domingo, 30 de março de 2014

GALERIA: DZIGA VERTOV (II)


POEMAS DE ARTURO GAMERO


As unhas crescendo na parede
das casas, os pássaros saindo
pela boca com o sexo das
sombras tocando
na vidraça,
a urina nas cadeiras
penduradas pelo entardecer.


* * *


Eu toco a página do livro com a
mão e a aridez do pensamento
dobrando seus espelhos
é o barulho do ar
batendo nas palavras.



* * *


A palavra escava a madeira,
entra na água, relâmpago enterrado no
ar castanho, palmas esculpidas,
banho de osso e lentamente extrai
a dádiva dos seios macilentos, ímã
dos fogos assimétricos. Vozes mer-
gulhadas mansamente no amarelo.



* * *


áspera do amor roendo a carne
numa liturgia de naufrágios mer-
gulha a cama nas paredes, janelas
penduradas como um paraíso.


* * *


Dissecar a pedra, o sopro, aperta
o labirinto de um único erspelho.



(Poemas do livro Favo. Bauru: Lumme Editor, 2013)

GALERIA: DZIGA VERTOV (I)


POEMAS DE ADALBERTO DE OLIVEIRA SOUZA


QUASE SEMPRE

rematando calúnias e possibilidades


dela não se sabe o vil calendário


que a move


avidamente


METAMORFOSES


Muito escapa.



Pouco se livra.



Muito subtrai-se.



Tudo se esvai.


AGORA

Um zumbido estridente chegou a uma distância
considerável.



VEJO AS PAISAGENS

e, no entanto,
não é do mesmo modo
que acontece.


FATO

De qualquer forma,
sabe-se do ocorrido,
pode-se opinar ou
não.


MEUS OUVIDOS AINDA CHEIOS DE SUA VOZ

Em companhia, a alegria cinzenta do rosto.


A eterna presença sem enigma.


 (Poemas do livro Corrosão. São Paulo: Maçã de vidro edições, 2014)

sexta-feira, 28 de março de 2014

OS DISFARCES DO TEMPO NA LÍRICA DE NINA RIZZI



A duração do deserto, de Nina Rizzi (São Paulo: Patuá, 2014), lançado recentemente no I Festival Poesia Nova, realizado no Centro Cultural São Paulo, é o segundo título da autora, que reside em Fortaleza e também publicou Tambores pra n’zinga (Rio de Janeiro: Multifoco, 2012). Em ambos volumes, a lírica narrativa de matiz modernista soma-se a outras referências, como a fotografia, o cinema, a estética do fragmento e a cultura afrobrasileira (“as coisas continuam a me morrer / do barro se seca água, um todo imóvel, vodun”, lemos na composição candomblé pra nanã). Neste segundo livro, o leque é ainda mais plural, incorporando, de maneira bastante pessoal, ecos do futurismo russo e da paisagem expressionista, poemas construídos na forma de e-mail e casidas que dialogam com Federico Garcia Lorca. Todas essas referências revelam uma poeta culta, que dialoga com a tradição literária e os temas culturais, porém, sem afetação acadêmica ou pretensão erudita: o intertexto, na poesia de Nina Rizzzi, é um índice sentimental, uma pista da relação amorosa com o seu repertório de afinidades eletivas e uma exteriorização de seu imaginário, que dispensa citações e notas de rodapé. A voz da autora é lúdica e quase sempre com um timbre bem-humorado, irreverente, embora seja capaz também da solenidade da elegia, como no poema Na estrada de Sintra, dedicado ao jovem poeta Raul Macedo, falecido num desastre de automóvel.

