sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

HAPPY NEW YEAR!

Cena do filme Lua de Fel (Bitter Moon), de Roman Polanski.

CÂNONE E ANTICÂNONE: BERTOLD BRECHT


Haroldo de Campos

“Pode-se dizer que a posição poética de Bertold Brecht (1898-1956) é, até certo ponto, simétrica à de Maiakovski. Daí a singularidade da divulgação de poemas seus – já que ele é principalmente conhecido entre nós como grande renovador do teatro contemporâneo – para que a lição de sua poesia possa ser meditada na atual fase de nossa literatura. Anatol Rosenfeld, no admirável posfácio que escreveu para a edição brasileira do poema Cruzada das Crianças, ilustrada por Gerson Knispel (São Paulo: Brasiliense, 1962), acentuou que, em Brecht, se pode colher um elevado exemplo de lealdade do artista a um duplo compromisso, ético e estético. E acrescenta:

O que Brecht exige é a transformação produtiva das formas, baseada no desenvolvimento do conteúdo social. Mas este desenvolvimento material, por sua vez, exige a transformação dos processos formais. Isto explica a pesquisa incansável de Brecht, no terreno da palavra, do estilo, do verso, do ritmo, da cena, do desempenho do ator, da estrutura de sua arte. Esta pesquisa e experimentação incessante não deixaram de lhe render a censuras e a acusação de ser formalista e esteta, quando na realidade a consciência social e a consciência estética se lhe afiguram inseparáveis. O poeta que trai os valores estéticos, isto é, a sua honra profissional, é, no fundo, um traidor de sua consciência social.

Ora, justamente de Maiakovski é a postulação de que ‘sem forma revolucionária, inexiste arte revolucionária’.

A poesia de Brecht aplica à estrutura poemática processos de montagem que podem ser analisados em termos dialéticos, da mesma maneira que Eisenstein interpretava dialeticamente sua teoria da montagem baseada no ideograma chinês. Aliás, a influência da técnica de composição sino-japonesa em Brecht é evidente, seja no seu teatro, que pode buscar uma linhagem na estrutura das peças nô, seja na sua poesia, especialmente na da última fase, de extremo despojamento e de arquitetura elíptica, à maneira do haicai da tradição nipônica, só que com um nítido cariz crítico (como de resto muitos haicais, inclusive do mestre do gênero, Bashô, pois é apenas um equívoco imaginar-se que o breve poema japonês se preste apenas a efeitos lírico-paisagistas).”

(Do livro O Arco-Íris Branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997)

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

GALERIA: BERTOLD BRECHT (IV)


POEMAS DE BERTOLD BRECHT (IV)

ALGUMAS PERGUNTAS A UM HOMEM BOM

Bom. Para quê?
Você não é corrupto,
Mas o raio que destrói a casa
Também não é corrupto.

Você diz: jamais se desdiz.
Mas o que você diz?
Você é de boa fé
Declara a sua opinião
Mas qual opinião?

Você tem coragem
Contra quem?
Você é um artista
Repleto de sabedoria
Pleno de talento
Para quem?

Você não visa o próprio interesse
O interesse de quem, então?
Você é um bom amigo,
De boa gente?

Então, escuta:
Nós sabemos que você é o nosso inimigo.
Por isso vamos te encostar no paredão.
Mas, em consideração aos seus méritos
E às suas boas qualidades,
Num bom paredão.
E te fuzilar com boas balas
Disparadas por bons fuzis
E te enterrar
Com boa pá
Em terra boa.

Tradução: Maria Alice Vergueiro / Catherine Hirsch


CANÇÃO DE SALOMÃO
(fragmento)

O indiscreto Brecht quis saber
Escutem suas canções
Como os ricos têm poder
De acumular tantos milhões
Pobre no exílio foi parar
Brecht xereta
Bisbilhoteiro
E com o tempo a correr
Enfim o mundo percebeu
Fuçar demais foi a sua perdição
Melhor viver na discrição...

Tradução: Roberto Galizia


DISCURSO FINAL

Fundar um banco
É bom pra preto / branco
Se o dinheiro não se herda
Descole, senão merda.
Boas para isso são ações
Melhor que facas, canhões
Só uma coisa é fatal:
Capital inicial.

E se a grana falta?
Donde vem, se não se assalta?

Tradução: Elias Andreatto

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

GALERIA: BERTOLD BRECHT (III)


POEMAS DE BERTOLD BRECHT (III)


LISTA DE PREFERÊNCIAS
Alegrias, as desmedidas.
Dores, as não curtidas.

Casos, os inconcebíveis.
Conselhos, os inexeqüíveis.

Meninas, as veras.
Mulheres, insinceras.

Orgasmos, os múltiplos.
Ódios, os mútuos.

Domicílios, os passageiros.
Adeuses, os bem ligeiros.

Artes, as não rentáveis.
Professores, os enterráveis.

Prazeres, os transparentes.
Projetos, os contingentes.

Inimigos, os delicados.
Amigos, os estouvados.

Cores, o rubro.
Meses, outubro.

Elementos, os fogos.
Divindades, o logos.

Vidas, as espontâneas.
Mortes, as instantâneas.

OS ESPERANÇOSOS
Pelo que esperam?
Que os surdos se deixem convencer
E que os insaciáveis
Devolvam-lhes algo?
Os lobos os alimentarão, em vez de devorá-los!
Por amizade
Os tigres convidarão
A lhes arrancarem os dentes!
É por isso que esperam!

EPITÁFIO 1919
A Rosa Vermelha desapareceu.
Para onde foi, é um mistério.
Porque ao lado dos pobres combateu
Os ricos a expulsaram de seu império.

A QUEIMA DE LIVROS
Quando o regime ordenou que fossem queimados publicamente
Os livros que continham saber pernicioso, e em toda parte
Fizeram bois arrastarem carros de livros
Para as pilhas em fogo, um poeta perseguido
Um dos melhores, estudando a lista dos livros queimados
Descobriu, horrorizado, que os seus
Haviam sido esquecidos. A cólera o fez correr
Célere até sua mesa, e escrever uma carta aos donos do poder.
Queimem-me! Escreveu com pena veloz. Queimem-me!
Não me façam uma coisa dessas! Não me deixem de lado! Eu não
Relatei sempre a verdade em meus livros? E agora tratam-me
Como um mentiroso! Eu lhes ordeno:
Queimem-me!

ORGULHO
Quando o soldado americano me contou
Que as alemãs filhas de burgueses
Vendiam-se por tabaco, e as filhas de pequenos burgueses por chocolate,
E as esfomeadas trabalhadoras escravas russas, porém, não se vendiam
Senti orgulho.

Tradução: Paulo César Souza

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

GALERIA: BERTOLD BRECHT (II)


POEMAS DE BERTOLD BRECHT (II)

A LENDA DA PUTA EVELYN ROE

1 - Veio a Primavera era azul o mar
Mas ela não sossegou
Com o último barco ao navio chegou
A jovem Evelyn Roe.

2 - Vestido bem simples cobria seu corpo
Belo celestial
Em vez de jóias o ouro só
Do seu cabelo tão sensual.

3 - “Meu capitão, ai, leva-me à Terra Santa
Anseio por meu Jesus!”
“Pois vem, mulher, porque bela és tu
E loucos somos nós!”

4 - “Cristo vos pague que pobre eu sou
Minh’alma é de Jesus, é do Senhor”.
“Pois dá-nos teu tenro corpo, mulher
Porque o Deus que tu amas não nos pode pagar
Pois já morreu na cruz”.

5 - Eles navegaram com vento e sol
E amaram Evelyn Roe.
Que comeu seu pão e bebeu seu vinho
Mas com lágrimas o amargou…

6 - Dançavam de dia
Dançavam de noite
E o leme ficou ao léu
Evelyn Roe era branda e doce
Eles duros qual pedra e fel.

7 - Ela viu primavera e verão passar
De sapatos rotos de noite andou
De verga em verga, perdido o olhar
Uma praia tranqüila quis vislumbrar
A pobre Evelyn Roe.

8 - Dançava de dia
Dançava de noite
Qual doente enlanguesceu
“Meu capitão, quando afinal
Terra Santa verei eu?”.

9 - Nas coxas o capitão sorriu
E beijando-as lhe falou:
“Quem disso tem culpa não sou eu
E sim a Evelyn Roe”.

10 - Dançava de dia
Dançava de noite
Qual cadáver ela ficou
E do capitão ao grumete, enfim
Todo mundo dela se fartou.

11 - Trapos cobriam seu corpo já
gasto ferido inchado
E grenhas imundas a lhe cair
No rosto desfigurado.

12 - “Jamais te verei, Cristo meu Jesus
Com meu corpo pecador
Tu não podes com puta Te encontrar
Com esta pobre mulher, Senhor!”

13 - Da popa à proa ela vagueou
Coração e pés a sangrar
Numa noite quando ninguém a viu
Ela se atirou no mar.

14 - E a onda glauca a acolheu
E o seu corpo alvo tornou
E agora bem antes do capitão
Terra Santa ela alcançou.

15 - Quando enfim chegou ao Paraíso
São Pedro o portão trancou
Deus disse:
“Não vou acolher no céu a puta Evelyn Roe”.

16 - Também quando ao Inferno ela chegou
A porta na cara levou
E o diabo gritou:
“Não quero aqui a beata Evelyn Roe”.

17 - Então ela anda de déu em déu
Ao vento e ao luar vagueando
Em verdade vos digo eu a vi passar

Tarde da noite… no campo a errar…
Às tontas, sem paz, sem jamais parar
Alma penada
Sem morada
A pobre Evelyn Roe.

Tradução: Tatiana Belink, Maria Alice Vergueiro e Catherine Hirsch

GALERIA: BERTOLD BRECHT (I)


POEMAS DE BERTOLD BRECHT (I)

REMAR, CONVERSA
Noite. passam deslizando
dois barcos. Dentro
dois jovens. Torsos
nus. Lado a lado remando
conversam. Conversando
remam lado a lado.

