quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

ISRAEL E O MURO DA (IN)SEGURANÇA













Luciana Garcia de Oliveira


“O que importa não é o que fizeram conosco, mas o que fazemos com o que fizeram conosco” (Jean Paul Sartre)

São muitas as razões capazes de comprovar que a ideologia sionista (predominante no Estado de Israel) enfrenta uma crise crescente. A integração forçada de novos imigrantes, as limitações da democracia (defendida pelos atuais governantes), o caráter europeu-ocidental exclusivista, a concentração do yishuv e no Estado, a questão colonial, o expansionismo territorial (e a conseqüente transferência dos palestinos) e a militarização da sociedade são alguns fatores comprovadores dessa situação da atual crise de identidade.

No entanto, é a partir do ano de 1967, que a situação aparece numa versão ainda mais dramática. É nesse momento em que, não somente o expansionismo e a expropriação das terras palestinas foram retomadas, como emergiu uma sociedade de colonos que, busca construir uma comunidade à parte, “semicolonial” que, passou a ser imediatamente denominado pelos nomes bíblicos, “Judea e Samaria”.

Ainda, soma-se à isso, uma forte concepção de segurança, com um exército extremamente brutal e um governo que, ao longo do tempo passou a dispensar um tratamento de “inimigo” aos palestinos residentes no Estado israelense, o que serviu para excluí-los, de fato, do poder político. Em Israel, a promoção da democracia étnica, viola flagrantemente ao princípio universal da igualdade.

E, para piorar ainda mais a situação, o país não possui uma Constituição, o que torna toda a prática de discriminação um fato inqüestionável.

Assim, de acordo com José Maurício Domingues, “nacionalismos étnicos, radicalismos religiosos e a falta de uma concepção multicultural criam enormes barreiras”. As fronteiras entre Israel e os territórios palestinos, tornam-se um problema e um risco, e a segregação dentro dessas fronteiras legitimam um estado de apartheid social.

Nesse passo, a solução imediata para o conflito foi a construção de um Muro que, teoricamente, separa o Estado de Israel dos territórios palestinos.

A maior parte dos turistas e ativistas estrangeiros que já tiveram a oportunidade de viajar a Israel e à Palestina, afirmam frequentemente que, muitos funcionários do aeroporto de Ben Gurion, dificultam o acesso à Cisjordânia (território palestino), numa clara tentativa de apagar a existência da Palestina, do povo palestino e de toda a sua história.

A real impossibilidade de se enxergar “o mundo” para além do Muro (erguido em junho de 2002), legitima que as estradas de acesso à Cisjordânia sinalizem tão somente aos assentamentos judaicos instaurados naquela mesma localidade.

Ao se tentar questionar a existência do Muro em pleno território palestino, grande parte dos israelenses são capazes de justificar, sob um primeiro plano, ao renomear a ostensiva construção para “Barreira de Segurança” ou “Muro de proteção”, requisitado tanto por parte da direita israelense, como pela esquerda, numa conjuntura de pós-Intifada no final de setembro de 2000. Momento em que o Estado de Israel encontrava-se constantemente “ameaçado” por atentados terroristas (advindos da incidência dos chamados “homens bombas” e pelo lançamento de mísseis por parte do grupo Hamas). A essa altura, prevalecia-se um clima de guerra e insegurança.

A idealização para se construir o Muro, surgiu depois do fracasso da Conferência de Camp David (sobre o conflito Israel-Palestina), ocorrido em julho de 2000. E, mesmo diante do consenso israelense para a sua consecução, algumas diferenças foram suscitadas entre as alas da direita e da esquerda. Para a esquerda israelense, a barreira deveria respeitar o traçado da chamada “linha verde” (limite imposto por Israel, após a Guerra dos Seis Dias, em 1967). A direita, por sua vez, pretendia anexar o maior número possível das colônias judaicas existentes, dentro do território palestino, inclusive na parte oriental de Jerusalém.

Por outro lado, são ainda muito poucos os que realmente sabem que, juntamente com a construção do Muro, o Estado de Israel violou o Direito Internacional (em 2004, o Tribunal Penal Internacional de Haia, condenou a construção do Muro), isso porque o empreendimento foi deliberadamente erguido dentro do território palestino, numa clara proposição de anexação de territórios, conforme pode ser visualizado no documentário Budrus (de autoria da cineasta brasileira Julia Bacha). O que, por sua vez, descaracteriza completamente o argumento da “defesa do território israelense”.

Desde a construção do Muro, os palestinos, de uma maneira geral, dependem diretamente da autorização expressa do exército para realizar qualquer tipo de reforma em suas residências. E, mesmo diante da ameaça real dos colonos (dos assentamentos judaicos) que, intimidam constantemente a população palestina da Cisjordânia, é perfeitamente possível depara-se com a livre circulação dos ultraortodoxos nesses mesmos territórios, portando suas armas pesadas nas costas.

Grande parte do território da Cisjordânia encontra-se interditado aos palestinos, justamente para proteger esses mesmos colonos (armados) de eventuais “ataques terroristas” advinda da população palestina (geralmente desarmada). Conjuntura esta, muito semelhante ao regime de apartheid sul-africano.

Mesmo diante de todo repúdio advindo da comunidade internacional e das resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU), o governo israelense nunca, de fato, sequer paralisou as construções dos assentamentos, mesmo durante os processos de negociações de paz na região. Apesar, das dificuldades (hoje) em desmantelar toda uma comunidade fortemente armada que, ainda reivindicam a terra de seus ancestrais bíblicos, conforme fora abordado no artigo anterior, Israel e os ultraortodoxos – notícias de uma guerra anunciada.

Aliado à limitação da circulação, é também constatado uma grande diferença no que concerne ao consumo de água. De acordo com Vladimir Safatle em um recente artigo produzido após visita à Palestina, “um colono israelense usa seis vezes mais água que os palestinos. Caso queiram mais, os palestinos precisarão comprar água de uma empresa israelense que explora o rio (Jordão) do qual os próprios palestinos são donos”.

Diante de tantos prejuízos suscitados desde a construção do Muro, a ONG Stop the Wall, deu início à tradição da “semana contra o Muro do apartheid” que ocorre no mundo inteiro, durante o mês de novembro. Data pela qual coincide com a queda do Muro de Berlim, na Alemanha em 1989. Desde então, muitas atividades, seminários, mostra de filmes, lançamento de livro, são promovidos a fim de se posicionar contra a interferência de pelo menos 130 vilarejos palestinos. Estima-se que cerca de 29 deles, deverá estar em total isolamento, brevemente.

A situação de calamidade pela qual vivem os palestinos segregados pelo Muro, torna a região cada vez mais sensível à conflitos e manifestações. Nesse sentido, cabe indagar-se sobre a possibilidade de avançar sobre a atual obsessão pela definição de identidades puras e, assim, aceitar a diversidade e a pluralidade presentes nessa região. A essa altura, visualizar dois Estados (separados) em um espaço extremamente reduzido, é um ingrediente perfeito à uma realidade permanente de pura violência.

O Muro desmistificou a certeza da segurança israelense.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DEMAIS FONTES DE PESQUISA:

DOMINGUES, José Maurício. A sociologia israelense e a crise do consenso sionista. Revista Brasileira de Ciências Sociais, volume 25, nº 73, junho de 2010.

SAFATLE, Vladimir. Chamar de “muro” um muro. Folha de São Paulo, dia 09 de fevereiro de 2012. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1045998-vladimir-safatle-chamar-de-muro-um-muro.shtml.

SAFATLE, Vladimir. A Cisjordânia e política da invisibilidade. Folha de São Paulo, dia 05 de fevereiro de 2012. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1043906-a-cisjordania-e-a-politica-da-invisibilidade.shtml.


Budrus (doc.) título original: Budrus, Israel/Estados Unidos/Palestina, 2010, vídeo, 70 min., documentário, cor, em hebraico, inglês e árabe, com legendas em português. Direção: Julia Bacha. De acordo com o site: http://www.justvision.org/budrus.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

NOTAS SOBRE GAZA, DE JOE SACCO

Claudio Daniel

A Faixa de Gaza é um território com 40km de comprimento e 12km de largura, “um dos lugares mais densamente povoados do planeta”, escreve Joe Sacco no livro Notas sobre Gaza. “Entre 2002 e 2003, quando passei por lá, 1milhão e 300 mil palestinos ocupavam cerca de 70% de seu território. O restante estava sob domínio de 7.500 colonos judeus, que estabeleceram seus enclaves depois que Israel invadiu Gaza, em 1967, e dos soldados que os protegem. A taxa de desemprego entre os palestinos era de 50%. O percentual de pessoas abaixo da linha da pobreza – que vivem com menos de dois dólares por dia – chegava a 70%. Cerca de dois terços eram refugiados registrados, os refugos da guerra de 1948. Todos os acessos a Gaza, tanto para palestinos como para estrangeiros, eram vigiados e rigidamente controlados pelos israelenses. A disposição dos assentamentos e de suas estradas, além dos postos de verificação, permitiam aos israelenses separar facilmente uma parte de Gaza da outra.” Em 2005, Israel tomou uma “iniciativa unilateral (...) de remover os assentamentos judeus existentes em Gaza, deixando aquela estreita porção de terra totalmente à disposição dos palestinos. No entanto, Israel não abriu mão do controle do espaço aéreo e marítimo de Gaza, nem de suas fronteiras terrestres, com exceção de um ponto de passagem. (Esse ponto de passagem é o Terminal de Rafah, na fronteira com o Egito, que dificultava terrivelmente o processo de entrada e saída de Gaza.) Na verdade, a Faixa de Gaza, um lugar miserável e superpovoado, nunca se livrou do bloqueio israelense ou da ameaça de ataques e retaliações por parte das Forças de Defesa de Israel – FDI --, como se comprovou no final de 2008 e no início de 2009. (...) Quando o grupo islâmico Hamas assumiu o poder sobre a região, que detém até hoje”, os israelenses “apertaram ainda mais o cerco. (...) Com a ascensão do Hamas, Israel declarou a Faixa de Gaza uma ‘entidade inimiga’. No momento em que escrevo estas linhas, há um bloqueio quase completo a Gaza, com apoio dos Estados Unidos e da União Europeia”, escreve Joe Sacco. Conforme o toque de recolher imposto por Israel aos palestinos que habitam a Faixa de Gaza, eles são proibidos de saírem de suas casas entre as 20h e as 04h da manhã.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

GREVE DE FOME DE PALESTINO REABRE DEBATE SOBRE JUSTIÇA MILITAR ISRAELENSE


Ana Cárdenes

DA EFE

Os mais de 60 dias de greve de fome do palestino Khader Adnan, preso por Israel sem acusações, voltaram a pôr sobre a mesa o debate sobre a aplicação da justiça militar com a qual Israel julga os palestinos nos territórios ocupados e sua denunciada falta de imparcialidade.

