terça-feira, 9 de novembro de 2010

POEMAS EM PROSA (VII)

UMBRA

Volto da rua.

Noite glacial e melancólica.

Não há nem a mais leve nitidez de aspectos, porque nem a lua, nem as estrelas, ao menos fulgem no firmamento.

Há apenas uma noite escura, cerrada, que lembra o mistério.

Faz frio…

Cai uma chuva miúda e persistente, como fina prata fosca moída e esfarelada do alto…

À turva luz oscilante dos lampiões de petróleo, em linha, dando à noite lúgubres pavores de enterros, vêem-se fundas e extensas valas cavadas de fresco, onde alguns homens ásperos, rudes, com o tom soturno dos mineiros, andam colocando largos tubos de barro para o encanamento das águas da cidade.

A terra, em torno dos formidáveis ventres abertos, revolta e calcária, com imensa quantidade de pedras brutas sobrepostas, dá idéia da derrocada de terrenos abalados por bruscas convulsões subterrâneas.

Instintivamente, diante dessas enormes bocas escancaradas na treva, ali, na rigidez do solo, sentindo na espinha dorsal, como uma tecla elétrica onde se calca de repente a mão, um desconhecido tremor nervoso, que impressiona e gela, pensa-se fatalmente na morte…

ORAÇÃO AO MAR

Ó mar! Estranho Leviatã verde! Formidável pássaro selvagem, que levas nas tuas asas imensas, através do mundo, turbilhões de pérolas e turbilhões de músicas!

Órgão maravilhoso de todos os nostalgismos, de todas as plangências e dolências…

Mar! Mar azul! Mar de ouro! Mar glacial!

Mar das luas trágicas e das luas serenas, meigas como castas adolescentes! Mar dos sóis purpurais, sangrentos, dos nababescos ocasos rubros! No teu seio virgem, de onde se originam as correntes cristalinas da Originalidade, de onde procedem os rios largos e claros do supremo vigor, eu quero guardar, vivos, palpitantes, estes Pensamentos, como tu guardas os corais e as algas.

Nessa frescura iodada, nesse acre e ácido salitre vivificante, eles se perpetuarão, sem mácula, à saúde das tuas águas mucilaginosas onde se geram prodígios como de uma luz imortal fecundadora.

Nos mistérios verdes das tuas ondas, dentre os profundos e amargos Salmos luteranos que elas cantam eternamente, estes pensamentos acerbos viverão para sempre, à augusta solenidade dos astros resplandecentes e mudos.

Rogo-te, ó Mar suntuoso e supremo! para que conserves no íntimo da tu’alma heróica e ateniense toda esta dolorosa Via-Láctea de sensações e idéias, estas emoções e formas evangélicas, religiosas, estas rosas exóticas, de aromas tristes, colhidas com enternecido afeto nas infinitas idéias do Ideal, para perfumar e florir, num Abril e Maio perpétuos, as aras imaculadas da Arte.

Em nenhuma outra região, Mar triunfal! ficarão estes pensamentos melhor guardados do que no fundo das tuas vagas cheias de primorosas relíquias de corações gelados, de noivas pulcras, angélicas, mortas no derradeiro espasmo frio das paixões enervantes…

Lá, nessas ignotas e argentadas areias, estas páginas se eternizarão, sempre puras, sempre brancas, sempre inacessíveis a mãos brutais e poluídas, que as manchem, a olhos sem entendimento, indiferentes e desdenhosos, que as vejam, a espíritos sem harmonia e claridade, que as leiam…

Pelas tuas alegrias radiantes e garças; pelas alacridades salgadas, picantes, primaveris e elétricas que os matinais esplendores derramam, alastram sobre o teu dorso, em pompas; pelas confusas e mefistofélicas orquestrações das borrascas; pelo epiléptico chicotear, pelas vergastantes nevroses dos ventos colossais, que te revolvem; pelas nostálgicas sinfonias que violinam e choram nas harpas das cordoalhas dos Navios, ó Mar! guarda nos recônditos Sacrários d’esmeralda as idéias que este Missal encerra, dá-o, pelas noites, a ler, a meditadoras Estrelas, á emoção do Ângelus espiritualizados e, majestosamente, envolve-o, deixa que Ele repouse, calmo, sereno, por entre as raras púrpuras olímpicas dos teus ocasos…


PAISAGEM DE LUAR

Na nitidez do ar frio, de finas vibrações de cristal, as estrelas crepitam…

Há um rendilhamento, uma lavoragem de pedrarias claras, em fios sutis de cintilações palpitantes, na alva estrada esmaltada da Via-Láctea.

Uma serenidade de maio adormecido entre frouxéis de verdura cai do veludo do firmamento, torna a noite mais solitária e profunda.

O Mar, pontilhado dos astros, faísca, fosforesce e rutila, agitando o dorso Glauco.

E, de leve, de manso, um clarão branco, lânguido, lívido vem subindo dos montes, escorrendo fluido nas folhagens, que prateiam-se logo, como se fabuloso artista invisível as prateasse e as polisse.

A lua cheia transborda em rio de neve na paisagem, e, no mar, há pouco apenas fagulhante da iriação das estrelas, a lua jorra do alto.

Por ele afora, pelo vasto mar espelhado, pequenas embarcações se destacam agora, alígeras, lépidas, à pesca da noite, velas brancas serenas, sob a constelação dos espaços.

A água repercute, na amorosa solidão do luar, a barcarola sonora dos pescadores, que, de entre a glacial amplidão da água, mais fresca e sonora, vibra.

Um aspecto de natureza, verde, virgem, que repousa, estende-se nos longes, desce aos prados, sobe às montanhas e infinitamente espalha-se nas mudas praias alvejantes.

E, à proporção que a lua mais vai subindo o páramo, à proporção que ela mais galga a altura, mais as pequenas embarcações de pesca avançam nas vagas resplandecentes, com as asas das velas abertas à salitrosa emanação marinha.

Com o brilho fúlgido, aceso, d’esmeralda facetada, uma estrela parece peregrinamente acompanhar de perto a lua, num ritmo harmonioso…

Perfumes salutares, tonificantes eflúvios exalam-se da frescura nova, imaculada dos campos, como dum viçoso e casto florir de magnólias, na volúpia da natureza adormecida numa alvura de linhos, dentre opulências de Noivados.

(Do livro Missal, de Cruz e Sousa, publicado em 1893, que introduziu o poema em prosa no Brasil.)

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