HOLLIWOOD
Toda manhã, para ganhar meu pão
Vou ao mercado, onde se compram mentiras.
Cheio de esperança
alinho-me entre os vendedores.

SOBRE UM LEÃO CHINÊS DE RAIZ DE CHÁ
Os maus temem tuas garras.
Os bons alegram-se com teu garbo.
O mesmo
quero ouvir
de meus versos.

EPITÁFIO
Escapei aos tigres
Nutri os percevejos
Fui devorado
Pela mediocridade

LENDO O JORNAL ENQUANTO FERVE O CHÁ
De manhã cedo leio no jornal os memoráveis planos
do Papa e dos reis, dos banqueiros e dos magnatas do petróleo.
Com o rabo do olho vigio
a panela com água para o chá,
como esta fica turva e borbulha e de novo se aclara
e ao transbordar do vaso apaga o fogo.

A MORTE VOLUNTÁRIA DO FUGITIVO W. B.
Ouvi dizer que levantaste a mão contra ti mesmo
antecipando o carniceiro.
Oito anos banido, o olho no triunfo do inimigo,
impelido afinal a uma fronteira intranspassável
passaste, como se diz, o passo transpassável.

Ruem os reinos. Chefes de quadrilha
acodem em compasso de estadistas. Os povos
somem da vista, toldados pelas armas.

O futuro no escuro. Frágeis
os poderes benignos. E vias tudo isso
quando destruíste o corpo torturável.

Tradução: Haroldo de Campos

domingo, 26 de dezembro de 2010

GALERIA: RICHARD AVERDON


COLEÇÃO CAIXA PRETA

Caros, a coleção de poesia Caixa Preta, que organizo para a Lumme Editor, já tem onze títulos publicados. São eles:

Paulistanas e Homoeróticas, de Horácio Costa

Pincel de Kyoto, de Wilson Bueno

Poemas Diversos, de Élson Fróes

Mergulho às Avessas, de Andréa Catrópa

Prática do Azul, de Jorge Lúcio de Campos

Fronteiras da Pele, de Ana Maria Ramiro

Trânsitos, de Virna Teixeira

A Cartografia da Noite, de Micheliny Verunschk

Nave, de Lígia Dabul

De Gestos Lassos ou Nenhuns, de Thiago Ponce de Moraes


Quem estiver interessado em adquirir algum desses títulos pode escrever para a Lumme, pelo e-mail vendas@lummeeditor.com

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

FIO, FENDA, FALÉSIA

eu sou
(na medida
do meu silencio)
e nada me agarra
assim com força
eu sou efêmera
fêmea de pleno ar
profusão de escape
e passagem
eu vou ali e
já não sou mais
estou, onde pensam
me ver: sumi-
douros pr'além mar
— desculpe,
já não estou
eu sinto muito
(eu sinto demais)
meu corpo é quem
responde por mim
um esqueleto
vermelho
minha túnica
de estrelas
minha mão
um espelho
cravejado
de dentes
minha boca
em ferrugem
sem nenhuma
garantia
estilhaço
de pensamento
e breu, meu
coração acelerado

(Poema do livro fio, fenda, falésia, de Érica Zíngano, Roberta Ferraz e Renata Huber, publicado neste ano com o apoio do Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura. Um belíssimo livro de poesia.)

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

GALERIA: NOSSAS LEITORAS


CONFISSÕES INCONFESSÁVEIS


Caros, o Ano do Tigre foi melhor do que eu esperava. Fui aprovado no exame para o ingresso no doutorado na USP, no programa de Literatura Portuguesa, obtive a faixa roxa (4º kyu) em Aikidô, arte marcial japonesa que pratico há algum tempo, e agora fui nomeado curador de Literatura no Centro Cultural São Paulo. Ministrei cursos de criação poética na Casa das Rosas e em seis bibliotecas públicas, além de manter o Laboratório de Criação Poética, que está em atividade há três anos. Participei de eventos literários no Rio de Janeiro (Artimanhas Poéticas, do qual fui curador, ao lado de Gabriela Marcondes), São Paulo (III Festival Simpoesia), Santa Catarina (Folia das Falas), Paraíba (I Seminário Sesc de Literatura), Distrito Federal (IV Concurso Literatura para Todos, no qual fui jurado) e ainda estive uma semana em Portugal, participando do II Festival Tordesilhas, Poetas de Língua Portuguesa, que organizei com Virna Teixeira e aconteceu na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa. Publiquei a plaquete Letra Negra, talvez o melhor poema que escrevi até hoje (selo Arqueria), uma segunda edição de A Sombra do Leopardo (selo Orpheu, da editora Multifoco) e agora a antologia Todo começo é involuntário: a poesia brasileira no início do século 21 (Lumme Editor). Ufa, pensam que foi só isso? Editei três números da revista Zunái, desta vez sem a colaboração do amigo Rodrigo de Souza Leão, que se foi há um ano, e ainda publiquei artigos acadêmicos em revistas impressas e eletrônicas. Ufa... sem falar dos últimos lançamentos da coleção Caixa Preta, que organizo para a Lumme Editor — livros dos poetas Micheliny Verunschk, Lígia Dabul e Thiago Ponce de Moraes. Ufa! Como diria Macunaíma: ai, que preguiça! Minha vontade era passar o final de ano numa bela praia caribenha, bem distante de tudo e de todos, mas ficarei aqui em Sampa, organizando novos projetos para 2011, o Ano do Coelho, incluindo um novo livro de poemas, Portão 7. Agora, não é possível encerrar este brevíssimo resumo do ano sem citar o falecimento de Wilson Bueno e Roberto Piva, dois queridos poetas que estavam na linha de frente da literatura brasileira contemporânea, e a eleição de nossa presidente Dilma Rousseff, que venceu por nocaute o candidato dos ricos e dos reacionários. Quase 150 poetas, escritores e críticos literários brasileiros assinaram um manifesto em apoio à candidatura de Dilma, que representa a continuidade de um projeto generoso de construção da cidadania brasileira. Bem, vou ficando por aqui. Vejo vocês assim que conseguir respirar um pouco.

Há besos,

CD

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

GALERIA: POEMÓBILES (VII)


CÂNONE E ANTICÂNONE: HELDER

HERBERTO HELDER: A RAZÃO DA LOUCURA
Contador Borges

A poesia de Helder é assombrosa; é desmedida, e chega a ser desconcertante em seu trânsito entre o absurdo e o sublime, pois nos coloca diante do impossível. E a margem mínima se abre ao rio caudaloso do poema, abolindo a fronteira entre a razão e a loucura, para que o essencial do ser venha à tona.

Basta entrar de vez neste volume intitulado Poesia Toda (Herberto Helder. Poesia toda. Lisboa, Assírio & Alvim, 1996) e constatar os seres da linguagem (mistura de coisas e palavras), gerando prodígios em relações surpreendentes. "A manhã começa a bater no meu poema" (...) "As manhãs, os martelos velozes, as grandes flores / líricas". Todas as coisas "Batem nas portas das palavras". "Batem" e entram, acrescente-se. O poema as recebe porque é ao mesmo tempo a casa (o corpo) e a voz da enunciação. Eis "a complicada carne / do poema", o espaço onde o ser se relaciona com a linguagem.

Este estranho comércio entre as palavras, esta economia inflacionaria de sentidos, afetam (iluminam) não apenas o que entendemos por linguagem, mas também o que entendemos por mundo.

Os poemas assim nos ensinam a ver as coisas de outro modo, como se nesse exato momento de claridade e sombra da leitura pudéssemos parar o tempo e isolar o ser no espaço para surpreendê-lo em seu labor secreto, simultaneamente em silêncio e turbulência. Atente-se ao poeta: "Escuta como só agora bate a cor nas maçãs." Sim, porque o poema a surpreende nesse instante inapreensível, nesse plano suspenso, quando a fruta se torna o que é, ao ser atingida pelo movimento espacial da cor, e, por assim dizer, se encarna, deixando o estado bruto, larval, de pré-coisa. O poema apreende a fruta no devir do ser.

A maçã que nos oferece é outra e, ao mesmo tempo, se encontra na essência de todas as frutas. Ele a quer em seu estado adâmico, antes que ela seja mordida pelo verbo, antes que apodreça ou degenere pelo uso do sentido na comunicação, antes que seu ser se perca; ele apanha a maçã com a rede do poema, "sem as mãos", desde a origem, em ato e potência, para restaurar a fruta aos nossos olhos, no instante desse acontecimento em que o ser irrompe das palavras. O poema enriquece nossa relação com as coisas, pois quer a maçã que não pode ser comunicada, o ser perdido da fruta: a nudez essencial.

Devir é movimento. O movimento que se percebe ser.

Não há nada estático na poesia de Helder. Como o rio de Heráclito, tudo nela flui. O devir e o signo coincidem na leitura.

O ser da linguagem, no fundo, é o ser das coisas que se revela ao pensamento, como " o peixe que "vai nadando até se consumar em lento / lírio". O ser é o puro movimento do devir. O peixe que lentamente se consuma em lírio é o acontecimento que nos permite vislumbrar o movimento em cores do ser, ao mesmo tempo em que o pensamento se descobre ele próprio na base desse movimento. Nesse instante, o ser do pensamento é o mesmo que o ser do poema. (Leia o texto integral na Zunái, na página http://www.revistazunai.com/ensaios/contador_borges_herberto_helder.htm)

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

GALERIA: POEMÓBILES (VI)


POEMAS DE HERBERTO HELDER

Não te queria quebrada pelos quatro elementos.
Nem apanhada apenas pelo tacto;
ou no aroma;
ou pela carne ouvida, aos trabalhos das luas
na funda malha de água.
Ou ver-te entre os braços a operação de uma estrela.
Nem que só a falcoaria me escurecesse como um golpe,
trêmulo alimento entre roupa
alta,
nas camas.
Magnificência.
Levantava-te
em música, em ferida -
aterrada pela riqueza -
a negra jubilação. Levantava-te em mim como uma coroa.
Fazia tremer o mundo.
E queimavas-me a boca, pura
colher de ouro tragada
viva. Brilhava-te a língua.
Eu brilhava.
Ou que então, entrecravados num só contínuo nexo,
nascesse da carne única
uma cana de mármore.
E alguém, passando, cortasse o sopro
de uma morte trançada. Lábios anônimos, no hausto
de árdua fêmea e macho
anelados em si, criassem um órgão novo entre a ordem.
Modulassem.
E a pontadas de fogo, pulsavam os rostos, emplumavam-se.
Os animais bebiam, ficavam cheios da rapidez da água.
Os planetas fechavam-se nessa
floresta de som unânime
pedra. E éramos, nós, o fausto violento, transformador
da terra

Nome do mundo, diadema.