Adnan foi detido no último dia 17 de dezembro pelo Exército israelense sob o amplo conceito de "detenção administrativa", uma ferramenta que permite prender indefinidamente os palestinos sem acusação de delito algum.

Este homem, ex-porta-voz do grupo islamita palestino Jihad Islâmica, é um dos 307 palestinos nesse limbo legal, uma situação que o levou a se negar a ingerir alimentos desde o dia seguinte a sua detenção.

Segundo confirmou à Agência Efe o serviço israelense de prisões, nos últimos dois meses centenas de presos rejeitaram algumas das refeições que recebem em apoio a Adnan.

"Nos casos de detenção administrativa como este não temos direito sequer de ver o dossiê de acusação, porque se considera 'material secreto' que nem o detido nem seu advogado podem conhecer", detalhou à Efe Sahar Francis, diretora de uma organização não governamental palestina de apoio a prisioneiros.

Esta advogada explicou que "na audiência judicial há duas partes, uma na qual o advogado pode fazer perguntas ao promotor, mas que este não contesta argumentando segredo, e outra entre o promotor e o juiz, na qual se decide tudo sem a presença da defesa".

A detenção administrativa pode estender-se a cada seis meses, o que permite que algumas pessoas estejam anos sem saber por que estão detidas nem o que podem fazer para ser libertados.

"Na Primeira Intifada houve presos que passaram oito anos em detenção administrativa e agora há vários que estão há três anos e meio nessa situação", garantiu Francis.

Para ela, o problema das detenções administrativas é só mais um dos exemplos que demonstram que a justiça militar que Israel aplica nos territórios ocupados é "uma ficção" para dotar o sistema de uma imagem de aparente legalidade frente à comunidade internacional.

"Há três problemas fundamentais no sistema: a indefinição dos delitos, os procedimentos que violam direitos básicos do detido e a excessiva dureza das penas, com prisão de até um ano por jogar uma pedra sem atingir ninguém", declarou.

A lei militar permite que os detidos estejam até oito dias sem apresentar-se perante um juiz (em vez das 24 horas em Israel) e dá às forças de segurança 180 dias para interrogá-los, que podem ser estendidos ilimitadamente.

Outra das carências do sistema, ressaltou Francis, é que "a maioria de acusações se baseiam em confissões que outros presos fazem durante interrogatórios nos quais a tortura e o maus-tratos estão muito difundidos. Há muito poucos casos que apresentam provas externas".

Os interrogatórios são em árabe, mas os presos assinam a declaração em hebraico, idioma que muitos não entendem.

Os menores são interrogados sem a presença de um advogado nem de seus pais e também não têm suas fichas policiais apagadas quando completam 18 anos, como acontece em outros países.

Os advogados têm um acesso limitado a seus clientes e os julgamentos transcorrem em hebraico, com um jovem sem formação de tradutor legal entre 18 e 21 anos que realiza o serviço militar obrigatório narrando em árabe aos acusados o que ocorre.

"E depois há a falta de independência judicial. Com juízes contratados, pagos e escolhidos pelo Exército é muito difícil convencer a corte que um prisioneiro diz a verdade", denunciou Francis.

No sistema de justiça militar israelense "não é a Promotoria que tem que demonstrar a culpabilidade, mas o detido que deve provar que é inocente", acrescentou.

Outro problema é que Israel julga em seus tribunais militares não só questões de segurança, mas também crimes civis como infrações de trânsito e multas, que podem levar os palestinos à prisão.

Consultados pela Efe, nem o Exército israelense nem a Promotoria militar responderam estas acusações.

Para Francis, o fato de "mais de 90% dos casos serem fechados com acordos entre promotor e advogado e menos de 1% ser declarados inocentes" demonstra a inexistência de um julgamento justo.

"Os tribunais militares são mais uma parte do aparelho de ocupação, humilhação, controle e opressão israelense", concluiu a advogada.

Fonte: Folha.com, http://www1.folha.uol.com.br/mundo/1051532-greve-de-fome-de-palestino-reabre-debate-sobre-justica-militar-israelense.shtml

A EXPOSIÇÃO PROIBIDA


Em setembro do ano passado, o site Free Palestine Movement denunciou o cancelamento de uma exposição de pinturas de crianças palestinas da Faixa de Gaza, programada para ocorrer no Museu de Arte para Crianças em Oakland (Mocha). Segundo o referido site, a Aliança do Oriente Médio para a Infância (MECA), que se associou com o Mocha para apresentar a exposição, foi informada da decisão do presidente da junta do museu, que recebeu pressões de organizações Pró-Israel na baia de São Francisco para impedir esta mostra. A diretora executiva do MECA, Barbara Lubin, afirmou que a censura aceita pelo museu vai contra sua missão de "garantir que as artes sejam parte fundamental da vida de todas as crianças", mas mesmo assim diz entender a forte pressão recebida pelo museu. "Mas quem ganha com isso? O museu não ganha, as pessoas que visitariam o museu não ganham. nossa liberdade perde, as crianças de Gaza perdem" [...] "Os únicos ganhadores aqui são os que gastam milhões de dólares para censurar toda critica a Israel e o silenciamento das vozes das crianças que vivem todos os dias sob o cerco militar e com a ocupação" completou Lubin.

Fonte: site Prestes a Ressurgir (http://prestesaressurgir.blogspot.com/2012/01/faixa-de-gaza-vista-pelas-suas-criancas.html)

sábado, 25 de fevereiro de 2012

A GUERRA DE ISRAEL CONTRA AS CRIANÇAS: 1.200 PRESAS NUM SÓ ANO

Jonathan Cook

A polícia israelita tem sido criticada pelo tratamento infligido a centenas de crianças palestinas, algumas das quais com apenas sete anos, presas e sujeitas a interrogatório por suspeita de arremesso de pedras em Jerusalém Leste.

Segundo estatísticas policiais recolhidas pela ACRI (Associação Israelita dos Direitos Humanos) no ano passado foi aberta investigação criminal, em Jerusalém, a mais de 1.200 menores palestinos acusados de arremesso de pedras. Este número é perto do dobro do número de crianças presas no mesmo ano no território Palestino mais alargado da Faixa Ocidental.

A maior parte das detenções ocorreu no distrito de Silwan, próximo da Cidade Velha de Jerusalém, onde 350 colonos judeus extremistas instalaram vários enclaves ilegais, fortemente guardados, no meio de 50.000 residentes Palestinos.

No final do mês passado, e numa atitude que reflecte a crescente indignação face às prisões em Silwan, foi noticiado que uma multidão impediu a polícia de prender Adam Rishek, uma criança de sete anos acusada de arremessar pedras. Mais tarde os seus pais apresentaram um protesto acusando os policies de o ter agredido.

A tensão entre residentes e colonos tem vindo a subir constantemente desde que o município de Jerusalém revelou, em Fevereiro, um plano de demolição de dezenas de habitações Palestinas no bairro Bustan com vista à expansão de um parque arqueológico de temática bíblica gerido pela Elad, uma organização de colonos.

De momento o plano está suspenso, em resultado de pressão dos EUA sobre o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu.

Fakhri Abu Diab, um dirigente da comunidade local, alertou para que os constantes recontros entre os jovens de Silwan e os colonos, que alguns designam como “intifada das pedras”, poderia desencadear um levantamento geral Palestino.

“As nossas crianças estão a ser sacrificadas em nome do objectivo dos colonos de se apossar da nossa comunidade”, disse.

Num relatório recente intitulado “Espaço Inseguro”, a ACRI concluiu que na repressão sobre o arremesso de pedras a polícia faz tábua rasa dos direitos legítimos das crianças e deixa muitos menores profundamente traumatizados.

Testemunhos recolhidos por grupos defensores dos direitos revelam um padrão comum de crianças sendo presas em operações que decorrem alta noite, serem algemadas e interrogadas durante horas sem a presença quer dos pais quer de advogado. Em muitos casos as crianças têm relatado ter sido alvo de ameaças e de violência física.

No mês passado, 60 peritos israelitas - juristas e especialistas em cuidados infantis - incluindo Yehudit Karp, antigo procurador-geral adjunto, escreveram a Netanyahu condenando o comportamento da polícia.

“Causam particular preocupação”, escreveram, “ os testemunhos de crianças com idades inferiores a 12 anos, a idade mínima legal para responsabilização criminal, que foram sujeitas a inquérito e que não forma poupadas a formas violentas e agressivas de interrogatório”.

Ao contrário do que sucede na Faixa Ocidental, sujeita a um regime jurídico militar, supor-se-ia que as crianças suspeitas de arremesso de pedras em Jerusalém Leste fossem tratadas de acordo com a lei criminal israelita.

