, a reflexão sobre o tempo, o amor, a beleza, a poesia, a morte e as relações interpessoais, por vezes com tinturas de melancolia: “Tudo na alma é assombro, tudo desencontro”, escreve a autora paranaense, nascida na cidade de Toledo.  Esta é uma escrita ácida, que nos faz lembrar da concisão cortante de um Paul Celan – “Forca virada para o inferno. / À boca uma fenda, um abismo”. A sintaxe é reduzida ao mínimo necessário para a expressão poética e no campo semântico vigora o princípio da economia construtiva, para que não haja desperdício – nesse sentido, ela se afasta do barroquismo de um Herberto Helder, com o qual tem outras afinidades, como a celebração do corpo. Há também uma abstração metafórica que solicita a participação imaginativa do leitor, que pode traçar diferentes rotas interpretativas, e sobretudo imagens de alto impacto, em que não estão ausentes a ironia, o sarcasmo e o humor negro. Paola Schroeder apresenta uma escrita poética densa, enigmática, de alguém que costuma “habitar labirintos”. O seu cadinho utópico –  não no sentido coletivo, talvez presente de modo indireto em certos poemas que tratam da exclusão social urbana – “A ideia de pátria se dissolve / na carne cortada pelo frio” –, mas no sentido de uma utopia individual, sensorial e estética, é a busca da beleza como antípoda da mesquinharia, da miséria material e de espírito, enfim, da barbárie contemporânea, que no lugar da divindade ou da arte presta serviço devocional ao lucro capitalista, à violência, à ignorância e à completa ausência do espírito de compaixão e solidariedade. Ao eleger a experiência sensorial e o cultivo do belo, a autora não se isola numa torre de marfim ou de ametista, mas exibe para nós, em um espelho imaginário, a feiura do mundo em que vivemos. Encontramos, nessa poesia inquieta, a influência das artes visuais, sobretudo do desenho anatômico, com descrições imagéticas minuciosas – “Pescoço traçado por finas ondas. / Colo brilhante de linhas e sombras. / Pele fluída revela veias, ossos e movimentos”, e ainda figuras de linguagem como o paradoxo e o oxímoro – “Minha infância envelhecida”, “Amarelo que te quero azul”; “Me alimento do tempo que em mim não há” – e imagens poéticas quase surrealistas: “Meus olhos nas tuas mãos / Tuas mãos dentadas / Meus olhos sem asas”. O universo feminino, noturno, aquático, lunar, regido por Lilith, dá o tom em diversas composições do volume, numa releitura menos romântica do que sensual, quase mística e órfica, em paralelo possível com Herberto Helder e Hilda Hilst: “Antes da fala, / a mulher. / Antes da palavra, / a imagem. / No início do verbo, / Seu corpo. / No fim da boca, / sua boca. / Mulheres de água / em dissolução”. O diálogo consigo mesma, com o seu “duplo” (Doppelgänger), seguindo uma tradição alemã medieval que teve ilustres desdobramentos em autores como Gerard de Nerval e Jorge Luis Borges, também está presente na poesia de Paola Schroeder, como nesta peça notável, da qual citamos alguns versos: “Estou indo / de forma brutal / ao meu encontro. (...) Quem sou eu nessa imagem invertida, / brincando de mimetismo / em busca de dor. / Me farei existência / quando um dia flor”. Estes são apenas alguns dos múltiplos aspectos que poderíamos abordar na imersão nessa poesia de águas profundas, mas talvez sejam pistas suficientes para despertar o interesse do leitor, que em sua jornada nessa insólita e fascinante escrita descobrirá outras camadas de sentido. Paola Schroeder é, sem favor, uma das poetas que mais se destacam no panorama da nova poesia brasileira, aquela que circula na contramão do lobby conformista hegemônico, e sua estrela tende a brilhar cada vez mais, com a bênção de todas as deusas. 

 

Claudio Daniel, 2022, ano regido por Iemanjá

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