* * *

A oferenda pode ser um chifre ou um crânio claro ou
uma pele de onça
deixem-me com as minhas armas
deixem-me entoar as onomatopéias, a minha canção de glória.
À noite o cabelo frio
de dia caminho por entre a fábula das corolas
sim, eu sei, queimam-se de olho a olho selvagem mas não se movem
mais altas que eu, mais soberanas, amarelas.
Escuto a travessia cantora dos rios no mundo
depois aparece a longa frase cheia de água.
Guio-me pelas luas no ar desfraldado e
grito de água para água levanto as armas
gritando
enquanto danço o algodão cresce fica maduro o tabaco.
Ninguém fez uma guerra maior. Corno chumbado em sangue e osso,
crânio com luz própria pousando na sua luz,
na pele
as pálpebras abrindo e fechando quem se exaltava
vestido com elas?
Meti na boca um punhado de diamantes - e
respirei com toda a força. E tremi ao ver como eu era inocente, assim
com dedos e língua calcinados; e
levando a mão à boca entoei a canção inteira das onomatopéias;
era a guerra. Como se caça uma fêmea com tanto sangue entre as ancas?
A ouro rude. Boca na boca
enchê-la de diamantes. Que fique a brilhar nos sítios
violentos. Doce, que seja doce, acre
mexida na sua curva de argila sombria andando coberta de olhos,
onça pintada no meio de flores que expiram.
Quem ergue o hemisfério a mãos ambas acima da testa?
quem morre porque a testa é negra?
quem entra pela porta com a testa saindo da fornalha?
O animal cerrado que se toca a medo:
o braço estremece, o coração estremece até à raiz do braço
entre carmesim e carmesim
bárbaro, estremecem
a memória e a sua palavra. Tocar na coluna
vertebral o continente todotoda a pessoa -
transformam-se numa imagem trabalhada a poder
de estrela. Quando se agarra numa ponta e a imagem
devora quem a agarra.No chão o buraco. da estrela -

domingo, 12 de dezembro de 2010

GALERIA: POEMÓBILES (V)




CÂNONE E ANTICÂNONE: HELDER E CELAN

Celan está embebido de história, geografia e da saga do povo judeu; Helder movimenta-se fora de planos reconhecíveis de espaço e tempo, erguendo fronteiras imaginárias (fazendo lembrar o Rimbaud de Uma Estação no Inferno: “Jamais pertenci a este povo; jamais fui cristão; sou da raça que cantava no suplício”, na tradução de Ledo Ivo). Se há uma religiosidade ou mitologia em Helder, ela está mais próxima do orfismo, da jornada simbólica ao Hades em busca de Eurídice (“Beberei sua boca, para depois cantar a morte / e a alegria da morte”). No campo semântico, porém, é possível traçarmos um paralelo entre os dois poetas, começando pela similaridade de temas ou palavras-chave, extraídas da tradição romântica: noite, cegueira, loucura, sangue, morte. O uso da analogia e das imagens poéticas (compreendidas aqui conforme o conceito de Réverdy) também é nítido, especialmente, na primeira fase de ambos (Papoula e Memória, de Celan, e O Amor em Visita, de Helder). Objetos retirados do cotidiano, elementos da natureza, instrumentos musicais, estados de espírito, partes do corpo humano ou substâncias orgânicas são combinados de maneira inusitada com outros materiais, concretos ou abstratos, em versos de deliberada alquimia: “crê no escaravelho dentro do feto”; “amamo-nos como papoila e memória” (Celan, em tradução de João Barrento); “a morte sobe pelos dedos, navega o sangue”; “a paisagem regressa ao ventre, o tempo / se desfibra” (Helder). Apesar dessa convergência, é preciso traçar uma distinção fundamental entre as duas poéticas: em Celan, a imagem é um dos elementos constitutivos do discurso, que tem uma respiração meditativa, um andamento quase litúrgico (ecoando, não raro, o hino bíblico); em Helder, ela é a base estrutural; todo o poema se desencasula a partir de entrecruzamentos de símbolos. A evolução posterior de ambos irá evidenciar outras diferenças essenciais: enquanto no português há um crescente desregramento, um fluxo incessante de figuras e percepções, no romeno revela-se maior equilíbrio, síntese e concentração; essa disciplina severa é responsável por linhas lacunares, de teor quase oracular, pela concisão e obscuridade.

A experiência imagética é mais evidente na lírica erótico-amorosa destes poetas, onde a mulher assume dimensão sobrenatural, ela é a origem da Criação, o Universo e cada uma de suas manifestações: “As coisas nascem de ti / como as luas nascem dos campos fecundos, / os instantes começam da tua oferenda / como as guitarras tiram seu início da música nocturna” (Helder); “Projecta a sua luz ao longe sobre o mar, / desperta as luas no estreito e ergue-as sobre mesas de espuma” (Celan, traduzido por João Barrento). (Leia mais na página http://www.revistazunai.com/ensaios/claudio_daniel_apontamentos.htm)

GALERIA: POEMÓBILES (IV)


sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

DIÁRIO DE UM VIAJANTE

Caros, estive em Brasília nos dias 08 e 09 de dezembro, a convite do Ministério da Educação. Ontem, participei de um debate na UnB com Maria Esther Maciel, José Eduardo Agualusa, Luiz Ruffatto e Ronaldo Correias de Brito sobre a literatura brasileira contemporânea. O auditório estava lotado e as conversas foram muito boas. Gostei do resultado do evento.

GALERIA: POEMÓBILES (III)


POEMAS DE PAUL CELAN (VII)

Verde-bolor é a casa do esquecimento.
Diante de cada portão flutuante azuleia o teu músico decapitado.
Bate o tambor feito de musgo e amargo pêlo púbico;
Com o dedo do pé ulcerado desenha a tua sobrancelha na areia.
Desenha-a, maior do que era, e o vermelho dos teus lábios.
Tu enches aqui as urnas e alimentas o teu coração.

Tradução: João Barrento

(Do livro Sete Rosas mais Tarde. Lisboa: Cotovia, 1993)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

GALERIA: POEMÓBILES (II)


POEMAS DE PAUL CELAN (VI)

RETRATO DE UMA SOMBRA

Os teus olhos, rastro de luz dos meus passos;
a tua testa, lavrada pelo brilho dos punhais;
a tua sobrancelha, orla pelo caminho da tragédia;
as tuas pestanas, mensageiros de longas cartas;
os teus cabelos, corvos, corvos, corvos;
as tuas faces, campos de armas da madrugada;
os teus lábios, hóspedes tardios;
os teus ombros, estátua do esquecimento;
os teus seios, amigos das minhas serpentes;
os teus braços, alámos à porta do castelo;
as tuas mãos, tábuas de juras mortas;
as tuas ancas, pão e esperança;
o teu sexo, lei do fogo na floresta;
as tuas coxas, asas no abismo;
os teus joelhos, máscaras da tua altivez;
os teus pés, campos de batalha dos pensamentos;
as tuas solas, criptas em chamas;
as tuas pegadas, olho da nossa despedida.

Tradução: João Barrento.

(Do livro A morte é uma flor. Lisboa: Cotovia, 1998.)

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

GALERIA: POEMÓBILES (I)


POEMAS DE PAUL CELAN (V)

A pequena realidade
duplicada
manda a sua loucura
cercar-te,
ora uma, ora outra,

amanhã
tudo isso recolherá a si,
e as palavras, sem disfarce,
nascem,
as primeiras.

***
Poema-fechado, poema-aberto:
aqui as cores correm
para o desabrigado,
o da fronte nua,
o judeu.
Aqui levita
o mais pesado.
Aqui estou eu.

***
No inclarável
abre-se uma porta,
dela
caem em escamas as manchas da camuflagem,
repassadas de verdade.

***
Na selva do sangue, aí
está a despedida, de dedos
finos, em
cada ponta, em forma de
coração, uma
lente, aí
os tigres caçam
o dia.

Tradução: João Barrento.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

GALERIA: PAUL CELAN (V)


POEMAS DE PAUL CELAN (IV)

Este é o momento em que
os lobisomens se
ficam pelo caminho.
Nenhum
esbirro vive
já.

O Homem, verdadeiro e solitário,
passeia o porte íntegro por entre
os Homens.

Tradução: João Barrento

GALERIA: PAUL CELAN (IV)


POEMAS DE PAUL CELAN (III)

O OUTRO

Feridas mais fundas do que em mim
abriu em ti o silêncio,
estrelas maiores
enredam-se na rede dos seus olhares,
cinza mais branca
repousa sobre a palavra em que acreditaste.

Tradução: João Barrento

domingo, 5 de dezembro de 2010

GALERIA: PAUL CELAN (III)


POEMAS DE PAUL CELAN (II)

Conversas com cascas de árvore. Tu,
tira a casca, anda,
tira-me, feito casca, da minha palavra.

É tarde já, mas nós
queremos estar nus e à beira
da navalha.

Tradução: João Barrento.