Israel anexou Jerusalém Leste no seguimento da guerra dos Seis Dias, em 1967 (violando a lei internacional). Os seus 250.000 habitantes Palestinos são tratados como residentes israelitas permanentes.

Os menores, por definição qualquer pessoa com idade inferior a 18 anos, deveriam ser interrogados por pessoal especialmente formado e apenas no decurso do dia. As crianças devem ter a possibilidade de consultar um advogado e um familiar deve estar presente.

Ronit Sela, uma porta-voz da ACRI (Associação Israelita dos Direitos Humanos), afirmou que a sua organização ficara “chocada” perante o número de crianças presas em Jerusalém Leste no decurso dos últimos meses, frequentemente por polícias à paisana.

“Ouvimos muitos testemunhos de crianças que descrevem terríveis experiências de violência, tanto no momento da prisão como no interrogatório posterior”.
Muslim, de 10 anos, vive no bairro Bustan numa casa cuja demolição foi ordenada pelas autoridades israelitas. O seu caso, incluído no relatório da ACRI, refere que este ano foi preso quarto vezes, embora tivesse idade inferior ao limite mínimo para responsabilização criminal. Da última vez, em Outubro, foi apanhado na rua por polícias à civil que saltaram de uma carrinha.

“Um dos homens agarrou-me por trás e começou a estrangular-me. O segundo agarrou a minha camisa e rasgou-a pelas costas, e o terceiro torceu-me as mãos atrás das costas e amarrou-as com tiras de plástico. “Quem atirou pedras?” perguntou um deles. “Não sei”, respondi. Começou a bater-me na cabeça e eu gritei com dores”.

Muslim foi levado preso e libertado seis horas mais tarde. Um médico local relatou que o rapaz tinha os joelhos feridos e ensanguentados e inchaços em várias partes do corpo.
O pai de Muslim, que tem dois filhos na prisão, disse que desde então o filho acorda frequentemente em pânico e perdeu a capacidade de concentração nos estudos escolares. “Estes acontecimentos arrasaram-no”.

Ronit Sela disse que o número de prisões em Silwan aumentou significativamente desde Setembro, quando um segurança privado de um colonato matou um Palestino, Samer Sirhan, e feriu dois outros.
Confrontos entre os colonos e jovens de Silwan ganharam maior visibilidade em Outubro, quando David Beeri, director da organização de colonos Elad, foi filmado quando procurava atropelar dois rapazes que apedrejavam o seu carro.

Um deles, Amran Mansour, de 12 anos, que foi lançado por cima da viatura pelo impacto, foi preso pouco tempo depois em casa da família numa operação nocturna.

Ainda em Outubro, nove deputados israelitas da direita queixaram-se de que o mini-bus em que se deslocavam foi apedrejado. Iam prestar solidariedade a Beit Yonatan, uma grande habitação na zona controlada pelos colonos em Silwan. Os tribunais israelitas ordenaram que essa habitação fosse demolida mas o presidente do município de Jerusalém, Nir Barkat, recusou cumprir a ordem.

Na véspera do ataque Yitzhak Aharonovitch, ministro da segurança pública, avisou: “Vamos fazer com que o arremesso de pedras cesse usando a força, pública ou não pública, e vamos restabelecer a tranquilidade”.

No mês passado a polícia anunciou que passará a ser utilizada com maior frequência a detenção domiciliária de crianças e que aos pais passarão a ser impostas multas que poderão atingir os 1.400 dólares.

Um grupo israelita de defesa dos direitos humanos, B’Tselem, relatou o caso de “A.S”, de 12 anos, preso às 3 da madrugada e levado a interrogatório.

“Puseram-me de joelhos voltado para a parede. De cada vez que me movia um homem à civil batia-me no pescoço com a mão…O homem mandou-me prostrar no chão e pedir perdão mas eu recusei-me e disse-lhe que apenas me ajoelho perante Alá. Entretanto sentia dores intensas nos pés e nas pernas. Senti um violento temor e comecei a tremer”.
B’Tselem declara: “É difícil conceber que as forças de segurança actuassem de forma semelhante contra menores judeus”.

Micky Rosenfeld, um porta-voz da polícia, negou que a polícia tivesse violado os direitos das crianças. E acrescentou: “Cabe aos pais a responsabilidade de fazer parar o comportamento criminoso dos seus filhos”.

Jawad Siyam, activista da comunidade local de Silwan, afirmou que o objectivo das prisões e o recrudescimento da actividade dos colonos é “tornar-nos a vida insuportável e expulsar-nos da zona”.

Os 60 peritos que escreveram a Netanyahu advertiram que a agressão sobre as crianças conduz a “distúrbios pós-traumáticos como pesadelos, insónia, descontrolo urinário e temor permanente de polícias e soldados”. Sublinharam também que as crianças sujeitas a prolongada detenção domiciliária estavam a ser privadas do seu direito à educação.

No ano passado o Comité das Nações Unidas Contra a Tortura exprimiu “profunda preocupação” face à forma como Israel trata os menores Palestinos, denunciando que Israel viola a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, da qual é subscritor.

No decurso dos últimos 12 meses, a Defesa Internacional das Crianças tem fornecido à ONU dados acerca de mais de 100 crianças que afirmam ter sido violentadas física e psicologicamente sob custódia militar.

Artigo publicado originalmente no site O Diário.Info (http://www.odiario.info/?p=2130)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A SITUAÇÃO DAS CRIANÇAS NA PALESTINA OCUPADA


Claudio Daniel

A situação das crianças palestinas nos territórios ocupados por Israel é assustadora. Segundo relatório divulgado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, cerca de 700 crianças são detidas todos os anos, para interrogatórios ou confinamento. As prisões em geral são feitas de noite ou de madrugada, num clima de terrorismo que inclui quebrar portas ou disparar balas para o alto, aterrorizando as crianças e suas famílias. Há registros de ocorrências de tais atos de violência em Al-aroub Camp, Bit-rima, aldeia perto de Ramallah City, Bit Ummar aldeia, Nabi Saleh, e em outras comunidades palestinas. Cerca de 35% das crianças palestinas detidas são submetidas a assédio sexual de vários tipos. A associação Alsajeen gravou depoimentos de crianças vítimas de assédio sexual, inclusive ameaças de estupro. Os maus-tratos incluem ainda espancamentos, humilhação verbal e várias formas de violência que atingiram 80% das crianças detidas, segundo o B'Tselem, Centro de Informação Israelense para os Direitos Humanos. Esta entidade aponta ainda a prática de tortura física e psicológica nos menores, como a privação do sono, golpes nas mãos, obrigar as crianças a ouvirem música em volume altíssaimo, mantê-las por várias horas sentadas em pequenas cadeiras, confinamento em celas escuras, ameaça de demolição de suas casas e até o aprisionamento de seus familiares.

Conforme o Centro de Estudos Políticos e de Desenvolvimento de Gaza, as crianças palestinas são interrogadas pela polícia sem a presença de um advogado, sem autorização legal e a maioria das confissões são apresentadas ao procurador-geral militar em até 48 horas após serem recodificadas pela polícia. O testemunho de um soldado israelense pode ser usado para comprovar as acusações, resultando em sentenças de seis meses a um ano para os acusados.

As crianças detidas nas prisões israelenses são proibidas de receber material didático ou qualquer tipo de obra educacional, especialmente nas prisões de Ofer e Majido, e são impedidas de brincar. Elas não recebem visitas de pediatra, contando apenas com o apoio de uma enfermeira. As crianças que sofrem distúrbios psicológicos não recebem qualquer tipo de assistência. Em compensação, o sistema penitenciário israelense permite o acesso a cigarros e material pornográfico, com o objetivo de matar a infância.

É importante ressaltar que todas as facções palestinas são contrárias ao recrutamento de crianças para operações armadas contra Israel.

O caso do jovem Rashid

A Defesa para as Crianças Internacional (DCI) na Palestina apresentou uma queixa ao supervisor jurídico do governo israelense e à administração das prisões israelenses, denunciando a prisão arbitrária do jovem Rashid C., de 16 anos, da aldeia de Lebres. O menino teria sofrido abuso físico, psicológico e maus-tratos por parte de agentes do serviço de inteligência israelense durante sua detenção em Al-Jaloama.

Rashid foi preso por soldados israelenses no dia 04 de novembro de 2011, sendo algemado e forçado a sentar-se sobre um piso de ferro de um veículo militar por longo tempo. Cinco horas após sua detenção, foi transferido para o Centro de Detenção em al-Jalama, onde foi interrogado, sentado numa pequena cadeira de ferro, e ameaçado de tortura, caso não cooperasse com os israelenses. O menino foi proibido de usar o banheiro enquanto era interrogado, apesar de ter solicitado isso várias vezes aos seus captores.

Após o interrogatório, Rashid ficou em confinamento solitário numa pequena cela suja e sem iluminação por 13 dias, até ser libertado.

As práticas de prisão, tortura e maus-tratos contra crianças violam os compromissos assumidos por Israel com a Organização das Nações Unidas (ONU), especialmente a Convenção contra a Tortura, e a Quarta Convenção de Genebra.

O relator especial da ONU sobre tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, Juan Mendez, em seu relatório para a ONU publicado em outubro de 2011, apelou para a proibição total do confinamento de crianças em solitárias: "Considerando a dor ou sofrimento mental severo que o isolamento pode causar, ele pode ser equiparado à tortura ou aos tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes quando usado como castigo, durante a prisão preventiva, por tempo indeterminado ou por um período prolongado, para as pessoas com transtornos mentais, deficiência ou menores de idade", salientou.