A diversidade de estilemas, temas e timbres de A duração do deserto faz pensar – a princípio – na ausência de um foco narrativo, de uma unidade estrutural, mas a impressão se desfaz após uma convivência maior com esses poemas, que podem ser lidos como um diário cujo leitmotiv é o tempo, explícito já no título da obra.  A anotação epistolar (além do diário, podemos notar aqui a presença da carta, do e-mail) é mais evidente nos poemas lacônicos, que assumem por vezes a forma de dístico, como nesta composição: “lançar meu corpo ao cimo / e alcançar teu nome, abismo” (poema impossível, dionises variegada), um dos mais belos do volume, ou ainda nesta peça, que justifica o título da obra: “água e sal são meus olhos, / deserto é te esperar” (te amar, assombro). Impossível não recordar a microlírica de Safo, a poeta de Lesbos, especialmente a Safo dos poemas mais condensados, como este: “A lua já se pôs, / as Plêiades também: / meia-noite; foge o tempo, / e estou deitada sozinha” (tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos).

Em outra peça, a imagética surpreende o leitor como uma fotografia de Man Ray: “era uma vez uma folha atrás da orelha: / a pedra e a fala, araruama / toró, olvido” (cantilena). Simplicidade, economia verbal, imagens inusitadas de alto impacto. Assim também nesta peça: “solidão tem tamanho não, sinhô / vem da terra que a corcunda põe a olhar / até a única cor que não alcança o céu / azul” (solo pra rabeca e trompete). Os poemas mais ambiciosos do livro, porém, são os mais longos: Escrita aos ímpares (“Pedra ontem, pedra hoje e nunca”) e Contrapoema ao homem de meu tempo (“o homem do meu tempo em se punir, manso, me estrangula e ri”), que remete ao lirismo de Carlos Drummond de Andrade, ao mesmo tempo individual e cósmico. A poesia de Nina Rizzzi é um palimpsesto onde, camada após camada, lemos os diferentes disfarces assumidos pelo cruel deus do Tempo.

A FÁBULA DISSONANTE DE DELMO MONTENEGRO




Recife no hay, de Delmo Montenegro (Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 2013), uma das obras vencedoras do I Prêmio Pernambuco de Literatura, é o terceiro título publicado do autor, que lançou também Os jogadores de cartas, em 2003, e Ciao cadáver, em 2005. Nesta nova obra, o autor pernambucano investe ainda mais na ironia, no sarcasmo, no humor negro, já presentes em seus livros anteriores, com língua ferina e precisa: “poetas são como / dinossauros / todos vão ser extintos / de uma hora / pra outra, todos / sem exceção”. Desafiando o lirismo, Delmo Montenegro cria uma dicção anarcopunk, habitada por pesadelos de Salvador Dali ou fantasmas de Franz Kafka: “vamos para a praia dos nervos / para as geleiras / infames / desossar orquídeas / montar na prancha dos assassinos / o grande / kahuna / espera / por / nós”. A linguagem concisa, recortada, com a incorporação do espaço em branco da página e a utilização dos sinais de pontuação como elementos rupestres leva-nos a pensar na influência da Poesia Concreta (mais evidente em Ciao cadáver), mas a construção de metáforas crítico-irônicas como “necrose de corais”, “intelectuais sifilíticos”, “clitóris vermelho / flamingo-fogo” aproximam-se de uma outra vertente da poesia brasileira, aquela freqüentada por transgressores como Roberto Piva, Glauco Mattoso e Sebastião Nunes. A divisão espacial das palavras e linhas, nos poemas de Delmo Montenegro, não é apenas uma elaboração visual, mas funciona como a notação em uma partitura musical, indicando pausas, ênfases, mudanças de timbre, que se materializam na oralização. A dimensão sonora é justamente o aspecto mais elaborado nesse livro de poemas, que se destaca na produção pernambucana contemporânea pela ousadia e criatividade – presente também nas obras de poetas como Micheliny Verunschk, Bruno Monteiro, Fábio Andrade, para citarmos poucos nomes (um panorama abrangente da nova poesia pernambucana pode ser consultado nos dois volumes da antologia Invenção Recife, organizada pelo próprio Delmo, em parceria com Pietro Wagner). Por fim – ao menos, nesta nota breve – um outro aspecto que chama a antenção, em Recife no hay, são as narrativas poéticas, a meio fio entre a fabulação e o canto dissonante, como por exemplo nesta peça, de alto impacto: “sim, seremos amantes / solte sua voz / valvulada / durma comigo / seja meu cadáver esta noite / depois / ponha / os cílios postiços / e / desapareça / sem amor, sem paradas cardíacas / sejamos / apenas / dóceis animais empalhados / -- ouça agora, revolva agora -- / meu / nome /é / cão / -- abra meu zíper // / palhas”.