GALERIA: PAUL CELAN (II)


POEMAS DE PAUL CELAN (I)


A MORTE

Para Yvan Goll

A morte é uma flor que só abre uma vez.
Mas quando abre, nada se abre com ela.
Abre sempre que quer, e fora de estação.

E vem, grande mariposa, adornando caules ondulantes.
Deixa-me ser o caule forte da sua alegria.

Tradução: João Barrento.

GALERIA: PAUL CELAN (I)


sábado, 4 de dezembro de 2010

ÚLTIMAS NOTÍCIAS (III)

O Jornalismo como Gênero Literário, curso de extensão coordenado pela profa. Edilamar Galvão, será realizado na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo, em março de 2011. O curso incluirá a matéria Linguagens Poéticas, que será ministrada por mim. Mais informações na página https://academico.faap.br/faap_pos2010/cursos/detalhes_curso.asp?unidade=21&curso=CPJGL&insc=E

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

TODO COMEÇO É INVOLUNTÁRIO



















Adriana Versiani, Adriana Zapparoli, Ana Maria Ramiro, André Dick, Andréa Catrópa, Camila Vardarac, Carlos Besen, Carol Marossi, Daniel Sampaio de Azevedo, Daniela Osvald Ramos, Danilo Bueno, Delmo Montenegro, Diego Vinhas, Donny Correia, Douglas Diegues, Eduardo Jorge, Florbela de Itamambuca, Gabriela Marcondes, Greta Benitez, Izabela Leal, Jacineide Travassos, Leonardo Gandolfi, Lígia Dabul, Marcelo Montenegro, Marcelo Sahea, Márcio-André, Marília Kubota, Micheliny Verunschk, Nicollas Ranieri, Pablo Araújo, Rodrigo de Souza Leão, Sérgio Medeiros, Simone Homem de Mello, Thiago Ponce de Moraes, Virna Teixeira

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

ÚLTIMAS NOTÍCIAS (II)

A antologia Todo começo é involuntário -- A poesia brasileira no início do século 21, que organizei para a Lumme Editor, acaba de sair da gráfica. O lançamento será no dia 19 de janeiro de 2011, das 19 às 22h, na Casa das Rosas. O livro reúne 35 poetas que publicaram livro ou em revistas literárias a partir do ano 2000, entre eles Virna Teixeira, Leonardo Gandolfi, Micheliny Verunschk, Lígia Dabul, Márcio-André, Gabriela Marcondes, Marcelo Sahea, Delmo Montenegro, Diego Vinhas, entre outros. Além dos poemas, o livro inclui dois ensaios críticos.

ROMANCEIRO DE DONA VIRGO (V)


Foto: Sônia Alves Dias

terça-feira, 30 de novembro de 2010

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

Caros, vou ministrar um curso sobre haicai na Casa das Rosas, nos dias 02, 09 e 16 de dezembro, das 19 às 22h. Informações pelos telefones (11) 3285.6986, 3288.9447 ou pelo e-mail contato.cr@poiesis.org.br.

sábado, 27 de novembro de 2010

ROMANCEIRO DE DONA VIRGO (IV)



Foto: Sônia Alves Dias

POEMAS DE ADONIS (IV)

ÁRVORE DA MANHÃ

Encontra-me ó manhã no campo do nosso desespero

no caminho ao nosso campo de desespero

árvores secas quantas vezes prometemos

tornarmo-nos dois leitos duas crianças à sombra seca das árvores secas

encontra-me viste os ramos? ouviste o apelo dos ramos

ao deixarem palavras à sua seiva?

palavras-reforço aos olhos

palavras-força a fender rochas

encontra-me encontra-me

como se nos encontrássemos e tecessemos a treva

e nos vestissemos e viessemos batessemos à sua porta

soerguessemos a cortina e abrissemos suas janelas

e nos recolhessemos nas entranhas

dos troncos e implorassemos com nossas pálpebras

e escanceassemos

a ânfora do sonho e das lágrimas

como se ficassemos

no país dos ramos e perdessemos o caminho

da volta

Tradução: Michel Sleiman

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

ROMANCEIRO DE DONA VIRGO (III)


Foto: Sônia Alves Dias

POEMAS DE ADONIS (III)

CANÇÃO DO ORIENTE

Fiz-me espelho

rebati tudo

mudei em teu fogo a cerimônia da água e da vegetação

mudei voz e apelo

Passei a ver-te em dois

tu e esta pérola que nada em meus olhos

eu e a água nos fizemos amantes

nasço em nome da água

nasce em mim a água

eu

e a água

nos replicamos


ÁRVORE DOS CÍLIOS

... e quando resignei-me na ilha das pálpebras

em ser hóspede das conchas e dos rastros

vi que o destino é um frasco

com águas e fagulhas

pronto a fazer do homem

mito ou fogo lendário


e eu ia carregado sobre os ramos

num bosque lácteo enfeitiçado

o seu dia consagrado à loucura era

minha cidade e a noite recinto íntimo

Tradução: Michel Sleiman

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

ROMANCEIRO DE DONA VIRGO (II)


Foto: Sônia Alves Dias

POEMAS DE ADONIS (II)

ASSOMBRO CATIVO

Vou em busca da sombra entre os brotos e a erva ergo uma ilha

ligo a ramagem à beira-mar

e quando se perdem os portos e enegrecem os caminhos

visto-me do assombro cativo

nas asas da borboleta

atrás do reino das espigas e da luz e na

morada da doçura

Tradução: Michel Sleiman

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

ROMANCEIRO DE DONA VIRGO (I)


Foto: Sônia Alves Dias.

POEMAS DE ADONIS (I)

FLOR DA ALQUIMIA

Preciso viajar no bosque das cinzas

entre as árvores ocultas

na cinza estão as fábulas o diamante o velocino de ouro

preciso viajar na fome na rosa rumo às colheitas

preciso viajar descansar

sob o arco dos lábios órfãos

nos lábios órfãos em sua sombra ferida

está a antiga flor da

alquimia

Tradução: Michel Sleiman

O TIBETE NÃO É PARTE DA CHINA






O Tibete é um país com história, formação cultural, étnica e linguística próprias, que pouco têm em comum com a civilização chinesa. O alfabeto tibetano, por exemplo, é derivado do sânscrito, não da escrita ideográfica chinesa, e a população tibetana não tem parentesco com a etnia han, majoritária na China. O governo tibetano possuía moeda própria, bandeira nacional, serviço de correios e forças armadas e a sua independência política era reconhecida por países como a Índia e o Nepal. Nos primeiros anos do século XX, o Tibete concedeu à China o direito de estabelecer uma missão em sua capital, Lhasa, e manteve relações comerciais com esse país. Após a revolução de 1949 e o surgimento da República Popular da China, o governo tibetano, prevendo a política expansionista de Mao Tsé Tung, rompeu relações com o país vizinho e solicitou a saída do embaixador chinês de sua capital. As relações entre os dois países ficaram tensas e os soldados chineses atravessaram a fronteira tibetana em 7 de outubro de 1950. O Tibete era um país organizado em torno da cultura religiosa e monástica, que cultivava a paz e não estava preparado para enfrentar uma guerra moderna; seu exército era pouco numeroso e contava com armas e estratégias antiquadas, não resistindo à força militar do invasor. Nos primeiros anos da ocupação, houve tentativas de diálogo e negociações entre o Dalai Lama e a liderança chinesa, mas a crescente intolerância religiosa e opressão ao povo tibetano levaram a uma rebelião, em 1959, brutalmente sufocada pela China. O Dalai Lama partiu para o exílio, assim como cerca de 43 mil tibetanos, e foi estabelecido um governo no exílio em Dharamsala, na Índia. A agressão militar chinesa, agravada em 1967 com a Revolução Cultural, causou a morte de um milhão de tibetanos, além da destruição de importantes mosteiros, monumentos históricos e danos irreparáveis ao meio ambiente. Com a imigração massiva de chineses da etnia han para o Tibete, hoje os tibetanos são minoria em seu próprio país. A tragédia do povo tibetano não pode ser minimizada: este é um caso de genocídio humano e cultural praticado por uma das ditaduras mais brutais do planeta.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

NAZISMO MODERNO: O CAMPO DE SUJIATUN


CHINA CRIA CAMPO DE CONCENTRAÇÃO PARA DISSIDENTES

Por Shizhong Chen

Por favor, lembre-se do nome: Sujiatun. Um dia, ele será tão infame como Auschwitz e Dachau.

O Centro Nacional de Tratamento de Trombose em Medicina Tradicional Chinesa na cidade de Shenyang. De acordo com uma enfermeira que trabalhava lá, o campo de extermínio de Sujiatun está localizado em um complexo subterrâneo conectado a esse hospital.

A unidade da fornalha, no lado sudoeste do hospital. Há duas portas conduzindo ao complexo subterrâneo do campo de extermínio de Sujiatun. De acordo com testemunhas, os restos mortais dos praticantes de Falun Gong são incinerados aqui, após seus órgãos serem extraídos. Em 8 de março de 2006, um jornalista chinês, fugindo do regime comunista da China, revelou aos praticantes de Falun Gong dos Estados Unidos uma terrível notícia: um campo de extermínio secreto, em Sujiatun, cidade de Shenyang, na província de Liaoning na China.

De acordo com este jornalista, mais de 6000 praticantes de Falun Gong estão detidos em Sujiatun. "Eu acredito que, uma vez lá dentro, há 100% de chance que não poderão sair", diz o jornalista. Ele também revelou que há câmaras de incineração e um grande número de médicos. "Por que há câmaras de incineração lá? Por que há tantos médicos lá dentro? Certamente, não é para o tratamento benevolente dos prisioneiros. É algo que vocês simplesmente não podem imaginar..."

"É certo que o Partido Comunista não permitirá que os prisioneiros que lá se encontram comam por comer. Por que eles estão lá então? ... Eles serão todos assassinados, e todos os seus órgãos serão retirados e distribuídos a hospitais. A venda de órgãos humanos é uma atividade extremamente lucrativa na China."