GALERIA: MALIÉVITCH (III)

NOVOS POETAS BRASILEIROS (XXXIV)


INSTANTES QUE CABEM OU CAEM

(excertos)

Metáfora: Golpes espessos em vasos de barro. Eis a nova argila. Úmida lembrança de um crime perfeito. Cresce a vestimenta, roupa do espírito. Carne do imaterial. Jamais falsificar o medo.

Todas as laranjas cortadas sobre a mesa.

E eu, a descascar maçãs antes que o filme acabe.

Monolito: ovo apertado na mão. Gelado que escorre pelo canto de dentro do braço. Grade atravessada na garganta. Quadrado preto no meio da sala. O mesmo de antes, o mesmo que nunca vi.

Feito: costura de retalhos. Chão sujo de fiapos, retirar o que não é composição. Som de corte na mesa, risca de giz, alinhavar e soltar. Partir em carreira, marca do café sob o papel.

Qual o instrumento, qual o instrumento que acontece uma mulher ? Ser, até na dobra dos joelhos. Até aonde o peito voa. Ser, na mesa pequena, toalha quadriculada, no pote de manteiga, faca equilibrada e saco de pão amassado. Colecionar tentáculos. Afiar o corte da manhã. Ser, para reagir, mesmo a um custo,

Até traçar a rota e amassar as uvas:

35 doses de rum, Claire Dennis

Pai e filha, Yasujiro Ozu

Nikita, Luc Bresson

O profeta, Jacques Audiard

White material, Claire Dennis

Até estancar o fim.

Poesia: há um momento em que a vida tem um sentido insuportável: um estado de profundo excesso. O corpo ocupa o seu lugar e o campo continua guardando o sol e a noite. Lucidez depois da chuva, engrenagem nova, ligação inesperada e clara. Certa vez ganhei uma caixinha pequena com uma jóia dentro. Aquela imagem de que se guarda algo a mais do que ela mesma e por isso adquire seu último estado de beleza não me sai da cabeça. Saber que se guarda algo a mais e, no entanto, trazer em si a sobra, que se desdobra porque contém. Sobra: palavra de poesia. Estado poético e poesia: ocupação dos cantos da casa, da palavra e do corpo. Busca de pontos cegos, comprometimento com o que se vê depois da visita da verdade. Condensação, convite ao desdobramento. É sagrado porque é intermitente, entra e sai quando quer. Último passo para a fusão total, ultimo momento antes de descer rio abaixo. Aqui não habita a análise combinatória ou a arrumação de dados. Fundação. Fundição, Casa de Solda. Amálgama. Corpo gasto em outro corpo gasto. Guardião de um único sim.

Última cena do filme A Partida: escrever poesia é aquele momento exato de poder dizer: eu posso, eu posso preparar o enterro do meu próprio pai, preparei-me a vida toda para isso.

Na costura dos silêncios, recebe-se a missão de ser poeta.

Aceita-se ou não.

Poema de Angela Castelo Branco.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

GALERIA: MALIÉVITCH (II)

FLOR OCCIPITAL – A FLOR QUE FENDE O MURO


Antônio Moura

A genuína arte é também uma forma de combate. Não o combate literalmente político ou socialmente engajado de forma militante, panfletário, que, pelo contrário, é, muitas vezes, um dos maiores inimigos da arte, colocando-a numa camisa de força, numa viseira ideológica que não permite a ela, a arte, fazer aquilo que lhe é mais caro, expandir, ampliar os sentidos em todos os sentidos.

A poesia, como uma forma de arte das mais exigentes para consigo mesma, tão exigente que atravessa os tempos procurando ferir-se o mínimo possível nos espinhos envenenados de uma entidade onipresente chamado mercado, a poesia, também tem presença no mundo como elemento de forças combatentes e de resistência. Combate e resistência a quê? A um comodismo, um conformismo e um artificialismo que levam à estagnação da linguagem ou a uma espécie de beletrismo, um modo malandro de agradar uma platéia de “bom gosto” ou um formalismo asséptico que garante a seus autores um lugar na galeria dos “bem sucedidos”, sem correr nenhum risco, já que se satisfazem em repetir padrões estabelecidos e consagrados ou procedimentos formais vazios onde parece não correr uma gota de sangue, um lampejo de vida pulsante, e, no fim das contas, todos de resultados não menos previsíveis. Enfim, um coro apático cantando para os seus próprios aplausos.

Agora nos perguntamos, porque este breve preâmbulo que de forma alusiva dirige-se a uma boa parte da situação da poesia brasileira atual? Porque a aparição de um poema que contradiz toda esta situação de apatia acima descrita é digna nota. O poema em questão é Flor Occipital, de Claudio Daniel. Um poema para o qual não dedicarei nenhuma análise escolar, acadêmica, nenhum tipo de dissecação formal, mas uma celebração, por tratar-se de uma obra de pleno vigor poético, daquelas que tem por natureza se contrapor, o que é mais que saudável, eu diria até vital para o movimento das transformações dentro e fora da linguagem. O poema aqui citado e celebrado não é exemplo de defesa de nenhuma causa social, ambiental ou política, pelo contrário é um poema que se cria e se recria livre como uma nuvem, mas que é obra que parte para o enfrentamento, para o desafio de abrir novas sendas no campo da linguagem, ultrapassando limites do bem aceito, do tão sagrado vocabulário poético e, partindo da implosão da linguagem, atinge os vários dispositivos de rebelião de forma implícita mas expressiva.

Como o próprio poema diz logo em seu inicio, numa espécie de auto-retrato do texto “Uma escrita de ossos, nervos, / orbes, lembranças”, Flor Occipital traz em seu cerne o sabor do perigo, o risco da aventura da criação que, a meu ver, é essencial para que toda obra de arte surja e se insurja nos campos de sombra da vida, jogando novas luzes, aqui e ali, abrindo brechas nos muros da existência e não apenas existindo como um artefato verbal, que também não pode deixar de ser e o é.

Uma arte para se fazer presente no mundo – no nosso caso, a poesia – e ter algum poder de interferência na realidade precisa ir além de suas próprias fronteiras, precisa “Jogar-se na sombra em busca do íntimo escaravelho/tatuado na buceta/da Senhora Linguagem./Jogar-se na sombra porque pedra é mais do que grito é mais do que esquilo/ é mais do que o turvo uivo da lacraia./Escrever poesia não é um trabalho para homens delicados”.

O poema Flor Occipital dá-se a este jogo de vida morte, a este trabalho onde tudo está em jogo, desde a estabilidade do pensamento até a estruturação ou desestruturação do que se fala e de como se fala. E como a palavra já é uma acontecimento, um patamar da realidade, subvertê-la, violar seu íntimo, já é uma forma de subversão da realidade, principalmente quando se trata de uma forma verbal que aguça, sacode e anima o lado fantoche do ser humano com um caleidoscópio vibrante de emoções amortecidas, tornando vivo e redivivo este espantalho urbano guiado pelas ruas.

O poema Flor Occipital, em sua escrita-escavação, traz à tona, à superfície do homem, o homem não-rebanho que tanto agradava a Nietzsche.

O poeta Claudio Daniel, ele mesmo, declarou em entrevista que todo verdadeiro artista é de certa forma um artista experimental, pois jamais se conforma com o estabelecido. Eu só tenho a concordar com sua afirmação e dizer que Flor Occipital vale por suas “mandalas de ternura e escárnio” e que na arte, assim como na vida, “estão todos os jogos, todos os mapas, todas as palavras, inclusive aquelas por inventar.


Antônio Moura (Belém 1964). É autor de Dez (1996), Hong Kong (1999), Rio Silêncio (2004), A Sombra da Ausência (2009).

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

GALERIA: MALIÉVITCH (I)



NOVOS POETAS BRASILEIROS (XXXIII)


Os olhos de mim
janelas de um mundo outro
vejo o dentro
espaço fecundo
pertencente ao interno
céu profundo

Lá fora dizem as luzes
de tudo o que não me importa
o sem-sentido
em que não me confundo
Falam os olhos de mim
de uma esfera de segundos

tornados milênios
perdidos num tempo
secreto, íntimo, profuso

Melhor assim
os olhos de mim
cegos ao escuro

* * *

DANÇA-pulso
fulgor
busca evanescente
em ritmo e cor

nos traz de longe
do deserto da fome
da morte ensinada
das portas da culpa
da ausência autoproclamada

dança
poema do corpo para a alma

Poemas de Rosane Carneiro, do livro Corpoestranho (Rio de Janeiro: Editora da Palavra, 2009.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

CASA DAS ROSAS: UM PATRIMÔNIO CULTURAL DA COMUNIDADE






A Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura – instalada em 2004, no casarão da Avenida Paulista projetado na década de 1920 pelo arquiteto Ramos de Azevedo, é um centro de difusão da poesia brasileira e internacional, que realiza periodicamente cursos, palestras, oficinas de criação literária, festivais de poesia e outras atividades, com espírito democrático, aberto a todas as tendências de criação estética. Poetas e artistas de renome já se apresentaram em eventos na Casa das Rosas, como Augusto de Campos, Arnaldo Antunes, Caetano Veloso, Tom Zé, Francisco Alvim, Alice Ruiz, Glauco Mattoso, Claudio Willer, assim como poetas jovens, que têm a oportunidade de lerem os seus poemas ao público, nos saraus livres. A Casa das Rosas já promoveu ou participou em parceria de eventos internacionais, que trouxeram ao Brasil poetas expressivos da América Latina, Portugal, Espanha e África, como os festivais Tordesilhas, Simpoesia, Mar Aberto, Kantoluanda, que contaram com a presença de poetas reconhecidos no campo internacional, como Roberto Echavarren, Joan Navarro, Victor Sosa e muitos outros.

