sexta-feira, 30 de julho de 2021

SÉTIMO OLHO

 


 










dias-cutelo

de escuros dentro

flor de loucura

ou apenas corrosão

pele-nervos

pele-ossos

aquilo que canta dentro

na sombra

esterco a origem do mundo

a grande cloaca

do mundo

o ganido de cães

e pedras podres

outro eu, esqueleto de mim

escuros dentro

palavras ásperas

como lascas

temor tumulto

asco de tudo

no lado de fora

do crânio

escuros, desencaixe

de tudo, algaravias

o osso do agora

teus olhos

em meus lábios

folhas trêmulas

ao vento

e um dia,

revolução

Claudio Daniel, julho / 2021

 

 

 

SEXTO OLHO

 









SEXTO OLHO

olho na pétala da flor

olho na pluma da arara vermelha

olho na pétala da flor

olho na pluma da arara vermelha

o canto do nambu

e a nebulosa cabeça de cavalo

o canto do nambu

e a nebulosa cabeça de cavalo

o canto do agapanto

e o luzeiro azulino da cauda do pavão

o canto do agapanto

e o luzeiro azulino da cauda do pavão

olho na pétala da flor

olho na pluma da arara vermelha

olho na pétala da flor

olho na pluma da arara vermelha

o canto do nambu

e a nebulosa cabeça de cavalo

o canto do nambu

porque o teu nome queima em meus olhos

baobás indenes remanência

porque o teu nome queima em meus olhos

baobás indenes remanência

olho na pétala da flor

olho na pétala da flor

olho na pétala da flor

 

Claudio Daniel, julho / 2021

 

 

QUINTO OLHO

 


riscante

riscante, faiscante

furiais, furiais

percorre a luz

percorre, repercorre

percorre a luz

por isso dançamos

por isso dançamos

riscante

riscante, faiscante

furiais, furiais

percorre a luz

por isso dançamos

por isso dançamos

olhos sem línguas

línguas sem olhos

eritrinas esfumadas

eritrinas, eritrinas

repercorre a luz

por isso dançamos

por isso dançamos

furentes, furiais

eritrinas esfumadas,

eritrinas, eritrinas

repercorre a luz

farripas, faúlhas

favilas, eritrinas

repercorre a luz

por isso dançamos

 

Julho /  2021

 

 

quinta-feira, 29 de julho de 2021

QUARTO OLHO

  


Para Scheila Sodré

À beira

do arco-íris

de possibilidades,

leão amarelo

desfolha

lua nova;

vento verde

assopra

dentes-de-leão.

A língua

da meia-noite

se enrosca

nos dedos  

do meio-dia;

teus olhos-

lakhsmi

encontram

meus lábios-

yamuna.

Um sol bruxo

sobre girassóis;

centopeias

piscam pálpebras

num átimo

de segundo.

Flor-esmeralda

adorna

teu cabelo.

E até o fim

do mundo,

no asperamente

da civilização

em ruínas,

meu braço

em tua cintura.

 

Claudio Daniel, julho / 2021

TERCEIRO OLHO

 

 


Para Henri Michaux

Galho retorcido

de árvore

corcunda.

Cabeças

cúbicas

de formigas.

Paisagem

de margens mudas

onde o vento

sopra

ao contrário.

Onde as pedras

não são mais pedras.

Ninguém vive

aqui.

Aranhas tecem teias

nos meus

pesadelos.

Salamandra procria

no fundo

de meu olho direito.

Este não é o Olho de Buda.

Paisagem construída

com dedos

e unhas

de mortos;

com a pele,

cabelos

e olhos

de mortos.

Meu pai,

um mapa borrado;

minha mãe,

bússola

sem ponteiros;

eu mesmo,

pedra negra

no tabuleiro

de xadrez.

Apenas sombras

uivam.

Tudo tão pesado,

tão pesado,

âncora de pensamentos.

Tudo tão

detestável.

Por que as geleiras,

por que os abismos?

Faca desenha círculos

concêntricos

na água estagnada,

à esquerda

de lugar algum.

Este não é o Olho de Shiva.

Formas desfiguradas

em farrapos.

Essa escada que não leva

a parte alguma.

Palavras, palavras, palavras

já não fazem mais

sentido.

Silêncio.

Depois, espectros escrotos

em alto-falantes

anunciam a morte

de Deus.

O terceiro olho

então

se abre.

 

Claudio Daniel, julho / 2021

SEGUNDO OLHO

 

 SEGUNDO OLHO

Minúsculos cães inauguram o inverno.

A rosa dos ventos está morta.

Rasgada entranha.

Ângulos agudos enlouquecem

e a noite, como um palhaço de circo,

esfaqueia as nuvens.

O reflexo da lua em um prato vazio.

Homens de barro marcham nas ruas

com uniformes verde-oliva:

inânimes ou brutais;

poros ou pedras,

veias petrificadas como esqueletos

de sáurios;

cruéis como a noite branca;

inúteis como lesmas brancas;

rutilam, estridentes,

como flores artificiais

feitas de iniquidade.

No princípio era o estranho

refém do futuro

um rio escuro sem nome,

alguém sem cabeça;

depois, a serpente devorou

a si mesma.

Um sussurro me disse o teu nome,

o teu lindo nome,

escrito no livro da terra,

e nós lutaremos contra o Não.

 

Claudio Daniel, julho / 2021

quarta-feira, 28 de julho de 2021

LÍNGUA

 


      Para Scheila Di Sodré

água-verde-água-

olho-d’água-

olho-ilha-

leonino-olho-

de-canção

luzeiro-azulino-

em-faúlha-de-

olho-mel-

furnas-de-amor-

violáceo-

cachoeira-d’oxum-

apará-

olho-d’água-

olho-ilha-

d’oxum-

apará-

-campânula-

vermelha-

amor-

vermelho

melusino-

vermelho-

amor-

-s’incendeia-

s’incandesce

nos-interstícios-

símiles-

de-um-sol-

em-outro-sol-

símiles-do-sol

em-língua-do-rio-

miúra-

em-língua-do-rio-

mudra-

em-língua-do-rio-

miçanga-

em-língua-do-rio-

mandril

em-língua-

do-ele-apaixonado-

por-ela-

do ele-cismado-

nas-cismas-dela-

em-águas-

de verde-água-

olho-d’água-

do-rio

olho-ilha-do-leão-

rilhante-

que-esfervilha-

em-amor-de-amor-

desse-átimo-de-

instante-

arroxeada-eritrina

até-o-último-inifinito

depois-

do-infinito

 

Claudio Daniel

Julho de 2021

 

PRIMEIRO OLHO



 









Água escura,

excessiva, cai

sobre cabeças de alfinete;

somos minúsculos pontos

borrados, quase invisíveis.

Ruídos esfiapados de metais

somam–se aos gritos

estilhaçados da noite.

Caminhamos dessa rua

a outra rua, entre dedos

de árvores e mariposas

epidérmicas, mas nada vemos:

nem as flores das ameixeiras,

nem os fios estorricados;

estamos cegos, talvez meio mortos,

como diabos frios no redemoinho.

Quando amanhece, mundo

recém-criado e mudo,

o olho curvo do pesadelo

mira espectros quase nus

roendo restos de ossos

na porta do açougue.

Xangô Oluaxô,

venha com seu machado

de duplo gume.


Claudio Daniel, julho / 2021