Os praticantes de Falun Gong não são as únicas vítimas desse tipo de crime. Uma semana depois da revelação do jornalista, uma enfermeira, cujo marido participou na coleta dos órgãos dos praticantes de Falun Gong, também se apresentou para testemunhar:

"Eu costumava trabalhar no Centro de Tratamento para Trombose de Liaoning, que era próximo do campo de concentração. Meu marido tinha participado na remoção das córneas de praticantes de Falun Gong. Isso foi uma desgraça para minha família."

"No começo de 2001, meu marido foi designado pelo hospital para, secretamente, remover as córneas de praticantes de Falun Gong. Ele escondeu isso de mim no início, mas lentamente eu senti que ele estava em grande agonia, ele tinha pesadelos freqüentemente, e estava sempre estressado. Depois de insistentes perguntas, ele me contou a verdade em 2003."

"Ele sabia que eles eram praticantes de Falun Gong. Todos os médicos que participaram, sabiam. Foi-lhes dito que eliminar o Falun Gong não era um crime, mas uma contribuição para a 'limpeza' levada a cabo pelo Partido Comunista. Aqueles que iam para a mesa de operações eram anestesiados. Pessoas idosas e crianças eram geralmente usadas para a remoção das córneas."

"No momento em que meu marido me contou isso, ele não podia mais suportar o tormento de colaborar em horrores, e decidiu sair da China e escapar do horror. Ele me disse: você não pode imaginar meu desespero, porque aqueles praticantes de Falun Gong ainda estavam vivos. É diferente de remover órgãos de pessoas mortas – eles estavam vivos."

"Por causa disso, eu me divorciei dele. Eu disse a ele: sua carreira está acabada, você não será capaz de segurar um bisturi no futuro."

"Eu sei que ainda há praticantes de Falun Gong naquele hospital", disse a enfermeira por fim. "Eu espero que estes crimes sejam expostos à sociedade internacional o mais rápido possível, para que suas vidas possam ser salvas. Eu também espero, por meio de minha revelação, reparar os crimes de meu marido."

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

MINHA ESTANTE









Céu acima (para um tombeau de Haroldo de Campos), organizado por Leda Tenório da Mota (São Paulo: Perspectiva, 2005). O livro contém poemas e ensaios dedicados a Haroldo, incluindo textos de Benedito Nunes, Celso Lafer, Luiz Costa Lima, Olgária Matos, Lúcia Santaella, Affonso Ávila, Horácio Costa, Josely Vianna Baptista, José Kozer, Eduardo Milán, entre outros. É uma obra de referência para quem estuda a obra do titã concreto.

sábado, 20 de novembro de 2010

NO EXÍLIO


Dos nove milhões de palestinos, cerca de quatro milhões vivem na Palestina, outros quatro milhões estão em difícil situação, em campos de refugiados pelo Oriente Médio, e um milhão vive no exílio em outras regiões do planeta.

ISRAEL NÃO RESPEITA DIREITOS DO POVO PALESTINO

Arlene Clemesha e Bernadette Siqueira Abrão

País tem em seus presídios mais de 6.000 civis palestinos (incluindo crianças), a maioria deles sem acusação formal ou mesmo processo judicial.

Em artigo nesta Folha (“Direitos humanos em mãos erradas“, “Tendências/Debates”, 10/10), o embaixador israelense queixou-se do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU, em que relatórios têm sido aprovados, denunciando graves violações de direitos humanos por parte do governo israelense nos territórios palestinos ocupados da Cisjordânia e da faixa de Gaza.

De fato, apenas nos primeiros seis meses de 2010, foram registradas na Cisjordânia a demolição de 223 edifícios e a expulsão de 338 palestinos de suas casas.

Quinhentas e cinco barreiras violam o direito de ir e vir, impedindo o acesso da população a escolas, a locais de trabalho e a hospitais, para procedimentos vitais como diálise, cirurgias do coração e cuidado neonatal intensivo.

Seguindo a lógica de anexar o máximo de terras com o mínimo de palestinos, o trajeto tortuoso do muro enclausurou Belém e Qalqilia, expulsou 50 mil palestinos de Jerusalém Oriental e anexou 10% das terras mais férteis da Cisjordânia. As colônias israelenses, também ilegais, expandem-se a todo vapor sobre territórios palestinos.

A justificativa de Israel para a violação de direitos humanos -zelar pela “segurança” de seus cidadãos- não se sustenta, sendo tais atos a própria origem da revolta palestina.

Os “mísseis” citados pelo artigo do embaixador são armas de fabricação caseira, usadas em desespero por um povo sem Estado, que sofre a mais longa ocupação militar da história moderna, submetido a bombardeios, a incursões militares, a assassinatos dirigidos e a toques de recolher.

O artigo também cita um prisioneiro militar israelense, omitindo o fato de que Israel tem em seus presídios mais de 6.000 civis palestinos (incluindo crianças), a maioria deles sem acusação formal, processo judicial ou direito de defesa.

Alega-se que Israel estaria sendo alvo de injustiças por parte do CDH em consequência do relatório do juiz Richard Goldstone sobre os crimes de guerra cometidos durante o bombardeio que massacrou 1.397 pessoas em Gaza (incluindo 320 crianças e 109 mulheres).

Assim, deturpa-se o caráter heroico da flotilha de ativistas humanitários do mundo todo, incluindo israelenses e uma mulher sobrevivente do Holocausto, que arriscaram suas vidas para quebrar o bloqueio ilegal a Gaza.

O objetivo da flotilha era chamar a atenção do mundo para o problema? Sim. Era e continuará sendo uma provocação? Apenas se considerarmos o termo um desafio aberto, para que a humanidade impeça a continuidade do cerco a Gaza, onde 80% da população sofre de má nutrição crônica, as crianças apresentam estresse e distúrbios psicológicos causados pelos ataques, pelo sofrimento e pelas constantes bombas sonoras lançadas por Israel sobre a pequena faixa costeira.

O mesmo governo israelense que se queixa do CDH emitiu, no dia 10/ 10, um projeto de lei que, se aprovado, exigirá de todo não judeu de Israel um juramento de “lealdade ao caráter judeu do Estado”.

Cerca de 20% da população, de origem palestina cristã, muçulmana ou outra, terá de aceitar o caráter judeu do Estado de Israel ou emigrar, aumentando o número de refugiados, que ultrapassa 9 milhões. As consequências disso, para a Palestina e para o mundo, não valem um debate no Conselho de Direitos Humanos da ONU?

ARLENE CLEMESHA, professora de história árabe na USP e diretora do Centro de Estudos Árabes da mesma universidade, é representante da sociedade civil do Brasil no Comitê da ONU pelos Direitos do Povo Palestino.

BERNADETTE SIQUEIRA ABRÃO, jornalista, formada em filosofia pela USP, é pesquisadora da questão palestina, ativista de direitos humanos e autora, entre outros livros, de “História da Filosofia” editora Moderna).

(Artigo publicado em 19/11/2010 no jornal Folha de S. Paulo)

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

GALERIA: VLADIMIR MAIAKOVSKI


CÂNONE E ANTICÂNONE


Suzanne Bernard, em seu livro Le poème em prose — de Baudelaire jusqu’a nos jours, remonta a origem desse gênero literário à Idade Média. As traduções de poesia clássica grega e romana (como a Odisseia e a Ilíada, de Homero) para a prosa, com o abandono de sua estrutura métrica e rítmica em favor da narrativa, do “conteúdo”, também estão na gênese dessa modalidade criativa (e podemos recordar aqui a tradução que Mallarmé fez do poema O Corvo, de Edgar Allan Poe, que manteve o enredo, a narração, as imagens e o timbre emocional do poema, ao mesmo tempo em que evitou o exigente labor de recriação dos efeitos sonoros tão peculiares do autor norte-americano).

O poema em prosa se estabeleceu como um gênero poético autônomo, com o mesmo grau de refinamento artístico que o soneto, a elegia, a écloga e outras composições escritas em verso graças ao poeta francês Charles Baudelaire, autor de Pequenos poemas em prosa, publicado postumamente, em 1869. No prefácio à tradução brasileira de Gilson Maurity, publicada pela editora Record em 2006, Ivo Barroso define essa obra como “uma série de peças curtas, não metrificadas nem rimadas, mas de teor poético, que o mesmo Baudelaire começou a escrever concomitantemente com As flores do mal a partir de 1855. Inspirando-se no Gaspar de la nuit, de Aloysius Bertrand, esses fragmentos eram uma combinação de narrativas curtas (diríamos hoje minicontos), diário íntimo, aforismos, tiradas anedóticas, descrições, anotações para futuros poemas etc. feitos para publicação em jornais e revistas”. Mais adiante, Barroso cita uma carta que Baudelaire escreveu a Arsène Houssaye, onde o autor francês diz: “Qual de nós, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética musical, sem ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante rica de contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?”.

Tendo encontrado um modo de realizar esse projeto sonhado, Baudelaire abriu caminho para uma longa tradição da poesia francesa e universal, em que podemos incluir obras tão radicais como Uma temporada no inferno, de Rimbaud, Os cantos de Maldoror, de Lautréamont, Igitur, de Mallarmé, O peixe solúvel, de André Breton, até as Galáxias, de Haroldo de Campos.