A Casa das Rosas abriga a biblioteca de Haroldo de Campos, com cerca de 30 mil títulos, para consulta no local, e uma biblioteca circulante, dedicada à poesia, cujos títulos podem ser retirados, mediante inscrição. A instituição tem promovido eventos regulares dedicados à obra de Haroldo de Campos, como o ciclo Hora H, que traz poetas, músicos, artistas visuais, tradutores, professores, para debates e performances artísticas, contribuindo para a reflexão e difusão da obra do poeta paulista, um dos criadores do movimento da Poesia Concreta. Todas estas iniciativas fazem da Casa das Rosas um importante marco da difusão da poesia de qualidade, de várias tendências e estilos, junto à comunidade, trabalho este que já é reconhecido, inclusive, por poetas e estudiosos de literatura dos Estados Unidos, Europa e América Latina, que citam a Casa em artigos publicados em diversas revistas.

Desde o início, a Casa das Rosas está sob a direção do poeta, professor e crítico literário Frederico Barbosa, que integra as principais antologias de poesia brasileira contemporânea e teve o seu trabalho reconhecido por críticos como Antonio Candido, Luiz Costa Lima, Sebastião Uchoa Leite, entre outros. Frederico Barbosa integra a coleção Signos, dirigida por Haroldo de Campos até o seu falecimento, que é a mais importante coleção de poesia editada no Brasil. O trabalho de Frederico Barbosa como diretor da Casa das Rosas é sério, responsável, consistente, inovador e conta com o respaldo de todos aqueles que estão seriamente comprometidos com a poesia e a literatura neste país.

Claudio Daniel

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

GALERIA: KANDINSKI (III)

NOVOS POETAS BRASILEIROS (XXXII)


portal


Entre dentro
e fora

a dobradiça
do sonho

rústica
e quebrada

aguarda.


Liso

Deslizam
fugidios
córregos de desejo
entre os poros.

O beijo jorra
em cachoeira
contra o muro
no escuro.

O amor ansiado
é negro
branco
e amarelo.

Escorre,
na sombra
do dia.


Da Natureza II

Então eu,
e o ar

o compacto
pequeno e insignificante,
no incerto
espaço

o corpo começa nas fácias do crânio,
termina na planta dos pés
e ondula o infinito

ser é assim?


contorno

Tocar a coisa dói.
Toda vez que conto um segredo perco a pele.
É terrível.
As veias ficam expostas
a qualquer contato mais bruto
vazam,
transbordam.

Nessa hora é urgente um abraço.
O corpo do outro recolhe o derramamento
coloca tudo no lugar e
milagre,
faz a pele regenerar.

Mas tem que ser em silêncio.

Poemas de Lucila de Jesus.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

GALERIA: KANDINSKI (II)

NOVOS POETAS BRASILEIROS (XXXI)


LUZ EXTINTA


Primeiro, eu digo: fio de fumo.
E descemos.
À luz interrompida, o coro.
Divino enfurnado entre as coxas – extensões do escuro.
(Ou fagulha alojada no magma oculto).
Sorteio. O pano dos seios. E a pele-lençol.
Libações aos balidos. Pés e torsos.
Murmúrios noutras línguas. Lanhos.
Nome interrompido. Saliva de Brômio.
E manhãs que assustam.


O IMPERADOR


Substância

Ele não transcende
Esta forma provisória

Mas leva as maçãs de ouro
Ao jardim − herói solar

E ensina que a beleza
Não é um golpe de sorte

Moeda

Reina sobre o concreto
O visgo de ouro da pedra

O que emana do petróleo
Poder que fascina tanto

E mesmo com mãos atadas
Metralha e metralha
Com efeito vibratório

Ou o peso da Palavra
Quebrada no meio de um crânio

Não é um golpe de sorte
Mas leva maçãs de ouro


AUSÊNCIA

1.

Antes mesmo de ser, ele fere – íntimo desejo.
Morde por dentro a finitude
& chuta
(pés de bode, cabeça de carneiro)

Aqui, o corte, uma fenda:
eu te procuro nesta fresta.

2.

Não escorre entre as coxas, no abandono,

o filho do espanto, desfeito, viscoso:


ausência,
antes mesmo de ser.


3.

Clareira do sangue mais sujo.
Costura ESTE gesto ao grito.

E a seta que se lança à máxima estrela
(uma estrela do barro)
entorna só
memória de um querer
encolhido
latente.


4.

Não dedilho o abandono.
Não reflito.
não mergulho
na atmosfera da fuga.


Sobrevoo a pauta.

Pura matéria, sem alma,

inteiramente escura:

musical.


5

Eu te pertenço mais quando se apaga
a chama de uma vela.
Eu te perco no eterno,
e te procuro aqui, nesta fresta.

Respiro baixinho,
morro devagar.

6.

AGORA, minha lua de fogo incendeia os corpos petrificados
avança pelas trilhas de Saturno
resgata palavras no ventre da baleia
gargalha e fecunda a fossa
onde Nanã apanha o medo.


7.

Eu virei com as mãos a caixa de dádivas:
eram males também.

Tive a pressa de um herói, entornei manhãs, entornei
a Constelação de Órion
no centro do mapa.

Entornei o Arqueiro.
E ele feriu o calcanhar
do meu bicho do espanto.

Fincou na massa espessa do Acaso
a seta que se lança
à máxima estrela.

Poemas de Maiara Gouveia.

GALERIA: KANDINSKI (I)

domingo, 12 de fevereiro de 2012

A POESIA QUE DESAFINA O CORO DOS CONTENTES


Pequena Cartografia da Poesia Brasileira Contemporânea (São Vicente: Edições Caiçaras, 2011) é uma antologia organizada por Marcelo Ariel que reúne sete autores jovens, que vêm publicando seus poemas em blogues, sites e revistas eletrônicas como Germina, Pausa e Zunái. A internet é o veículo mais atualizado e pluralista para a divulgação da poesia, e nela encontramos as vozes criativas e inquietantes de nossa produção literária, que chegam aos leitores sem a mediação dos cadernos culturais da imprensa diária, cujos critérios de escolha são influenciados pelo lobby das grandes editoras e pelas tendências hegemônicas na política literária. Não encontramos hoje veículos como o Jornal do Brasil dos anos 50, que contava com críticos como Mário Faustino, ou o Folhetim dos anos 80, que publicava resenhas de Paulo Leminski. Quem estiver em busca de informação estética nova ou de reflexão crítica atualizada perderá o seu tempo folheando as páginas da Folha de S. Paulo ou da revista VEJA, mas encontrará diferentes vozes, estilos, temas e mitologias criativas no ciberespaço.

Na apresentação da Pequena Cartografia, objeto artístico artesanal com o belo projeto gráfico elaborado por Márcio Barreto, o organizador da antologia diz: “A internet possui muito do artesanal e se harmoniza com práticas de edição como a desta Edições Caiçara, a internet é um esboço dos circuitos telepáticos do cérebro, trata-se da costura de fios visíveis e invisíveis. Nesta seleção que é uma pequena tentativa de realizar um recorte pessoal do que considero o mais representativo da poesia brasileira contemporânea, poemas de Marceli Andresa Becker, Katyuscia Carvalho, Lucila de Jesus, Ângela Castelo Branco, Maiara Gouveia e Daniel Faria formam este pequeno livro, pequena tessitura, que na verdade é a construção de um pensamento sobre a poética dos autores selecionados e sobre a minha própria poética, porque esta fronteira entre nós e os Outros foi a primeira a desaparecer quando alguém disse a palavra ‘Poeta’ pela primeira vez”.

O depoimento do autor, que reproduzimos aqui, merece destaque por desmistificar o suposto “distanciamento” ou “neutralidade” que alguns acreditam ser o princípio regulador de tais escolhas; nenhuma antologia é neutra, nenhuma é definitiva ou imparcial. Toda mostra é parcial, deriva de conceitos estéticos e critérios de gosto pessoal de quem a organizou. Longe de ser um pecado heurístico, peculiar às obras do gênero, a parcialidade é uma confissão de honestidade e de rigor intelectual, que não admite concessões: toda escolha de autores e textos criativos é uma operação crítica, é uma visão curatorial da produção literária de um período, e como tal deve tomar partido, sim, elencando os trabalhos de mais destacada elaboração estética, de acordo com os princípios teóricos, metodologia e grau de subjetividade do curador.

Todas as antologias são incompletas e sujeitas à discussão; por isso mesmo a existência de diferentes recortes críticos de um mesmo período histórico é enriquecedor, não apenas para a batalha de ideias, o confronto de diferentes teorias, mas também para a correção de eventuais exclusões, causadas, não raro, pelo desconhecimento. Não é possível avaliar todos os poetas de uma determinada geração sem um distanciamento temporal, para que o crítico possa consultar o conjunto da obra de cada autor, as revistas literárias publicadas na época, antologias, resenhas e outros textos que forneçam sinais luminosos sobre a produção do período. A empreitada de Marcelo Ariel é altamente arriscada exatamente por isso: ele se dispôs a fazer uma pequena cartografia do que se faz hoje pela mais nova safra de poetas brasileiros, quase todos sem fortuna crítica e inéditos em livro. Esta é uma intervenção cultural perigosa, e ao mesmo tempo excitante e necessária, que apresenta para nós um pequeno número de autores significativos, que trabalham a linguagem poética de modo consistente, rigoroso e inventivo.

Quase todos os poetas incluídos por Marcelo Ariel em sua breve antologia revelam um certo grau de hermetismo, derivado de leituras de Heberto Helder, Paul Celan, Lezama Lima e do Neobarroco: é o caso, por exemplo, de Daniel Faria (“Sangue / de espelho líquido. // Os intermináveis gestos / opacos / da cidade que se joga / sobre os meus braços”) e de Marceli Andresa Becker (“a fome que tenho se come / porque há saída nenhuma / na voz”). Pertencem a esta mesma linha criativa poetas como Andréia Carvalho, Diogo Cardoso, Adriana Zapparoli e Roberta Tostes Daniel, que mereciam estar incluídos neste volume.