quinta-feira, 27 de março de 2014

O NÃO-LUGAR NA POESIA DE NYDIA BONETTI



“Onde a montanha encontra a água / nasce a flor”, diz a peça de abertura do livro Sumi-ê, de Nydia Bonetti (São Paulo: Patuá, 2014), coleção de poemas que dialogam com a pintura tradicional japonesa, que remonta ao século XIV. Assim como outras artes inspiradas pelo zen-budismo – a técnica de arranjos florais (ikebana), a caligrafia (shodo), a cerimônia do chá (cha-no-yu), o tiro com arco (kyudo) –, o sumi-ê valoriza a leveza, o despojamento, a concisão, a espontaneidade, a precisão que cria o movimento. Todos esses elementos são verificáveis nos poemas de Nydia, que conciliam sensibilidade, delicadeza e notável delineamento formal: “há um jardim qualquer / em qualquer / canto / onde uma flor qualquer / brotou / de qualquer / cor / de qualquer forma, flor / e eu a oferto / a quem souber cuidar”, diz uma composição sem título que remete à deliberada imprecisão e ao ocultamento presentes em haicais de mestres japoneses como Shiki: “No meio do mato / a flor branca / seu nome desconhecido” (tradução: Maurício Arruda Mendonça). É inevitável fazermos uma aproximação entre a poesia de Nydia e um princípio essencial da filosofia da arte japonesa, o yugen, palavra geralmente traduzida como “charme sutil”. Os dois ideogramas que compõem essa palavra significam, respectivamente, mistério e obscuridade. Segundo Darci Yasuco Kusano, “yugen possui um significado além das aparências (...). Os fatores primordiais que constituem o yugen são a beleza e a elegância, aliadas à suavidade; o refinamento físico e espiritual (...). São igualmente expressões de yugen a beleza ideal, sublime, com uma aura de mistério”. Um haicai tem yugen se ele consegue abordar um assunto de maneira inusitada, mas com sutileza, sem ostentação ou vulgaridade. Assim, neste belíssimo micropoema de Nydia: “agora vazios – os campos de algodão / depois do vento”, que podemos comparar com um haicai de Nenpuku Sato: “sementes de algodão / agora são de vento / as minhas mãos” (tradução: Maurício Arruda Mendonça). Em ambas composições, o universo laboral está presente, em harmonia com o ritmo das estações e com os estados de espírito despertados pela condição sazonal, tópico imprescindível no terceto tradicional japonês, onde são incluídas palavras que fazem alusão às estações --  “vento de primavera”, “lua de outono” etc. Claro: Nydia não escreveu um livro apenas com haicais, nem pretende fazer um diálogo “exótico”, superficial, com a cultura japonesa: o que nos surpreende é a maneira como ela incorpora elementos desse repertório e os reelabora em sua poética minimalista, com graça e simplicidade.  O olho imagista ocidental, que alimentou a fanopeia de Ezra Pound, está presente aqui: “no imenso jardim povoado de verdes / uma só / flor / que de tão só – vermelha / destoa”, em que os espaços em branco entre as linhas e a composição exclusiva em caixa baixa reforçam a visualidade do texto, assim como a palavra “flor” isolada no meio do poema, denotando solitude. Há na poesia de Nydia – nascida em Piracaia, no interior de São Paulo – uma presença viva das paisagens da infância, que constroem pensamentos, lembranças e sensações, numa espécie de diário imagético: “tronco / retorcido em securas / restam / folhas miúdas / num cacho / único / flores rosas / pendem / e denunciam: -- a vida / resiste”. Em outra composição, a temática existencial se apresenta de forma ainda mais enigmática: “o não lugar – onde habita / a não / vida / e o não sonhar – morada / de tantos”. Extrema economia formal, reforçada pela linguagem substantiva e pela sintaxe fraturada, elíptica, que se adensa nas últimas peças do volume, culminando na necessária quietude: “peço silêncio / há uma flor: -- se abrindo / no jardim”.