O que caracteriza esse gênero literário? O poema em prosa, assim como o verso livre, rompe com as normas de construção métrica e rímica e dá um passo além, abolindo a própria distinção entre poesia e prosa, lirismo e narrativa. Ele utiliza recursos tradicionais da arte poética, como a metáfora, a paronomásia, a aliteração, a escolha de palavras pela sonoridade, e não apenas pelo sentido, e constrói o ritmo não pela sequência fixa de sílabas fracas e fortes, e sim pela livre associação de palavras, não raro rompendo com a sintaxe tradicional pelo uso da elipse e pela ausência de pontuação, ou ainda pela construção de frases sem obedecer à lógica discursiva tradicional, do tipo sujeito-verbo-objeto. Ele pode incorporar elementos ficcionais, como acontece nos Cantos de Maldoror, de Lautréamont, ou na Estação no inferno, de Rimbaud, mas sem obedecer à construção linear de tempo e espaço do romance. Sendo uma forma híbrida, incorpora recursos de todos os gêneros literários, inclusive da crônica e do drama, do ensaio e do drama teatral, reelaborando esses recursos, muitas vezes, de forma paródica. O verso livre e o poema em prosa foram as primeiras manifestações da crise do verso clássico, e apontaram a necessidade de criação de novas estruturas para a linguagem poética, o que atingiu um nível de máxima radicalização com o poema Um lance de dados, de Mallarmé, que criou uma sintaxe visual para o poema, com a adoção de diferentes fontes e corpos de letras, de itálicos e negritos, com as palavras e frases distribuídas de forma geométrica no espaço em branco da página, permitindo diferentes sequências de leitura. O Lance de dados abriu caminho para os Caligramas de Apollinaire, a Poesia Concreta e Visual e as atuais experiências realizadas no campo da poesia digital e eletrônica.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

GALERIA: LUIZA NETO JORGE


POEMAS EM PROSA (VIII)

Subitamente vamos pela rua, com a solidão burocrática dentro dos bolsos.

É certamente pela rua que vou. Golfadas de olhos e cabelos e um oboé silencioso. Desalinho. Vagueia um automóvel onírico. É pela rua. Que vamos. Que somos acometidos pelas costas. Estilhaçados de inércia. Poderosos de sexo. Invariáveis.

Descumpem-nos a liberdade dos suicídios macios nas traseiras dos jardins. Ou os partos dramáticos enterrados na areia. É tão verde o sol que nos rompe as órbitas. A casa deserta rodou três vezes.

Com o travesti nocturno da evsão brincamos facilmente aos pássaros bíblicos. Navio mercante de papel colado - qual o teu rumo de papel colado? Quando a bússola soçobrou no lastro do horizonte.

Gritámos com a ambulância exausta. Acenava, de dentro, um homem morto. E a página de fora de um jornal antigo, do dia anterior, antigo, insustentável, com fotografias perfeitas e um eclipse longínquo, na beira do passeio.

Saí de casa ontem. Vou correr mundo, vou matar-me. Emancipada da noite, livre indoloridamente, minha angústia despediu-se, lambeu-me as mãos. Somente a flor prometeu realizar-se ainda. Então parto. Encontrarei o cão das noites líquidas e, na colcha, um cogumelo letárgico de lua.

Mas a árvore do sol está suspensa, anémona gigante rebentada de cor. Escorre, aquaticamente, entre os seios mais pueris e os tapumes e as sarjetas. A flor irrisória no ventre da rapariga. «violetas, quem quer violetas?» - Meus amigos, sou pela paz (podem rasgar, sim, podem rasgar os corações a rir).

Como os comboios passam, só as árvores arrastadas sabem. Enquanto os comboios passam, as estátuas renascem para a morte. Quando os comboios passam, a desculpa das calhas paralelas, o perdão dos crimes paralelos. Se os comboios passam, as pedras castram a liberdade humana.

Sigo para o cabaré distante. Nasce, ao fundo da sala, qualquer mesa vermelha entornada na música. A noite é em lâminas. Sentem-se vários animais febris suspensos dos telhados a tentarem um equilíbrio nos trapézios eléctricos.

É pela rua que vou. Marinham pelo rio ângulos coalhados de casa afogada (ala-ala-arriba pelo tejo inundado de farrapos de almas). Sobre o lodo do rio a ponte floriu, cortou o horizonte em duas longitudes. De um mastro, a gaivota salpica os homens com sons claros, e despenumbra-os, de súbito.

Afogámo-nos num ciclo de vela e de âncora, no rio que corre sem lemes. Arcas de nomes, sumi-vos: só Rio. Só Homem-Cidade de pedra.

Chove todo o segredo das noites em goteiras de vento; a pedra da ruína não mói já passado, secou a lua a chuva aberta das fendas.

Saímos com um relógio ao vivo em cada artéria. O vento, agudo pássaro sem penas, debicou-nos o cabelo no vago medo de um grito. E em cada pedra, a decorar um passo, o desafio macio e inábil duma madrugada caída - do vento, de nós ou de quem? De quem?

A chuva, para quem a quis embalar, foi ovelha com fala de erva e água, um cacto de sonho sugando-lhe os chifres.

Esquecimento de relógio sem corda. Nascemos a vida antecipada, levámo-la, débil, para casa, ensinámos-lhes a longa geometria dos vértices, dos fios de prumo e oblíquas de dia a ranger na chuva.

Chove todo o segredo dos segredos extintos pela rua. À chuva não acontece o possível.

Acontece.

Sinto que posso subir às árvores e colher os ninhos - tenho mãos líricas de ledrão de luas, mãos crucificadas em palcos de tragédia. Espalhar depois as penas dos pássaros em novelos desfiados. Ser cruel, febrilmente cruel, colher ninhos, abrir crisálidas.

Nasci ontem do meu amanhã, na certeza de que verei todas as luas cheias. E então as outras vazias - e vazios os ninhos.

Na rua, os estames das luzes enferrujam. Quem pensa ainda em árvores?

Se fossem dois pontões a avançar para o mar, seria difícil escolher. Sempre era um mar que se trocava por outro. Assim, fui. Marinheiro bizarro a abraçar-me, o mar era qualquer rosto incógnito. Como podia o mar ser o mar que subia na pedra? Estava maré-cheia.

No pontão, delito pensar, olhar sequer, tomar consciência do mundo. Pelas pernas subiam-me uns pedaços de ondas imprecisas. E então desejei que me arrancassem os olhos e os atirassem à água.

Mais real que a asa sonora da gaivota, tinha ido para estar ali, humanizada como um pontão de pedra.

Chegar ao fim dele podia ser encontrar um começo ao mar. Mas fiquei entregue à violência dos passos intactos. A pureza do medo e a noite baloiçam. Os barcos, de cores sexuais amordaçadas pelo escuro, dão-me vertigens. Chegou um, então, e o pontão de pedra tremeu, sexual também. Doía. Os barcos vivos eram os mortos da morte. Há sempre um outro cais ausente. Se eu agora me voltar e for para o meu dia de vida, como me consolarei da espera inútil? Todas as noites, todas, terei tempo para lá voltar, à mesma hora, esperando por mim, de pé e assustada?

Narro o sorriso de areia na boca dos homens, enquanto o sol é um bidon de óleo, aceso, derramado. À tarde aqueço as mãos nas casas a arder. Na rua, o mesmo incêndio opaco. O vento com laivos de pedra e sangue. Os animais a ruir. E as árvores, primeiras a afogarem-se com os naúfragos.

A mulher a gritar «Os meus braços». A cadeira alta, enigmática, da sala de espera.

A criança a gritar «Os meus olhos». As raízes a apunhalarem o chão, a quebrá-lo, a revolvê-lo, a criá-lo.

O homem a gritar «Os meus dias». Mais solitária a manhã. Irrompendo.

(Poema de Luiza Neto Jorge, do livro 19 Recantos e Outros Poemas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.)

ARTIMANHAS POÉTICAS 2010


terça-feira, 16 de novembro de 2010

RECITAL DO POETA ÁRABE ADONIS NA CASA DAS ROSAS

No dia 17 de novembro, às 20h, o Instituto da Cultura Árabe (ICArabe), em parceria com a Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura e o apoio da Universidade de São Paulo, Câmara de Comércio Árabe Brasileira, Cibal Halal e Ateliê Editorial, realiza o “Dîwân dos Poetas lendo Adonis”. O evento contará com apresentação musical e a participação de poetas como os paulistanos Horácio Costa, Moacir Amâncio e Claudio Daniel, o fluminense Marco Lucchesi e os gaúchos Lawrence Flores e Michel Sleiman, que lerão poemas traduzidos ao português. Também será exibido o filme Caminho e atrás de mim caminham as estrelas, de William Farnesi, que traz depoimentos do poeta árabe. Adonis, 80 anos, pseudônimo de Ali Ahmad Said Esber, é nascido na pequena aldeia de Qasabin, na Síria. Em 1957, fundou em Beirute a revista Chi‘r (Poesia), que defendeu, com muito êxito, a renovação da poesia árabe. É autor de vasta obra poética e ensaística, traduzida para diversos idiomas. No Brasil sua poesia está publicada em revistas de literatura e arte. Verteu para o árabe obras da literatura universal, como a de Ovídio, Saint-John Perse e Yves Bonnefoy. Atualmente mora em Paris. Nos últimos anos seu nome tem sido fortemente esperado para o Nobel de Literatura.

“Adonis é a mais importante figura poética do mundo árabe e representante máximo dos chamados ‘poetas tamuzeus’, que revolucionaram a poesia árabe milenar, reinserindo-a nas correntes universais do passado e da contemporaneidade, tanto no campo da literatura como no campo das artes e do pensamento crítico”, explica Michel Sleiman, poeta e presidente do ICArabe. Adonis viria ao Brasil nesse mês de novembro para participar da VI Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto), junto a seu tradutor, Michel Sleiman, e o escritor Milton Hatoum. Por problemas de saúde, sua vinda foi adiada.

Dîwân dos Poetas lendo Adonis

Dia 17 de novembro, quarta-feira, às 20h

19h: projeção do filme Caminho e atrás de mim caminham as estrelas (Itália, 2007, 41 min.), de William Farnesi. O filme traz depoimentos do poeta Adonis.