O “artesanato furioso” (Marino) de nossa poesia mais recente tem revelado uma força semântica e imaginativa que contrasta com a lírica morna e insossa da linha coloquial-cotidiana, hegemônica nos cadernos culturais, que tem como ícone o livro Elefante, de Francisco Alvim, que recicla o poema-piada e o poema-crônica-de-jornal já exauridos em nosso Modernismo, quase um século atrás. Desafinando o coro dos contentes, a poesia jovem traz de volta as imagens fortes, ambíguas, monstruosas, os ritmos sensoriais, o léxico inusitado e a invenção sintática, levando a poesia para o seu terreno natural, o da encantação e do estranhamento. Quem tiver dúvidas de que a poesia é uma forma de magia, que leia com mais atenção os versos de Marceli Andresa Becker: “inviolado pelo espelho. / (mas se cantar / é cantar contra ouvido e pele, tempo de fibras, / mas se beleza é tu contra carne, / então cantar, cantar, pra te fazer / pedaços)”. Ou ainda, de novo, Daniel Faria: “só se for na beira da praia, lá dentro / a pura monotonia, os dentes da maresia, / que absolutamente não canta, saltam do verde e liso mar / e ferem seus olhos, lambem seus dentes, apodrecem sua boca”.

Em outros poetas incluídos na Pequena Cartografia, como a carioca Camila Vardarac, encontramos o poema em prosa de imagens rápidas, alucinadas, o discurso em jorro contínuo, que de imediato nos remetem à poesia beat e ao surrealismo; porém, há algo mais na escrita da autora, que sugere um diálogo com a estrutura comunicativa dos novos meios eletrônicos, como se palavras e frases fossem os cenários de um videoclip: “cotovelos sobre cacos de vidro retêm as palavras enquanto o / sangue foge, desenho as letras do seu nome dentro do coração / transformado em origami de caveira”. Imagens rápidas e fortes de um brutalismo que se aproxima ainda das artes visuais (lembremos aqui de Francis Bacon e do traço sombrio de quadrinhistas como Bill Sienkiewicz). Uma poeta que dialoga com o simbolismo, o surrealismo, a lírica portuguesa e os seus próprios gritos interiores é Katyuscia Carvalho, capaz de criar metáforas intensas e raras como estas: “Aprofundar interiores / Inconter silêncios / Apalpar um grito que / não terminou / amputado por alguma canção / que soou mais profunda” ou ainda “Um dia encontrarão / os fósseis rupestres / de uma saliva já extinta / virão tradutores / e ólogos e istas / capitalizarão: / (beijos cravados na rocha)”.

Ângela Castelo Branco, poeta e artista plástica, resistiu à tentação de simular paisagens na escrita, fazendo a sábia escolha de pintar o pensamento com todas as flores da fala. A sua poética é a da música do pensamento, mais irônica do que metafísica, mais fragmentária do que sistêmica, e nela recolhemos versos de alto impacto como estes: “Feito: costura de retalhos. Chão sujo de fiapos, retirar o que / não é composição. (...) / Qual o instrumento, qual o instrumento que acontece uma mulher?”

A construção minimalista, voltada ao retrato fragmentário de paisagens, objetos e sensações, mas evitando reverberações estilísticas derivadas de uma leitura ingênua da Language Poetry, está representada na poesia de Maiara Gouveia e Lucila de Jesus, poetas que elaboram artesanatos de alta densidade semântica. Em Lucila, há uma presença maior do humor, da ironia, do paradoxo e do non sense, como nestas linhas: “Os velhos e / as formigas / são invisíveis”; “O amor ansiado / é negro / branco / e amarelo”; “Tudo o que sei / sei sem saber. / Não aprendi, / só encontrei. / É que nasci / com os tendões / hiperextendidos”. Maiara, por sua vez, é mais elíptica, lacônica, não recusa os desafios da sintaxe e nos apresenta insólitas construções verbais, como esta: “escamas de peixe / medeias em fuga / cabelos vivos / no côncavo dos séculos // (a música) / de águas-medusa / guelras / ou ábaco líquido / (a mística do cálculo) / em ondas, em orlas / linhas tortas inúteis // onde o livro-transparência / arde / até os rins”.

A breve seleção de poemas organizada por Marcelo Ariel é sedutora, instigante e nos faz pensar sobre os augúrios das sibilas do apocalipse, para quem a poesia brasileira contemporânea está sempre “em crise” – estratégia de legitimação do cânone estabelecido pela negação insípida da poesia mais recente. A Escola do Ressentimento, que tanto mal faz à nossa crítica literária, é desmentida por obras inteligentes e corajosas como a de Marcelo Ariel, que nos brinda com uma feliz reunião de poetas e poemas

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

NOVOS POETAS BRASILEIROS (XXX)

Eu edito mas não é inédito
Eu medito mas sempre sou cético
Eu acredito mas não me dão crédito
Eu me medico mas não tenho remédio
Eu me dedico mas não é nada sério
Eu implico mas não sou cego
Eu sou todo ouvidos mas não ouço estéreo
Eu pago mico mas não nego
Eu tenho siricotico mas não lembro do telecoteco
Eu sempre sigo mas não estou nem perto
Eu sou o meu mistério


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Dentro de mim mora um monstro
um monstro que come pedra e arrasta correntes
um monstro que não dorme
que quando quer sair faz muito estrago
dizem que é parente daquele do lago
mas não tem ninguém que fale sua língua
já nasceu extinta
basta uma palavra e pronto
já fica enfurecido o meu monstro
a um ponto que não tem quem demonstre
nunca vi uma raiva sem fundo
esse monstro
tem a fome do mundo


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que troço esquisito
que começa com para sempre
atravessa até que a morte nos separe
e termina com preferia nunca ter te conhecido?


Estrela Leminski é poeta, compositora, pesquisadora e musicista. Lançou três CDS, Música de Ruiz, Casca de nós e Tudo tem recheio. Publicou dois livros de poesia, Cupido: cuspido, escarrado (2004) e Poesia é não (2011) e um sobre música independente, Contra-Indústria.

NOVOS POETAS BRASILEIROS (XXIX)

amoreverso

polaridades nas línguas indecisas/ polaroides em gravidezes negativas/ ampolas de translúcidas fissuras/ costelas frias flutuantes // para a armadilha do dia/ abotoadas no relâmpago do dizer/ douraduras afrouxadas pela fivela/ vestida daquela mania distraída// para quarar peitos aquarelas/ pincéis aos dedos sem anéis/ por fora dos fios da neblina/ purpurina deslizada na carcaça amolecida// que se assanha mata mina/ véspera do ocaso estremecendo manhãs/ entre os dentes quebrando avelãs/ talismã de desencanto e pranto


Beatriz Bajo, poeta, tradutora, professora de língua portuguesa e literatura, especialista em Literatura Brasileira (UERJ). a face do fogo é seu livro de estreia. O segundo livro, a palavra é, foi lançado pelas editoras Atritoart e Kan, de Londrina. Mantém o blogue http://lindagraal.blogspot.com/

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

NOVOS POETAS BRASILEIROS (XXVIII)

SEM TÍTULO

Meu único desejo:

Adormecer nesse retrato


Não ser mais as cinzas

que encerram

a ressonância dos pulmões


Seus braços convulsos estendidos sobre a mesa

contém o incêndio de cada minuto

As facas se voltam contra o sol

Anulando os meandros da face


O corpo

se tornará abrigo dos cinco elementos

Os vestidos

se diluirão nas nuvens

A chuva

será tua transpiração


O peito se retorce em tua única afirmação:

Falar

é entregar as armas ao assassino


Sem saber que o silêncio parte minhas vértebras

ao meio.


SEM TÍTULO

I

Ele é um homem

que arrasta os dedos

nos bolsos

Guarda violinos

nas costas

Perfura subterrâneos

de desordem

Descansa em casas

vazias

Constrói vitrais

no mar

Oferece minuetos

aos pés

Percorre a via férrea

da velhice

E jura a vida

diante da rocha.


II


Circularmente

as lâminas resvalam o maxilar


Há dias carcomidos

em que o esqueleto

não suporta o mais leve

sobressalto

Há dias

em que o sol é uma úlcera

cerrando os olhos

E o abismo um feixe

de âmbar e sal


É o homem

que apunhala as raízes

dos cadáveres

Não há retorno


Você

Fratura o percurso ígneo

da noite taciturna de braços em riste.

Recriando

os oceanos dos cabelos dos loucos.


Ariane Alves dos Santos é poeta e mora em São Paulo. Formou-se em Letras e integra o coletivo Poenocine, dedicado à troca de textos, leitura e estudo de poesia. Publicou poemas na revista Zunái.