quarta-feira, 26 de março de 2014

ZUNÁI, DEZ ANOS (II)


Zunái, Revista de Poesia e Debates, comemora dez anos de guerrilha virtual no ciberespaço. Criada em 2003 por Rodrigo de Souza Leão (1965-2009), Ana Peluso e por mim, a revista teve 26 edições eletrônicas em sua “primeira dentição” (www.revistazunai.com) e publicou alguns dos mais expressivos nomes da poesia, do teatro, do romance, do ensaio e das artes visuais brasileiras.   

Estiveram presentes, nas páginas da Zunái, autores como Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Arnaldo Antunes, Armando Freitas Filho, Josely Vianna Baptista, Claudia Roquette-Pinto, Gerald Thomas, Wilson Bueno, Evandro Affonso Ferreira, Nelson de Oliveira, Luiz Costa Lima, João Alexandre Barbosa, Regina Silveira, Leda Catunda e Guto Lacaz, para citarmos poucos nomes. 

Desde o início, a revista assumiu uma posição de voluntária parcialidade crítica (seguindo a lição de Baudelaire), exteriorizando os seus critérios de escolha e interferindo de maneira desafiadora no cenário cultural brasileiro, sem fazer concessões a estéticas mumificadas. 

Zunái 
assumiu o compromisso de publicar trabalhos de maior inventividade formal, em campos como o da poesia visual, da poesia sonora, da poesia digital, do texto poético experimental, sem filiar-se, porém, a nenhuma tendência literária específica, a nenhum programa normativo redutor: sua vocação é a de ampliar diferentes graus de ruído e dissonância, para desafinar a melodia única dos contentes. Esta pluralidade de radicalismos possíveis se manifestou em nosso interesse pela poesia neobarroca de José Kozer, Reynaldo Jiménez, Victor Sosa, León Félix Batista, mas também pelo minimalismo de André Dick e Virna Teixeira e pela escrita inclassificável de Jean Paul Michel, Edmond Jabès, Contador Borges, Abreu Paxe, Antônio Moura e Erin Moure. 

Nossa representação geométrica sempre foi o círculo, dentro do qual se movimentam infinitas linhas concêntricas, aproximando-se, distanciando-se, provocando colisões, ruídos e atritos criativos, em constante ebulição e metamorfose.

A Zunái sempre se recusou a fazer um mapeamento convencional da poesia brasileira – tarefa sempre incompleta e efêmera das revistas e antologias – mas, ao contrário, optou por iluminar autores que ficaram à margem do cânone rumoroso promovido pela mídia, organizado por critérios poucas vezes éticos ou estéticos. Publicamos autores jovens de violenta novidade formal e temática, que estão entre as vozes mais consistentes da nova poesia, como Contador Borges, Antônio Moura, Adriana Zapparoli, Andréia Carvalho, Marceli Andresa Becker, que trazem propostas de desestruturação da lírica coloquial-cotidiana do Modernismo (tão incensada por críticos midiáticos que nada sabem de poesia) e de reorquestração das palavras e frases em outras combinações possíveis, ampliando o léxico, renovando a sintaxe, dialogando com repertórios infrequentes, num sopro de renovação e desafio. 