Local: Hall da Casa das Rosas - Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura - Avenida Paulista, 37. F.: 3285.6986 / 3288.9447

A CRÍTICA LITERÁRIA E A POESIA


REVISTA COYOTE 21

Poemas do espanhol Leopoldo María Panero, um conto de João Gilberto Noll, textos inéditos de Wilson Bueno, aforismos de Franz Kafka e um ensaio de Jair Ferreira dos Santos são os destaques da revista Coyote 21. “A poesia contorna a Economia. É criação improdutiva como a Festa, o Amor. Não é mercadoria, ignora o interesse, está à margem do calculo” - escreve Jair Ferreira dos Santos em seu ensaio O Pavão é uma Galinha em Flor, publicado no novo número da revista Coyote que ganha as livrarias do Brasil esta semana. Editada em Londrina (PR), Coyote traz uma entrevista com a crítica norte-americana Marjorie Perloff. Julgando boa parte da poesia escrita hoje de "prosa preguiçosa", Perloff dispara: "Minha principal crítica hoje é em relação a falta de interesse no aspecto sonoro e visual da maior parte da poesia que aparece sobre minha mesa". Coyote 21 apresenta ao público brasileiro a poesia radical do espanhol Leopoldo María Panero, traduzido por Vinícius Lima, e aforismos de Franz Kakfa, traduzidos por Silveira de Souza. A revista traz também a literatura de Ivan Justen Santana e Mario Domingues, dois novos talentos da poesia paranaense, além de um conto do londrinense Marco Fabiani. Fotografias da série Autodesconstrução, da artista pernambucana Priscilla Buhr, complementam a edição. A revista Coyote prossegue abrindo espaço para novos autores, resgatando e apresentando nomes importantes das letras e das artes, de épocas e lugares diferentes, instigando a reflexão e a criação literária.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

ÚLTIMAS NOTÍCIAS (ANTES DE PEGAR O AVIÃO...







Armando Freitas Filho recebeu o prêmio Portugal Telecom. Desta vez, foi feita justiça à poesia brasileira.

ARTIMANHAS LITERÁRIAS 2010


DIÁRIO DE UM VIAJANTE

Caros, entre hoje e segunda-feira da próxima semana estarei em Brasília e no Rio de Janeiro, participado de eventos literários. Até lá, não poderei atualizar a Pele de Lontra, mas aguardem novos poemas em prosa e reflexões teóricas sobre o gênero após o meu retorno, ok? Enquanto isso, leiam a Letra Negra antes de dormir...
Há braços,
CD

terça-feira, 9 de novembro de 2010

GALERIA: CRUZ E SOUSA


POEMAS EM PROSA (VII)

UMBRA

Volto da rua.

Noite glacial e melancólica.

Não há nem a mais leve nitidez de aspectos, porque nem a lua, nem as estrelas, ao menos fulgem no firmamento.

Há apenas uma noite escura, cerrada, que lembra o mistério.

Faz frio…

Cai uma chuva miúda e persistente, como fina prata fosca moída e esfarelada do alto…

À turva luz oscilante dos lampiões de petróleo, em linha, dando à noite lúgubres pavores de enterros, vêem-se fundas e extensas valas cavadas de fresco, onde alguns homens ásperos, rudes, com o tom soturno dos mineiros, andam colocando largos tubos de barro para o encanamento das águas da cidade.

A terra, em torno dos formidáveis ventres abertos, revolta e calcária, com imensa quantidade de pedras brutas sobrepostas, dá idéia da derrocada de terrenos abalados por bruscas convulsões subterrâneas.

Instintivamente, diante dessas enormes bocas escancaradas na treva, ali, na rigidez do solo, sentindo na espinha dorsal, como uma tecla elétrica onde se calca de repente a mão, um desconhecido tremor nervoso, que impressiona e gela, pensa-se fatalmente na morte…

ORAÇÃO AO MAR

Ó mar! Estranho Leviatã verde! Formidável pássaro selvagem, que levas nas tuas asas imensas, através do mundo, turbilhões de pérolas e turbilhões de músicas!

Órgão maravilhoso de todos os nostalgismos, de todas as plangências e dolências…

Mar! Mar azul! Mar de ouro! Mar glacial!

Mar das luas trágicas e das luas serenas, meigas como castas adolescentes! Mar dos sóis purpurais, sangrentos, dos nababescos ocasos rubros! No teu seio virgem, de onde se originam as correntes cristalinas da Originalidade, de onde procedem os rios largos e claros do supremo vigor, eu quero guardar, vivos, palpitantes, estes Pensamentos, como tu guardas os corais e as algas.

Nessa frescura iodada, nesse acre e ácido salitre vivificante, eles se perpetuarão, sem mácula, à saúde das tuas águas mucilaginosas onde se geram prodígios como de uma luz imortal fecundadora.

Nos mistérios verdes das tuas ondas, dentre os profundos e amargos Salmos luteranos que elas cantam eternamente, estes pensamentos acerbos viverão para sempre, à augusta solenidade dos astros resplandecentes e mudos.

Rogo-te, ó Mar suntuoso e supremo! para que conserves no íntimo da tu’alma heróica e ateniense toda esta dolorosa Via-Láctea de sensações e idéias, estas emoções e formas evangélicas, religiosas, estas rosas exóticas, de aromas tristes, colhidas com enternecido afeto nas infinitas idéias do Ideal, para perfumar e florir, num Abril e Maio perpétuos, as aras imaculadas da Arte.

Em nenhuma outra região, Mar triunfal! ficarão estes pensamentos melhor guardados do que no fundo das tuas vagas cheias de primorosas relíquias de corações gelados, de noivas pulcras, angélicas, mortas no derradeiro espasmo frio das paixões enervantes…

Lá, nessas ignotas e argentadas areias, estas páginas se eternizarão, sempre puras, sempre brancas, sempre inacessíveis a mãos brutais e poluídas, que as manchem, a olhos sem entendimento, indiferentes e desdenhosos, que as vejam, a espíritos sem harmonia e claridade, que as leiam…

Pelas tuas alegrias radiantes e garças; pelas alacridades salgadas, picantes, primaveris e elétricas que os matinais esplendores derramam, alastram sobre o teu dorso, em pompas; pelas confusas e mefistofélicas orquestrações das borrascas; pelo epiléptico chicotear, pelas vergastantes nevroses dos ventos colossais, que te revolvem; pelas nostálgicas sinfonias que violinam e choram nas harpas das cordoalhas dos Navios, ó Mar! guarda nos recônditos Sacrários d’esmeralda as idéias que este Missal encerra, dá-o, pelas noites, a ler, a meditadoras Estrelas, á emoção do Ângelus espiritualizados e, majestosamente, envolve-o, deixa que Ele repouse, calmo, sereno, por entre as raras púrpuras olímpicas dos teus ocasos…


PAISAGEM DE LUAR

Na nitidez do ar frio, de finas vibrações de cristal, as estrelas crepitam…

Há um rendilhamento, uma lavoragem de pedrarias claras, em fios sutis de cintilações palpitantes, na alva estrada esmaltada da Via-Láctea.

Uma serenidade de maio adormecido entre frouxéis de verdura cai do veludo do firmamento, torna a noite mais solitária e profunda.

O Mar, pontilhado dos astros, faísca, fosforesce e rutila, agitando o dorso Glauco.

E, de leve, de manso, um clarão branco, lânguido, lívido vem subindo dos montes, escorrendo fluido nas folhagens, que prateiam-se logo, como se fabuloso artista invisível as prateasse e as polisse.

A lua cheia transborda em rio de neve na paisagem, e, no mar, há pouco apenas fagulhante da iriação das estrelas, a lua jorra do alto.

Por ele afora, pelo vasto mar espelhado, pequenas embarcações se destacam agora, alígeras, lépidas, à pesca da noite, velas brancas serenas, sob a constelação dos espaços.

A água repercute, na amorosa solidão do luar, a barcarola sonora dos pescadores, que, de entre a glacial amplidão da água, mais fresca e sonora, vibra.

Um aspecto de natureza, verde, virgem, que repousa, estende-se nos longes, desce aos prados, sobe às montanhas e infinitamente espalha-se nas mudas praias alvejantes.

E, à proporção que a lua mais vai subindo o páramo, à proporção que ela mais galga a altura, mais as pequenas embarcações de pesca avançam nas vagas resplandecentes, com as asas das velas abertas à salitrosa emanação marinha.

Com o brilho fúlgido, aceso, d’esmeralda facetada, uma estrela parece peregrinamente acompanhar de perto a lua, num ritmo harmonioso…

Perfumes salutares, tonificantes eflúvios exalam-se da frescura nova, imaculada dos campos, como dum viçoso e casto florir de magnólias, na volúpia da natureza adormecida numa alvura de linhos, dentre opulências de Noivados.

(Do livro Missal, de Cruz e Sousa, publicado em 1893, que introduziu o poema em prosa no Brasil.)

domingo, 7 de novembro de 2010

GALERIA: FRANCIS PONGE


POEMAS EM PROSA (VI)

O FOGO

O fogo faz uma classificação: primeiro, as chamas todas vão num sentido qualquer...

(Só pode comparar o andar do fogo ao dos animais: é preciso que deixe um lugar para ocupar um outro; anda ao mesmo tempo como uma ameba e como uma girafa: arriba o pescoço, salta – as patas de rojo)...

Depois, enquanto as massas contaminadas com método se desmoronam, os gases que escapam vão sendo transformados pouco a pouco numa só ribalta de borboletas.


A VELA

A noite reaviva, às vezes, uma planta singular cujo clarão decompõe os cômodos em maciços de sombra.

Seu fogo impassível se esfolha em ouro no côncavo de uma coluneta de alabastro, preso a um pedúnculo muito negro.

As mariposas maltrapilhas assaltam-na de preferência quando vai alta a lua que vaporiza os bosques. Mas, queimadas no mesmo instante ou peneiradas na refrega, fremem todas à beira de um frenesi vizinho do estupor.

Entretanto, a vela, com as vacilações da claridade, na súbita liberação das fumaças originais, encoraja o leitor – depois, se inclina sobre o seu sustento e se afoga no prato.


