quinta-feira, 11 de março de 2010

CÃNONE E ANTICÂNONE (III)

Haroldo de Campos, no ensaio Texto e História, incluído no livro A Operação do Texto (São Paulo: Perspectiva, 1976), afirma o seguinte: “a vanguarda brasileira propõe uma leitura radicalmente diversa de seu passado literário. a idéia de uma poética sincrônica parece aqui extremamente fecunda, nos termos em que a formulou Roman Jakobson (Linguistic and Poetics): ‘A descrição sincrônica considera não apenas a produção literária de um período dado, mas também aquela parte da tradição literária que, para o período em questão, permaneceu viva ou foi revivida. (...) A escolha de clássicos e sua reinterpretação à luz de uma nova tendência é um dos problemas essenciais dos estudos literários sincrônicos. (...) Uma poética da história ou história da linguagem cabalmente compreensiva é uma superestrutura a ser construída sobre uma série de descrições sincrônicas sucessivas’.

A aplicação deste critério numa literatura como a brasileira (cuja história real, a rigor, ainda está por fazer-se) produz desde logo um efeito desobstrutivo e dessacralizador: de um lado o prontuário das obras a serem consideradas (antes obras que autores) fica inevitavelmente reduzido, com a remoção do entulho despiciendo (por ‘glorioso’ que seja); de outro, perfilam-se com nitidez antes impossível de obter aqueles autores (textos) que realmente contam numa perspectiva radical, inclusive de validade internacional (...). Esta ‘drástica separação’ (...) é empobrecedora apenas na aparência. O que se perde em quantidade e diluição, ganha-se na qualidade e rigor. (...) O crítico poderá agora, de cabeça erguida e sem pedir escusas, reivindicar alto e bom som aquilo que nos é devido, o contributo de informação original que temos a reclamar como coisa nossa na evolução de formas da literatura universal, na, por assim dizer, ‘enciclopédia imaginária’ dessa literatura. O que era antes um panorama amorfo, contemplado por um olho destituído de projeto, ganha coerência e relevo hierárquico, readquire vida dentro de uma tábua sincrônica onde presente e passado são contemporâneos.”

Dentro desta perspectiva, Haroldo de Campos propõe uma releitura da história da literatura brasileira, não mais conforme critérios sociológicos ou políticos, e sim estéticos. O resultado dessa releitura crítica seria uma Antologia da Poesia Brasileira de Invenção, que infelizmente Haroldo não chegou a organizar. Participariam dessa obra autores como Gregório de Matos, Sousândrade, Kilkerry, bem como os textos mais radicais de poetas como Gonçalves Dias e Cruz e Sousa, com a exclusão deliberada dos parnasianos e de românticos menores, como Casimiro de Abreu. Não se trata, é claro, de uma escolha “imparcial” ou “neutra” de textos e obras, mas um recorte deliberadamente parcial, que elege os autores e obras do passado que têm mais afinidade com as pesquisas formais da vanguarda. Conforme diz Jorge Luís Borges, citado por Haroldo de Campos neste ensaio, “A verdade é que cada escritor cria os seus precursores. A sua obra modifica a nossa concepção do passado como há de modificar a do futuro”. A partir da afirmação borgeana, conclui Haroldo, “Pode-se dizer que uma nova obra decisiva ou um novo movimento artístico propõem um novo modelo estrutural, à cuja luz todo o passado subitamente se reorganiza e ganha uma coerência diversa. (...) Entre o ‘presente de criação’ e o ‘presente de cultura’ há uma correlação dialética: se o primeiro é alimentado pelo segundo, o segundo é redimensionado pelo primeiro. Vanguarda como atitude produtora no ‘presente de criação’ e visada sincrônica como atitude revisora no ‘presente de cultura’, eis os polos desta tensão na atual literatura brasileira.”

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