Rompendo com o mimetismo colonizado das poéticas praticadas nos grandes centros econômicos, Zunáiestabeleceu novas parcerias, divulgando poetas de Angola, Moçambique, África do Sul, Síria, Cuba, México, Peru, República Dominicana, Venezuela, entre outras nações de poesia. O link Galeria publicou mostras virtuais de alguns dos mais conceituados artistas visuais brasileiros, como Regina Silveira, Guto Lacaz, Leda Catunda, Elida Tessler, Nino Cais e Eduardo Frota, enquanto o link de matérias especiais enfocou temas culturais mais amplos, envolvendo diferentes linguagens artísticas, como o teatro de Gerald Thomas, o cinema de Werner Herzog e Peter Greenaway, a prosa de Wilson Bueno, os 50 anos da Poesia Concreta e o debate sobre a crítica literária brasileira, em textos como "Muito além da academídia: poesia brasileira hoje", de Rodrigo Garcia Lopes, e "Pensando a poesia brasileira em cinco atos", de Claudio Daniel. 

Os editores de Zunái nunca tiveram o propósito de estabelecer ou defender uma suposta “estética única”, o que pode ser verificado facilmente na própria revista, onde publicamos desde haicais e poemas sonoros até composições concretistas e surrealistas; a inovação, para nós, nunca foi rua de mão única ou questão teológica ou metafísica. O que recusamos no ecletismo nunca foi a diversidade, mas a concessão sem critérios a estéticas frágeis, que não apresentam nenhuma novidade temática ou formal. A defesa intransigente da pesquisa estética, do experimentalismo, da inovação, em nenhum momento foi entendido por nós como nova torre de marfim, alheia aos acontecimentos no mundo – muito ao contrário. 

O design da capa da Zunái foi criado por Ana Peluso e por mim com o propósito de representar o conflito entre barbárie e cultura: os links, dispostos de maneira circular, incorporaram imagens de obras de arte da Antiguidade do Museu Nacional de Cabul, destruídas pelo Talebã sob a acusação de paganismo e idolatria. Na página do Expediente da revista, inserimos a imagem de uma obra de arte desaparecida do Museu de Bagdá, saqueado com a cumplicidade das tropas de ocupação norte-americanas. 

Zunái sempre se posicionou contra as guerras de rapina do império estadunidense no Oriente Médio e criou, no link Opinião, os Cadernos da Palestina, onde publicamos regularmente textos e fotos de denúncia da ocupação ilegal dos territórios palestinos pela entidade sionista. 

Durante o Fórum Social Mundial Palestina Livre, ocorrido em 2012, em Porto Alegre, Zunái esteve presente e distribuiu a plaquete Poemas para a Palestina, com peças escritas por autores como Glauco Mattoso, Marcelo Ariel, Lígia Dabul, Andréia Carvalho, Nina Rizzi, entre outros poetas brasileiros e portugueses (o texto original da plaquete, ampliado com a inclusão de novos poemas, foi publicado em 2014, na forma de livro, pela editora Patuá, do bravo Eduardo Lacerda). 

A revista também colaborou na organização da exposição fotográfica dedicada aos 30 anos do massacre de Sabra e Chatila, exposta no mesmo ano na Biblioteca Alceu Amoroso Lima. Zunái sempre acreditou que o engajamento estético não se opõe ao engajamento político, mas, ao contrário, é a sua contraparte dialética, como bem sabia André Breton, ao propor unir o “mudar a vida” de Rimbaud ao “mudar o mundo” de Marx (equação em que está implícita o “mudar a arte” de Lautréamont). 

O aniversário de dez anos da revista foi comemorado com um recital organizado pelo poeta Rubens Jardim, na Casa das Rosas, que contou com a participação de Frederico Barbosa, Claudio Willer, Alfredo Fressia, E. M. de Melo e Castro, Abreu Paxe, Nydia Bonetti, Andréia Carvalho, Edson Cruz, Luiz Ariston, Edson Bueno de Carvalho, Diogo Cardoso e Fabrício Slaviero. Uma festa de poesia. Em março deste ano será publicada uma antologia impressa de poemas e textos divulgados na Zunái ao longo da última década, com o apoio generoso da Lumme Editor. 

Agradecemos a todos aqueles que sempre apoiaram a revista, e em especial a Ana Peluso e Mariza Lourenço, responsáveis pelo design e atualização da “primeira dentição” da Zunái, e a Andréia Carvalho, editora de multimídia do novo site da revista.