GALERIA: SANTIAGO CARUSO (IX)

NOVOS POETAS BRASILEIROS (XXVII)

CAVALO DO CAOS

este que desfia tais demências

é meu hóspede, um demônio perdulário

ou serei eu, vapor de virulência

seu hóspede inconcluso

argamassa de medo amando morsas

gritaria gozando em sóis-fracassos

numa esquina, soberbo multiplica

espasmo outrora entrave e correnteza

subterrânea seringa que me singra

e sorve naufrágios frutificando fratricídios


APRISCO DE TARAS

1

canção de gume engastado

na guelra das galáxias

brinca de abrir brechas

no corpo da manhã


2

arquipélago pulsante perambula pelo poeta

mútua marcha de morangos


AS FENDAS DO MURO

Seus cabelos são uma matilha de casarões entre os ventos de meus dedos

Um lago fita infâncias nos seus lábios

Todas as janelas foragidas

Vejo um tango de icebergs nos carrilhões dos seus olhos

Aí certamente adormecem os nômades do basalto

Aí saltam girassóis de cachecol chamejante

Um martírio de morangos em suas orelhas

Os pedestres gritam greves azuis pelos seus poros

Uma lâmina estende mesquitas de néon pela explosão da avenida

Persiste um planeta de puro amor

Nos gestos de seu colar ancestral

Na máscara prismática do imprevisto

Na pele incandescente, na surdez das planícies

Este dia desliza pelo clamor sem raízes

Seu rosto é um pomar de tigres

Duas fontes de mãos dadas descem a calçada

Crivando as rotas com ritmo de rinoceronte

Há um jardim que afirma no fim de cada teu gesto

Que o ferrolho do infinito

Outorga-nos horóscopos

De puro orvalho


REFÉM DO ORVALHO

réstea de sol que lambe a mala
ABARROTADA.

vigor é ventania de vícios na volta.
espirais de desejo, evocações,
meus livros;
uns passos pelo pólen dos lapsos.

este peso no peito
é sabor de se despojar,
deixar pedaços nas pensões do tempo,
se sentir crivado de acréscimo
como relva
que se rumina em rapsódia

Fabrício Clemente é poeta e publicou na Zunái.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

GALERIA: SANTIAGO CARUSO (VIII)

NOVOS POETAS BRASILEIROS (XXVI)

com chiados-guinchos, silvos, e ríspidos miados de sax-tenor, um

free-jazzista gato barbieri, reproduz, não sem as sincopadas com-

panhias do contrabaixo e da bateria, toda a dissonância que — a

despeito do fim reprodutor — emana, — como se de atonal, van-

guardista sessão de improvisos, emanasse —, de um operístico et

félin ménage à trois, entre 1 macho e 2 fêmeas (barítono de bigo-

de, ele; contraltos de vibrissas, elas) — desafinado trio.


* * *

Cônico Colar

de Plástico — para

o Bichano, um Desmancha-

-Prazeres — como

que a Anular

o — Não pequeno —

Potencial enquanto Lixa

(Septuagésimo Sétimo

Grão) da Língua Gatal

que vive a deixar, de

Tanto Poli-la, uma

sua Informe Chaga, ou Ferida,

em (Felina) Carne Viva


* * *

Nudez de uma Lacuna na Mesclada Pelagem (Claroescura) do

Pequeno Felino — um Felis Cattus — que a Lambe a Lambe na

(Talvez) Vã Tentativa de — co’a Volátil Umidade de sua Saliva —

Vesti-la.


* * *

Fita-Virgem Deflorada

— Não sem Consentimento —

pelos Graves & Agudos de

uma Acusmática Gravação

d’um Indiscreto Disco de Vinil:

* * *

Aproximados Sessenta e

Nove Minutos de Algo ,—

Sons —, Muito Próximos

àqueles, pelas Cordas

Vocálicas e Em “Certas

Circunstâncias”, Não Omitidos:


Fabrício Slaviero, poeta, nasceu em Taboão da Serra (SP), onde reside, em 1982. Publicou poemas na revista Zunái.

GALERIA: SANTIAGO CARUSO (VII)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

NOVOS POETAS BRASILEIROS (XXV)


PAPEL DE RISCOS


I

A aguda serpente finca e dobra o corpo dormente nas tramas da pele fina e branca, linho de algodão, leve no vento e no roçar da fria camada serpentina da agulha que se finca a cada hiato da pele, dócil trama que plasma o leve e a aspereza do toque e se entrega à aguda e violenta investida do seu roteiro de estradas e trilhos a céu aberto.


II

A mouca agonia das frestas abertas no corpo cala o traço no desejo do grafite negro sobre a pele alva. O silêncio costura a linearidade do instante no corpo. O tempo cala. O tempo resvala na calada do corpo. O corpo agoniza. O grafite pontua esse instante. As frestas grafitadas e os vértices falicamente atravessados pelo desejo da pele alva. A letra perfura a ortogonalidade e costura o tempo. Não resta mais nada além da agonia desse ponto letra falo desejo. O silêncio vaza no vértice vazio.


III

Exercito o grafite.

Caras cabeças cortadas sorriem sobre o balcão. Acenam com dentes parcos e pardos o destino das gentes emolduradas nos vagões cinéticos.


IV

O grave estupor exala dos poros a memória cindida no tempo pêndulo grave gravado no peito das horas porosas da carne que espera lenta e certa o toque final.


V

No cinzel das rotas joguei os dados

contei os fardos e alojei ao longo

da linha cortada e atada aos cacos,

aos trancos e barricadas, os trunfos.

Bordadas as linhas em mosaico de fotos

salvei das tripas meu coração cinzelado

e cindi no horizonte meu olhar em meio

aos coriscos das letras a berrarem no paraíso.

As rotas tomam seu rumo:

risco no papel o riso que me rasga.

Susanna Busato é poeta e professora de Poesia Brasileira na UNESP (São José do Rio Preto/SP). Mantém o blog Papel de Riscos, http://www.meupapelderiscos.blogspot.com/.

GALERIA: SANTIAGO CARUSO (VI)

NOVOS POETAS BRASILEIROS (XXIV)


SAPHO


A Sophia, à Dora


“... e perto dos templos derruídos,

a respiração do velho Mar...”

(Dora Ferreira da Silva, Hídrias)



Cabeça amendoada inclino-me ao seio

festejo silêncio e brecha

vento abrindo o véu que o guardava

pende o tecido em oferenda e eu

inclino-a e acendo

um riso ensimesmado



o que perturbaria?

o colar de ouro o colo

cravejado com juras e sinais

a serpente aninhada ao pulso

o gesto de estar

sedutoramente para dentro

sentada neste penhasco e tendo

a calda do tecido ventando em mim –

o mar

satisfeito



com lira ao lado

a antiga tartaruga de Hermes

o gozo fundo de Apolo,

Sapho



faixa nos cabelos, prensas

fivelas a deixar livre o pendor

de tecer sobre os ombros

costas delicadas seios

um coração dependurado em cada

escuta, e é em ti que movo

mar amante



dentro de mim entregue refeito

apareço a sorrir – e olho-te

não vês que olho



e diretamente só olho a ti



(ao redor da estátua

Outra mulher sedenta do contato

– primeiros olhos de ressaca –

fixa taxativa, a negação aos visitantes:

o pólen de guardar o tempo, dentro de caixas

brancas e ameaças

as substâncias incólumes

o interdito do tato

a macular as estátuas)





o rosto um triângulo

os cabelos trigais adocicados

e é em mim que me chamo

chamando-te mar

amante

leda mão absolutamente

em concha

sabe o fim das pernas

coleadas em mel, hastes

de vime e vinha, urna ritualística

do desejo



ser este poço em perfeita calma

culminada de estratégia e de perícia

címbalo convulsivo, pedraria alva

serpente em riste a untar um pulso

antes ou depois de cantar

antes ou depois que cante

canto azul marinho, pinheirais, distância

e clara



repousa a natureza a satisfazer-me em sono



repleta de iguarias

o olhar marmóreo o busto

ao contrapelo do tangível

lira cornucópia de um couro

exposto e esconso

feito para ti e de ti oculto



são sete as cordas da lira

e o labirinto no casco que

o colcheio do som abriga



invento

um rio com apenas este gesto

uma inclinação de cabeça, um Tejo

este aprumo de puro arder



estrondo mortalmente silencioso

dedico-te ou me olho

ao busto meu levemente ácido

no vento alto desta falésia

não saberás?



tem ainda a lira Dioniso

seus cachos rugidos escorrendo

pela lateral do leste



ergue firme mão direita e circunda

a taça a qualquer imagem que voe

e agrada sentar-se ali nos despojos

de uma cria de pantera, homens e mares

junto à mão, a taça

à cintura, dentro dela

bebendo

o pássaro entusiasmado



é esta a pureza das pombas



curvar-se alta para o poço

do que impele Baco

atrás de ti, Sapho

de mim, à frente

desmembrada a querela dos triângulos

nas noites quentes longas afiadas

nus em bosque indistinto

e sagradas



a taça de Dioniso o ventre

de Sapho a lira

de uma noite

inquebrantável



protejo, projeto, não saberás

se ajeito os olhos no colo do firmamento

ou se fito quão longe do mar

o repouso agitado de teus membros



não saberás, tenho os olhos claros



e este declive em minha face



enlaça dedicada maneira

de entoar a lira com a lira

deitada ao lado


Roberta Ferraz nasceu em São Paulo, em 1980. Estudou Letras na PUC-SP e História na USP. Publicou em 2003 seu primeiro livro, de contos, Desfiladeiro, pela Editora Nativa. É mestre em Literatura Portuguesa, pela USP. Ganhou em 2008, na categoria Texto, o prêmio do Programa Nascente da USP, com seu livro lacrimatórios, enócoas, publicado em 2009 pela Oficina Raquel. Publicou também, com Érica Zíngano e Renata Huber, o livro fio, fenda, falésia, com apoio do ProAc 2009.

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domingo, 5 de fevereiro de 2012

NOVOS POETAS BRASILEIROS (XXIII)

Um dia encontrarão
os fósseis rupestres
de uma saliva
já extinta

virão tradutores
e ólogos e istas

capitalizarão:

[beijos cravejados na rocha]

e os poetas dirão:
a fotossíntese da pedra!

as ortodoxias
intoxicando tudo
implorarão o milagre da obra
de uma língua santa:

- uma palavra sua e seremos salvos!

pigmento inteligível para espécies vorazes
corroendo caverna
sanguinidade de sal

mas que lábios
que línguas
que linguística guerrilha
deixa fendas na fala?

como corpo sem carne
a linguagem não cala
só o homem sucumbe à ausência de órgãos
falência múltipla

na boca nunca insossa do tempo


* * *

desse teu nome

minha boca carece


verbo que carne!


atocaio-te a língua

com minha fome


DESABOTOADURAS

Poesia com dentes

mordendo-me a fala


Poesia com falo

com tato, com toque


Se não me roça

ao pé da letra

Se não me rasga

botões à pele

diante dela

,frígida,

- calo!

