Fera Bifronte é uma metáfora da morte. Remete à imagem do cão Cérbero, que guardava a entrada do inferno, na mitologia grega (embora, no mito original, esse animal tenha três cabeças; eu reduzi para duas, talvez para introduzir um outro sentido, o da dualidade, divisão, conflito). O primeiro poema do livro chama-se Fera; o último, também (como se o livro tivesse início com uma de suas faces, e terminasse com a outra). No primeiro poema, a relação entre o animal e a morte é dada já no verso inicial: "Animal metafísico desliza aspereza até abolição de vocábulos", abolição que é o silêncio do aniquilamento. A descrição física da criatura, que salienta "fileiras assimétricas de vértebras", "Flora esquelética no pelame", explicita a imagem cadavérica; já o verso "Sequência numérica tatua seu dorso" remete à inscrição na pele dos prisioneiros dos campos de concentração (embora nesses últimos os números fossem gravados no braço, não no dorso). As imagens cruéis do poema associam-se a referências sexuais, de uma eroticidade macabra: "Em branco aniquilar / sua mandíbula / aberta como fenda sexual / interrogante". A dualidade Eros / Thanatos é um dos temas centrais do livro, e se torna mais explícita no último poema, também chamado Fera: "... que mutila ao lamber / nossos lábios. / Devassa da noite e seu dramatismo, / da noite e seus jogos / marsupiais, / faz do breu uma erótica de lâminas". Neste poema, a alegoria da morte assume outra imagem, mais carnavalizada: a cadela esquelética "exibe seus múltiplos ornatos, / ao devorar a carne / dessangrada: / pingente de ouro numa teta, / argola de prata no lábio cinzento / de harpia", é uma "bicéfala dama-dragão", "ávida por envolver-me / em lascívia". O eu lírico aparece então como o fugitivo da fábula árabe, que tenta escapar à morte, disfarçado: "Se ela vier buscar-me / neste poema, / não encontrará /a carne tensa, palatável, / apenas a efígie / de um perpétuo fugitivo". Claro que há vários outros temas ao longo do livro, desde a guerra (Escrito em Osso) até o amor (Escrito em Flor) e a sociedade de consumo (Gabinete de Curiosidades), mas é o tema da morte que aproxima esse livro de meu poema longo Letra Negra: "estou morto e não-morto / vértebras ao inverso / letras tontas / de um nome incerto / vocábulo equívoco / desfeito em água / para a necessária / abolição de mim". Nesta composição, a morte ganha outros contornos: não se trata (apenas) da pulsão tanática individual, nem da devastação coletiva, como nas guerras do Oriente Médio ou nos campos de detenção, tortura e morte, como o de Sujiatun, na China (abordado em Fera Bifronte). A morte aqui ganha uma dimensão mais ampla: ela é a constante mutação da realidade, "campo de improváveis simulando pólipos"; "aqui um camaleão se / transforma em água, em peixe, em luz, em / nada", mutação que remete à paisagem externa e à angústia individual, traduzida como acúmulo de inumeráveis mortes simbólicas.
segunda-feira, 29 de março de 2010
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Em tempo: na época em que escrevi Letra Negra eu estudava o conceito de modernidade líquida de Zygmunt Bauman, e há reflexos dessa leitura (e de outras referências como o I Ching, o Taoísmo, o Zen) na representação do mundo como espaço de incessantes metamorfoses, de sucessivas mortes.
ResponderExcluirMuito bom muito.
ResponderExcluirCláudio,
ResponderExcluirmuito interessante vc fazer sua exegese e compartilha-la conosco. É sempre um prazer seus textos e poemas maravilhosos.
A morte (seu antes e após) é realmente um tema que sempre me estremece, ainda mais que, face à minha profissão (pm), é uma vertente da minha rotina. Tento sempre pensar sobre o seu camaleão, pois "um camaleão se / transforma em água, em peixe, em luz, em / nada". Nem sempre é fácil - quero dizer: a maior parte do tempo é difícil (rsrs). E como a literatura ensina e alenta, permito-me estar em sintonia com essa "mutação que remete à paisagem externa e à angústia individual, traduzida como acúmulo de inumeráveis mortes simbólicas".
Forte abraço!