A BORBOLETA

Quando o açúcar elaborado nos talos surge no fundo das flores, como xícaras mal lavadas - um grande esforço se produz no solo de onde, súbito, as borboletas alçam voo.

Porém, como cada lagarta teve a cabeça ofuscada e enegrecida, e o torso adelgaçado pela verdadeira explosão de onde as asas simétricas flamejaram,

Desde então, a borboleta errática só pousa ao acaso do percurso, ou quase isso.

Fósforo voejante, sua chama não é contagiosa. E, além do mais, ela chega muito tarde e pode apenas constatar as flores desabrochadas. Não importa: comportando-se como acendedora de lâmpadas, verifica a provisão de óleo de cada uma. Pousa no cimo das flores o farrapo atrofiado que carrega e vinga assim sua longa humilhação amorfa de lagarta ao pé dos caules.

Minúsculo veleiro dos ares maltratado pelo vento como pétala superfetatória, vagabundeia pelo jardim


(Poemas de Francis Ponge, do livro Le parti pris des choses, traduzidos por Adalberto Muller e Carlos Loria)

sábado, 6 de novembro de 2010

GALERIA: HENRI MICHAUX


POEMAS EM PROSA (V)

MAGIA

I

Antigamente eu era muito nervoso. Agora estou num novo caminho:

Coloco uma maçã em cima da mesa. Depois me coloco dentro da maçã. Que tranquilidade!

Isso parece simples. Entretanto, havia vinte anos que tentava; e não teria conseguido, querendo começar por ali. Por que não? Talvez me sentisse humilhado em virtude de seu tamanho diminuto e de sua vida opaca e lenta. É provável. Os pensamentos da camada inferior raramente são belos.

Então comecei de outra forma e me uni ao Escalda.

Em Anvers, onde eu o encontrava, o Escalda é largo e importante e movimenta um grande fluxo. Ele recebe os navios de alto bordo que se aproximam. É um rio, um verdadeiro rio.

Decidi unir-me a ele. Permanecia no cais o dia inteiro. Mas eu me dispersava em numerosas e inúteis perspectivas.

E depois, à minha revelia, olhava as mulheres de vez em quando, e isso não condiz com um rio, nem com uma maçã, nem com nada na natureza.

Então o Escalda e mil sensações. O que fazer? Subitamente, tendo renunciado a tudo, encontrei-me..., não direi em seu lugar, pois, na verdade, nunca foi exatamente assim. Ele corre incessantemente (eis uma grande dificuldade) e desliza em direção à Holanda onde encontrará o mar e a altitude zero.

Retorno à maçã. Lá, novamente, houve tateios, experiências; é uma longa história. Partir é pouco cômodo, assim como falar sobre isso.

Mas, em uma palavra, posso dizer-lhes. Sofrer é a palavra.

Quando cheguei à maçã, estava congelado.


II


Assim que a vi, desejei-a.

De início, para seduzi-la, disseminei planícies e planícies. Planícies saídas do meu olhar estendiam-se doces, amáveis, reconfortantes.

As idéias de planície foram ao encontro dela e, sem o saber, ela as percorria, sentindo-se satisfeita.

Percebendo-a bem segura, eu a possuí.

Isso feito, depois de um pouco de repouso e quietude, voltando ao meu natural, deixei reaparecerem minhas lanças, meus trapos, meus precipícios.

Ela sentiu um grande frio e que tinha se enganado completamente a meu respeito.

Ela foi embora, a fisionomia desfeita e esvaziada, como se tivesse sido roubada.


III

Acho difícil acreditar que isso seja natural e conhecido por todos. Às vezes eu fico tão profundamente entranhado em mim mesmo numa bolha única e densa que, sentado sobre uma cadeira, a menos de dois metros da lâmpada colocada sobre a mesa de trabalho, é com grande dificuldade e após um longo tempo que, apesar dos olhos bem abertos, consigo lançar um olhar até ela.

Uma emoção estranha toma conta de mim quando dou esse depoimento sobre o círculo que me isola.

Parece-me que um obus ou até mesmo um raio não conseguiriam me atingir de tantas camadas de todas as partes que tenho aplicadas sobre mim.

Simplesmente, seria bom que a raiz da angústia estivesse enterrada por algum tempo.

Nesses momentos eu tenho a imobilidade de uma cova.


IV

Este dente da frente cariado me enfiava as suas agulhas muito acima da raiz, quase sob o nariz. Terrível sensação!

E a magia? Talvez, mas então é preciso alojar-se em bloco quase sob o nariz. Que desequilíbrio! E eu hesitava, ocupado com outras coisas, um estudo sobre a linguagem.

Nesse momento uma velha otite, que dormia há cinco anos, despertou com sua fina perfuração no fundo da orelha.

Portanto, eu precisava me decidir. Molhado, melhor lançar-se à água. Abalado em sua posição de equilíbrio, melhor procurar outra.

Abandono então o estudo e me concentro. Em três ou quatro minutos, elimino a dor da otite (eu conhecia o caminho). Quanto ao dente, precisaria do dobro de tempo. Ela ocupava um lugar tão ridículo, quase sob o nariz. Por fim ela desaparece.

É sempre assim; só a primeira vez é uma surpresa. A dificuldade é encontrar o lugar da dor. Assegurado o lugar, é só dirigir-se naquela direção, às apalpadelas na sua noite, procurando circunscrevê-lo (por não terem concentração, os ansiosos sentem a dor em todos os lugares), depois, à medida que é circundado, deve-se observá-lo mais cuidadosamente, pois ele se torna menor, menor, dez vezes menor que uma ponta de agulha; todavia, você o vigia sem descanso, com atenção crescente, projetando nele sua euforia até que não haja diante de você nenhum núcleo de dor. Você realmente o encontrou.

Agora, é preciso permanecer ali sem esforço. Cinco minutos de concentração devem produzir uma hora e meia ou duas horas de calma e insensibilidade. Falo em relação aos homens que não são especialmente fortes ou dotados; por sinal é o “meu tempo”.

(Por causa da inflamação dos tecidos, subsiste uma sensação de pressão, de pequeno volume isolado, como subsiste após a injeção de um líquido anestésico.)


V

Sou tão fraco (eu o era, sobretudo), que se pudesse coincidir em espírito com o que quer que fosse, eu seria imediatamente subjugado e engolido por ele e estaria inteiramente sob sua dependência; mas eu fico de olho, atento, antes aferrado a ser sempre muito exclusivamente eu. Graças a essa disciplina, agora tenho chances cada vez maiores de nunca coincidir com nenhum espírito e de poder circular livremente nesse mundo.

Melhor assim! Tendo me fortalecido a esse ponto, lançarei um desafio ao mais poderoso dos homens. O que a sua vontade me faria? Eu me tornei tão agudo e circunstanciado que, estando diante dele, ele não conseguiria encontrar-me.
(Poemas de Henri Michaux traduzidos por Izabela Leal. Leia mais no link de Tradução da Zunái.)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

GALERIA: LAUTRÉAMONT


POEMAS EM PROSA (IV)

FRAGMENTOS DE OS CANTOS DE MALDOROR

Sou filho do homem e da mulher, ao que me dizem. Isso me espanta... acreditava ser mais! De resto, que me importa de onde venho? Se isso dependesse de minha vontade, teria preferido ser o filho da fêmea do tubarão, cuja fome é amiga das tempestades, e do tigre, cuja crueldade é reconhecida: eu não seria tão mau. Vós que me encarais, afastai-vos de mim, pois meu hálito exala um sopro envenenado. Ninguém viu ainda as rugas verdes do meu rosto; nem os ossos salientes de minha fisionomia magra, semelhantes às espinhas de algum peixe gigante, ou aos rochedos que cobrem a beira-mar, ou às abruptas montanhas alpestres, que percorri muitas vezes quando tinha sobre a cabeça cabelos de outra cor. E, quando rondo as habitações dos homens, durante as noites tempestuosas, de olhos ardentes, cabelos flagelados pelo vento da intempérie, isolado como uma pedra no meio do caminho, cubro meu rosto abatido com um pedaço de veludo, negro como a fuligem que enche o interior das chaminés: não é preciso que os olhos sejam testemunhas da feiúra que o Ser supremo, com um sorriso de ódio poderoso, pôs em mim.

(Do Canto I)

Lá, em um bosque rodeado de flores, repousa o hermafrodita, profundamente adormecido na relva, molhado por seu pranto. A lua separou seu disco da massa de nuvens, e acaricia com seus pálidos raios essa doce fisionomia de adolescente. (...) Cansado da vida, envergonhado por caminhar entre seres que não se assemelham a ele, o desespero tomou conta de sua alma, e prossegue sozinho, como o mendigo do vale. Como obtém meios de subsistência? Almas caridosas velam de perto por ele, que não suspeita dessa vigilância, e não o abandonam: ele é tão bom! Ele é tão resignado! (...) Tomam-no geralmente por louco. Um dia, quatro homens mascarados, que cumpriam ordens, atiraram-se sobre ele, e o amarraram solidamente, de tal modo que só pudesse mexer as pernas. O chicote abateu seus rudes látegos sobre suas costas, e lhe disseram que se dirigisse sem demora para a estrada, que leva a Bicêtre. Ele se pôs a sorrir enquanto recebia os açoites, e lhes falou com tamanho sentimento e inteligência sobre as muitas ciências humanas que havia estudado, demonstrando tamanha instrução (...) que seus guardiões, assustados até a medula pelo ato que haviam cometido, desamarraram seus membros quebrados, prosternaram-se de joelhos, pedindo um perdão que lhes foi concedido, e se afastaram, com os sinais de uma veneração que não se concede ordinariamente aos homens.

(Do Canto II)

(Lautréamont, Os Cantos de Maldoror, in Obras Completas. São Paulo: Iluminuras, 1997. Tradução de Claudio Willer.)