Katyuscia Carvalho é poeta e mantém o blog http://katyuscia-carvalho.blogspot.com/.

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NOVOS POETAS BRASILEIROS (XXII)

CAMALEÔNICA

febre
parábolas das águas ternas
termas
gêiseres inquietos
nascentes
vulcânicas rochas quentes
onde
lagartos se estiram
até mudar de cor
[... talvez

de pele


FANTASIA

vórtices vértices vertigens
ventanias
distantes

do ponto

em que me encontro
(vazia)

eqüidistante o outro ponto
é fantasia


ILHA


(sou) ilha
que se afasta do que foi
l e n t a m e n t e

sonhando
com seu (meu) pedaço
c o n t i n e n t e

NÃO FIM

parto do princípio
que partir é o principio
e chegar é recomeço
[... não fim


Nydia Bonetti nasceu em 1958, é poeta e engenheira civil, bloga no Longitudes.

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sábado, 4 de fevereiro de 2012

NOVOS POETAS BRASILEIROS (XXI)

ARQUERIA

Oríon mira a Aurora

criva-se de flechas


mirar é atingir-se


VIRGEM BRANCA

Diana

clarim de lua

no sono de Endimião


nele dorme

qual galope de morte

dor de flecha e aljava


amar

silêncio

sono de magma


PALAVRA


um cão de caça

bebe o cristal dos olhos


jardim de água


violeta


nonada


CHANSON DE TOILE

Ela tece sons

em lãs de estrela


palavra


música do ar

entre dois tempos

carretel de silêncios


Jacineide Travassos nasceu em Carpina (PE). É bacharel em Crítica Literária pela UFPE e mestra em Teoria Literária pela UFPE / USP. Publicou o Livro dos Ventos (poemas) e integrou as antologias de poesia brasileira contemporânea Todo começo é involuntário (São Paulo: Lumme Editor, 2011) e a Antologia da poesia brasileira no início do terceiro milênio (Póvoa de Varzim: 07 Dias 06 Noites, 2008).

GALERIA: SANTIAGO CARUSO (II)

NOVOS POETAS BRASILEIROS (XX)


ANTES QUE A NOITE MORDA

( Para Ana Lúcia Paterniani )


Cá estamos

com essa exclusiva insanidade

cotidiana

roendo unhas

entre caixas de aprazolan

e n cápsulas de sertralina,

cloridrato


A prescrição funciona

O pânico foi emoldurado

entre duas lâminas de vidro

e sustenta-se num parafuso

enfiado na parede

de um quarto

que evitamos


Bem-vinda é a chuva

nessas noites de alforria

conquistada

a faca e foice:


parte da água

percola nos jardins

e na terra dos vasos

e, como um homem comum

dará boa cama e boa seiva


a que despeja no telhado

- ó triste fado -

percorre rotas contorcidas

no interior de ductos

que quebram-se em ângulos

nos túneis de metal galvanizado

antes de lavar o chão do pátio


e a chuva do pátio

terá destino mais prosaico

num metrô de PVC

que desemboca na sarjeta


A estória dessas águas

sumaria a história de uma vida


e nesta noite de ação de graça

e bioquímica domada

pegamos uma tela em branco

pigmentos, pincéis

e criamos cenas de uma infância surreal


- P.S.:

As águas das pias, dos chuveiros

dos vasos sanitários

sentenciadas e servis

terão destino asqueroso


Antes que a noite morda

bendita é a chuva na loucura nossa

Assis de Mello é natural de Piracicaba, São Paulo. Biólogo com mestrado em Zoologia e doutorado em Biologia/Genética, é docente na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”- Campus de Botucatu, onde também se dedica ao estudo de insetos. Publicou o livro de poesia Na borda da ilha (Lumme, 2010).

Escreve o blogue http://coisasdochico.blogspot.com/

GALERIA: SANTIAGO CARUSO (I)

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

NOVOS POETAS BRASILEIROS (XIX)

I


Quanto menos se dorme

mais Lynchiana a realidade parece

não ver coelhos agindo de forma humana na sala

não significa a ausência deles

eles estão lá, mas quanto menos se dorme

mais normal o absurdo se torna

e mais petrolífera a noite se apresenta

como se anjos borrifassem gasolina nos olhos

para confundi-los e fazê-los crer

que o néon na calçada é luz divina



Quando não se dorme

somem as distâncias

apenas automatismo

dos passos dirigindo-se

até o dragão de quarenta lugares

que vai pro centro da espiral

porque não dormir é uma maneira

de ser abstrato e parecer contínuo

perpétuo movimento cerebral

mesmo quando não há sono

há sonho.



II

Buscar é a condição dos homens e alcançar é conquista divina. o alcance nem sempre é uma vantagem porque deus errou nas suas escolhas e respirar pequenas felicidades encontradas onde ninguém vê é a forma mais pura de fé. por aí estão disputando o corpo dele, repartindo seus pedaços todo dia pão às avessas, mas o alimento e o nome do criador provém dos medos humanos. deus no campo azul do poder, onde os homens o colocaram e onde ele brinca de Iscariotes − sarcasmos nos sacrifícios.


III

Somos maiores

somos maiores do que a individualidade latente

latejante veia dentro dos copos entre as mãos

beberemos das veias e artérias

cortando o crepúsculo do inferno

sangue jamais contaminado

por valores previamente estipulados


Desse mundo não queremos herança

nos contentamos com algumas palavras

que buscamos nas naturezas sábias


Rimbaud me ilumine

com sua lanterna mágica

Rimbaud me ilumine

mas não me cegue

sigo-te

com o manto da invisibilidade


Baudelaire

teu albatroz vive em mim

um dia vou matá-lo

com meu punhal da sorte

e ele voará

proutro coração


Um coração que nasce sozinho sem raízes

porque pulsa fora da terra, no campo fértil

dos pensamentos livres de espinhos e flores


Coração suspenso que tudo reflete

porque está acima de todas as hipóteses

é apoteose única e indecifrável


No labirinto de heras e nuvens brancas

brandos ventos onde os alados buscam sossego

com olhos puros de alguma coisa não nomeada.

Camila Vardarac, poeta carioca, é formada em Cinema e publicou poemas em sites e revistas eletrônicas como Cronópios e Zunái. Participou do festival literário Artimanhas Poéticas, realizado em 2009 no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro.

GALERIA: JACKSON POLLOCK (VII)



NOVOS POETAS BRASILEIROS (XVIII)

SONHO COM ANTONIN ARTAUD


Antonin Artaud visitou meus sonhos

pedindo que eu fosse vê-lo na prisão

Eu o temia que se o soltassem,

ele sairia mais louco...

eu o temia que num impulso

ele mataria a primeira pessoa que visse numa encruzilhada...

Sabia que ele estava morrendo...

Sua face terrivelmente marcada por verrugas

tremia arrastada por um maldito pesadelo da sociedade.

Amputaram seu cérebro como também fizeram com outros loucos visionários.



Antonin Artaud,

você esteve em todos os lugares do meu sonho.

No fundo, não estava em lugar algum.

Eu o amava como a um irmão

Eu o acariciava.

Você se despia e exibia toda a sua pele petrificada

estigmatizada...

E mais eu o amava, como nunca havia amado ninguém antes.

Sua face sarcástica

demonstrava um desprezo total pela Dor.

Havia um brilho, uma beleza que sua alma inocente

revelava e fazia surgir de um fundo tenebroso e impuro.



Sei que sua alma de águia negra sobrevoou os cinqüentas eletrochoques

e que nunca mais voltará à esta terra desumana

onde ainda passeiam os homens de mediocridade vergonhosa...

sei que sua asas de águia negra decolam do arranha-céu

levando consigo meu espírito...



Ó Antonin Artaud,

Seu espectro azul me persegue

As suas incuráveis chagas desabrocham as rosas do inverno...

Chiu Yi Chih, poeta, formado em Letras Clássicas (grego) pela USP.

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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

NOVOS POETAS BRASILEIROS (XVII)

sylvia vedou mal as palavras.

quatro ou cinco toalhas,


foi pouco.

foi pouco.


como se tivessem escapado

as válvulas


de um exército inteiro de

panelas de pressão.


ouvia-se de longe o assovio —

a estranha


mediunidade dos lobos,

uivante.


hoje o gás se alastra no poema:

um continente inteiro


varrido pela sombra cogumélica

da nuvem.


oh, little boy, fat man,


ele viria faminto para casa.

mesa posta,


garfos, facas, guardanapos

que parecem gaze.


fedem a doenças extraconjugais.


o que nunca lhe disseram:

há um ideograma


para a tortura.


há uma oração bélica nas

vísceras


das máquinas de escrever.


(os órgãos de metal a se atirarem

como mísseis sobre


a folha.)


quantas beatas ainda rezam

novenas


dentro do forno?


quantas, será, ainda sussurram

pai-nosso,


"papai, papai, seu puto,"


com terços em torno da sua

cabeça?


cada palavra.


era só abrir a boca, todas as bocas.

deitar-se, no piso,


em meio a granadas, minas,

farelo de pão.


a vida, sylvia, foi pouco.

Marceli Andresa Becker é estudante de filosofia e professora. Publicou poemas nas revistas Zunái, Germina, Eutomia e Pausa e no portal Cronópios.

GALERIA: JACKSON POLLOCK (V)