terça-feira, 11 de outubro de 2022

A POESIA NO CAMINHO DO VENTO

 












Alma corsária, novo livro de poemas de Claudia Roquette-Pinto (Editora 34), reúne composições líricas de expressiva musicalidade, aliada ao que Ezra Pound chamava de logopeia, ou “dança do intelecto entre as palavras”. A autora, com rigor na escolha das palavras e no corte preciso dos versos, obtém resultados de notável feitura em sua lírica do pensamento, como “É tudo um risco: / sentar-me aqui, / com o hibisco / roxo e ríspido a perfurar o céu”. Quem já frequentou os livros anteriores da poeta carioca, e em particular Saxífraga e Os dias gagos, conhece sua habilidade em criar estranhas partituras e aquarelas, próprias de um inusitado barroquismo tropical.

Em Alma corsária, encontraremos outras joias, como “a anêmona do vento nas folhas” (que poderia ser um verso do haicaísta japonês Matsuo Bashô), “Minha casa fica no caminho do vento”, “Sempre que o mar, esse bicho / de ventre e visgo de prata”, “Lá embaixo, a terra exibe cicatrizes, / sulcos, / velhas tatuagens”, mas não temos aqui apenas a função poética elevada ao máximo grau, para citarmos o conceito de Roman Jakobson; a função referencial também está aqui. Alma corsária é um livro publicado num dos momentos mais trágicos da história do Brasil, iniciado com as “jornadas de junho” em 2013, que levariam mais tarde ao golpe de estado de 2016 e às eleições de 2018, quando teve início o novo ciclo autoritário no país. Claudia Roquette-Pinto compreende o que acontece à nossa volta e traz para a sua poesia imagens contundentes da farsa trágica, e em especial do período da pandemia, que vitimou 700 mil brasileiros, pelo cruel descuidado com a saúde pública no país. Há um caderno em Alma corsária dedicado a esse tema, em que encontramos linhas como essas, do poema A noite dos 500 mil corpos: “Toda a delicadeza / que semelhava ser nossa / jaz agora, eviscerada / ao rés do chão – ao lado da moça grávida, das crianças e das cápsulas / das balas erráticas  que só encontram a direção do corpo indígena / ou negro”. A poesia participante da autora concilia o fino artesanato de linguagem com o brado vigoroso de protesto, a postura ética de repúdio à barbárie, que encontramos hoje em raros livros de poetas brasileiros, desacostumados ao contato com as impurezas do “real porquanto vil”, para citarmos o verso de Mallarmé. O mergulho subjetivo está aqui, a crítica política também e ainda, de modo discreto, as referências ao budismo tibetano, ou Vajrayana (“Caminho do diamante”), não só pela referência explícita ao lama Chagdud Rimpoche, mas sobretudo pela ideia de compaixão, que podemos entender também como uma ética de solidariedade.

A poesia de Claudia Roquette-Pinto solicita uma leitura inteligente e sensível, capaz de deslizar por suas imagens poéticas que traduzem não apenas flashes de seu mundo interior e sua relação com a linguagem – toda escrita poética é sempre um diálogo com outros textos e autores – mas também uma visão de mundo que afirma a urgência do resgate do humanismo, da civilidade e da própria pólis. Este é, sem dúvidas, um documento de época, um testemunho, que se situa nos escaninhos da melhor poesia produzida em língua portuguesa hoje. 

Claudio Daniel

Outubro / 2022


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