Ave, Zunái!

São Paulo, a horrível / fins de 2013



segunda-feira, 24 de março de 2014

ZUNÁI, DEZ ANOS




Caros, na terça-feira, dia 25 de março, a partir das 20h30, acontecerá o Recital da Caixa Preta, na Sala Adoniran Barbosa do Centro Cultural São Paulo. Na ocasião, haverá o lançamento de uma edição impressa da Zunái, comemorativa dos dez anos de existência da revista, além de leituras poéticas com a participação de Claudio Willer, Horácio Costa, Abreu Paxe, Dirceu Villa, Elson Fróes, Antonio Vicente Seraphim Pietroforte, Francesca Cricelli, Roberta Ferraz, Alex Dias, Luiz Ariston, Chiu Yi Chih, Edson Bueno de Camargo, Claudio Daniel, Rubens Jardim, Marcelo Ariel, Célia Abila, Maria Alice Vasconcelos, Karine Kelly Pereira e Doroty B J Dimolitsas. Aguardo vocês lá!

domingo, 23 de março de 2014

A LÍRICA IMPREVISTA DE ALICE RUIZ



Alice Ruiz pertence a uma geração de poetas brasileiros que conviveu com a tradição literária do modernismo, a contracultura, o concretismo e a tropicália, num momento histórico de crise do regime autoritário e de retomada das lutas políticas e sociais que desaguariam na campanha por eleições diretas já, em 1984, marco da reconquista das liberdades democráticas, após duas décadas de arbítrio. O diálogo com a música popular, a linguagem publicitária, a história em quadrinhos, o zen-budismo e os temas do feminismo e da diversidade sexual está presente em diversas obras publicadas por poetas dessa geração, como Polonaises, de Leminski, Zil, de Duda Machado, Memórias de um pueteiro, de Glauco Mattoso e os poemas de Antonio Risério, publicados esparsamente em revistas independentes como Código, Raposa e Muda (a poesia de Risério seria reunida em livro apenas na década de 1990, com Fetiche e Brasibraseiro, este último escrito em parceria com Frederico Barbosa). O livro de estreia de Alice Ruiz, Navalhanaliga, publicado em 1980, está inserido nesse caldeirão cultural, mas já revela uma voz bastante singular, pelo alto impacto de suas imagens poéticas e referências biográficas e da realidade social da época. O próprio título do livro já indica uma operação de violência contra o lirismo e a sentimentalidade atribuídos por muito tempo à poesia de autoria feminina: Alice Ruiz reivindica, como símbolo de sua poética, nada menos que uma navalha, arma branca usada por garotas de programa para sua segurança pessoal. A subversão poética da autora, se recusa a ingenuidade romântica, investe, ao mesmo tempo, em composições de grande intensidade emocional, como a peça de abertura do volume: “não era ainda pessoa / e já sonhava / não é mais pessoa / e ainda sonha”, poema composto em homenagem ao filho Miguel Ângelo Leminski, falecido com apenas nove anos de idade. Esta peça, assim como outras de Navalhanaliga, utiliza recursos visuais, como a inserção de desenhos, fotos e símbolos de notação musical, com evidente ressonância da poesia concreta, mas sem dependência epigônica: a estratégia criativa de Alice Ruiz está mais próxima de um certo brutalismo que nos faz pensar nas Antologias mamalucas de Sebastião Nunes e nos poemas visuais do Jornal Dobrábil de Glauco Mattoso.  Em outra composição, em que as palavras, dispostas verticalmente, são escritas em branco sobre fundo negro (“elo / entre / olho / e / olho // espelho / rebelde / reflete / o / estranho”), podemos pensar nos labirintos visuais do barroco português e também na escrita ideográfica japonesa. Navalhanaliga, aliás, apresenta diversos haicais, gênero poético que a autora vem praticando, com extrema originalidade, em todos os seus livros publicados, especialmente Haitropicai (I985), escrito em parceria com Paulo Leminski, Desorientais (1996), Yuuca (2004) e o recente Jardim de haijin (2010). O haicai de Alice Ruiz descende da dicção intimista e bem-humorada de Kobayashi Issa (1763-1827), mas não se limita aos temas tradicionais, relacionados às estações da natureza, investindo, também, na denúncia política: “nesse país sem greve / só o relógio / faz o que deve” e no imaginário e vocabulário da cultura popular brasileira (“presente de vênus / primeira estrela que vejo / satisfaça o meu desejo”). Além de notável haicaísta, aliás, Alice Ruiz realizou traduções de poetas japonesas como Chiyo-Ni e Chine-Jo, reunidas no volume Dez haicais, impresso em Santa Catarina pela editora Noa Noa de Cleber Teixeira. Um belo poema que testemunha o seu amor pela forma poética nipônica é esta composição: “Francisco conseguia / entender / o que a ave dizia / Bashô enxergava / a lágrima / no olho do peixe”.

