Suzanne Bernard, em seu livro Le poème em prose — de Baudelaire jusqu’a nos jours, remonta a origem desse gênero literário à Idade Média. As traduções de poesia clássica grega e romana (como a Odisseia e a Ilíada, de Homero) para a prosa, com o abandono de sua estrutura métrica e rítmica em favor da narrativa, do “conteúdo”, também estão na gênese dessa modalidade criativa (e podemos recordar aqui a tradução que Mallarmé fez do poema O Corvo, de Edgar Allan Poe, que manteve o enredo, a narração, as imagens e o timbre emocional do poema, ao mesmo tempo em que evitou o exigente labor de recriação dos efeitos sonoros tão peculiares do autor norte-americano).
O poema em prosa se estabeleceu como um gênero poético autônomo, com o mesmo grau de refinamento artístico que o soneto, a elegia, a écloga e outras composições escritas em verso graças ao poeta francês Charles Baudelaire, autor de Pequenos poemas em prosa, publicado postumamente, em 1869. No prefácio à tradução brasileira de Gilson Maurity, publicada pela editora Record em 2006, Ivo Barroso define essa obra como “uma série de peças curtas, não metrificadas nem rimadas, mas de teor poético, que o mesmo Baudelaire começou a escrever concomitantemente com As flores do mal a partir de 1855. Inspirando-se no Gaspar de la nuit, de Aloysius Bertrand, esses fragmentos eram uma combinação de narrativas curtas (diríamos hoje minicontos), diário íntimo, aforismos, tiradas anedóticas, descrições, anotações para futuros poemas etc. feitos para publicação em jornais e revistas”. Mais adiante, Barroso cita uma carta que Baudelaire escreveu a Arsène Houssaye, onde o autor francês diz: “Qual de nós, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética musical, sem ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante rica de contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?”.
Tendo encontrado um modo de realizar esse projeto sonhado, Baudelaire abriu caminho para uma longa tradição da poesia francesa e universal, em que podemos incluir obras tão radicais como Uma temporada no inferno, de Rimbaud, Os cantos de Maldoror, de Lautréamont, Igitur, de Mallarmé, O peixe solúvel, de André Breton, até as Galáxias, de Haroldo de Campos.
O que caracteriza esse gênero literário? O poema em prosa, assim como o verso livre, rompe com as normas de construção métrica e rímica e dá um passo além, abolindo a própria distinção entre poesia e prosa, lirismo e narrativa. Ele utiliza recursos tradicionais da arte poética, como a metáfora, a paronomásia, a aliteração, a escolha de palavras pela sonoridade, e não apenas pelo sentido, e constrói o ritmo não pela sequência fixa de sílabas fracas e fortes, e sim pela livre associação de palavras, não raro rompendo com a sintaxe tradicional pelo uso da elipse e pela ausência de pontuação, ou ainda pela construção de frases sem obedecer à lógica discursiva tradicional, do tipo sujeito-verbo-objeto. Ele pode incorporar elementos ficcionais, como acontece nos Cantos de Maldoror, de Lautréamont, ou na Estação no inferno, de Rimbaud, mas sem obedecer à construção linear de tempo e espaço do romance. Sendo uma forma híbrida, incorpora recursos de todos os gêneros literários, inclusive da crônica e do drama, do ensaio e do drama teatral, reelaborando esses recursos, muitas vezes, de forma paródica. O verso livre e o poema em prosa foram as primeiras manifestações da crise do verso clássico, e apontaram a necessidade de criação de novas estruturas para a linguagem poética, o que atingiu um nível de máxima radicalização com o poema Um lance de dados, de Mallarmé, que criou uma sintaxe visual para o poema, com a adoção de diferentes fontes e corpos de letras, de itálicos e negritos, com as palavras e frases distribuídas de forma geométrica no espaço em branco da página, permitindo diferentes sequências de leitura. O Lance de dados abriu caminho para os Caligramas de Apollinaire, a Poesia Concreta e Visual e as atuais experiências realizadas no campo da poesia digital e eletrônica.
Caro Daniel,
ResponderExcluirGostei muito do texto! E do seu blog! Estarei seguindo o seu trabalho a partir de agora!
Abraço fraterno,
Adriano Nunes.
Caro Adriano, grato!
ResponderExcluirAbraço,
Claudio
Claudio, gosto muito de prosa-poética e o seu texto está magnífico. Posso "roubar" parte dele (com os devidos créditos, óbvio) para abrir meu livro de prosa-poética, que pretendo lançar ano que vem?
ResponderExcluirOutra coisa, o velho Whitman também não bebeu dessa fonte?
Abraços, meu caro.
Sidnei, claro, pode citar o texto à vontade, indicando a fonte. Whitman é contemporâneo de Baudelaire; um é o pai do verso livre, o outro, do poema em prosa, duas conquistas que colocaram em crise o verso clássico, crise aprofundada pelo Lance de dados de Mallarmé.
ResponderExcluirAbraço,
CD
Adriano e Sidnei, vocês precisam ler ROMANCEIRO DONA VIRGO, do Claudio Daniel, um belo exemplo de "múltiplas linguagens" muito além da prosa poética - muito próximo das "alucinações baudelarianas", como bem diz Sérgio Sant'Anna. Eu estou relendo. Muito bom!Abraços.
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