UMA ERÓTICA DO INUSITADO

Paixão xama paixão, o segundo livro de Alice Ruiz, publicado em 1983, incursiona em releituras da lírica camoniana e dos mitos bíblicos, de modo paródico e irreverente, e ainda no poema-piada, recorrente na produção dos autores da chamada Poesia Marginal, em versos como estes: “a gente é só amigo / e de repente / eu bem podia / ser essa mosca / perto do teu umbigo”, em que a coloquialidade e informalidade somam-se a uma imagética própria dos mestres japoneses. Em outra composição, que se avizinha do non sense, lemos: “o formigueiro que você olhava / voltou / ao seu lugar // você volta / a ver as formigas / no meu olhar”. A paixão, na lírica de Alice Ruiz, está sempre associada ao imprevisto, ao excêntrico, ao inusitado, expressando-se em hipérboles (“noite / cadelas no cio / disputam a primavera”), paradoxos (“a folha faz barulho / tenha ou não tenha letras // já o silêncio faz ver / todas as coisas pretas”) e jogos de palavras (“sem saudade de você / sem saudade de mim / o passado passou enfim”), trabalhados com aparente leveza e simplicidade. Esta dicção insubmissa e inventiva atinge plena maturidade no livro Pelos pelos (1984), cujo título evidencia, no trocadilho entre pelos (substantivo) e pelos (preposição), a conjunção entre o amor e a liberdade poética. Os poemas desse livro, de extrema fluência e musicalidade (“você fica / muito louco / muito branco / muito magro // o pó da estrada / que se afasta / é muito amargo // me sobra pouco / mas esse amar / eu sempre trago”), já denunciam a letrista de música popular, que compôs canções em parceria com músicos como Arnaldo Antunes, Alzira Espíndola e Itamar Assumpção (seu livro Poesia pra tocar no rádio, de 1999, reúne as letras e poemas musicados de todas as suas parcerias). Notamos nesta obra, apesar de sua erótica implícita, uma maior incidência de poemas logopaicos, aspecto menos comentado da poesia de Alice Ruiz: “minha voz / não chega aos seus ouvidos // meu silêncio / não toca teus sentidos // sinto muito / mas isso é tudo que sinto”. Claro: a reflexão amorosa ou existencial sempre é expressa com indisfarçada ironia e coloquialidade, com o uso freqüente da rima, que não é acessória, mas um elemento musical que reforça o sentido do texto: “quero fazer um verso / com todos os elementos / meus encantos / meus lamentos / que atravesse / ares e mares / e te alcance / e te arranque / de todos os pensamentos”. A poesia completa de Alice Ruiz (além dos títulos referidos, devemos acrescentar o volume Vice versos, de 1988) foi reunida no volume Dois em um (2008), publicado pela editora Iluminuras, iniciativa que não pode ser pouco elogiada, por colocar à disposição dos leitores de agora uma obra coerente e inventiva, de uma autora que está entre as vozes mais originais da poesia brasileira contemporânea.    

(Artigo publicado na edição de março da revista CULT, na coluna RETRATO DO ARTISTA.)