A temática cotidiana e a linguagem coloquial podem ser recursos criativos interessantes quando utilizados com inteligência poética. É o caso, por exemplo, do poeta português Cesário Verde (1855-1886), sobre quem publiquei um ensaio, intitulado Cesário Verde: o anjo torto de Lisboa, no Suplemento Literário de Minas Gerais, em 1998. Confiram o texto, abaixo:
Cesário Verde é o poeta anti-épico, exilado da metafísica, que preferiu o sórdido ao sublime, o escarro da tísica ao mole canto querubínico. Diferente de Fernando Pessoa, não sentiu a nostalgia pelo passado aventuroso, das conquistas além-mar, nem o anseio de alcançar a paz na espiritualidade ascética; o seu mundo é o das coisas densas, palpáveis, apreensíveis pelos cinco sentidos. É o mundo racionalizado, sem mistérios, decodificado pela ciência divorciada do sagrado. É nesse espaço-tempo finissecular em que imperam o capital e a técnica, as equações e réguas de cálculo, incapazes de compaixão, que ele modelou sua poesia rigorosa, de extrema precisão vocabular, despida de sentimentalismo ou exageros retóricos. O seu cancioneiro, de lírica áspera e cortante, é o epitáfio do século XIX e a ponta-de-lança da poesia moderna em língua portuguesa.
A arte poética de Cesário Verde está alicerçada na sólida construção métrica dos versos, em que predominam o decassílabo e o alexandrino; no ritmo fluente; na escolha de rimas raras, imprevistas; na invenção metafórica; e numa ordem sintática regular, por vezes próxima à da prosa. Porém, essa forma tradicional é abalada por dentro, numa irrupção clandestina, pelo uso da ironia e do sarcasmo; pela mescla, em seu vocabulário, de palavras cultas e coloquialismos; pela incorporação do grotesco, do “mau gosto”, pour épater le bourgeois; e, sobretudo, pela orquestração dos versos, repletos de sutilezas musicais. Cesário Verde não ignorava o cromatismo, tecendo riquíssimas partituras verbais. É notável, em sua poesia, a influência das duas vertentes do simbolismo francês: a “sério-estética”, de Verlaine e Mallarmé, e a “coloquial-irônica”, de Laforgue e Corbière. Porém, ele não se confunde com os poètes maudits parisienses por seu estilo pessoal, inconfundível, e pela direção de seu olhar, voltado mais às ações humanas do que a vagas sensações.
Cesário Verde é contemporâneo do processo de transformação de Portugal, com o surto industrial e a expansão urbana, no final do século XIX, e sua poesia reflete essa mudança de paisagem, incorporando a temática social com o enfoque crítico do carbonário, do tribuno da plebe. Ele é o poeta dos operários, das lavadeiras, dos mendigos que tropeçam na sarjeta ante a marcha acelerada do veículo de um magistrado. No entanto, o seu engajamento, sua ética de solidariedade, nunca prescindiu do compromisso estético, numa linha paralela às concepções de Maiakóvski. O poeta português antecipou a própria irreverência futurista do anárquico vate russo em versos como estes: “descobria uma cabeça numa melancia/ e nuns repolhos seios injetados” (de Num bairro moderno) e “Eu desfaria o Sol como desfaço/ as bolas de sabão das criancinhas” (de Arrojos). Herdeiro de uma orgulhosa tradição nacional, a dos argonautas lusitanos, como Vasco da Gama, o poeta não poupou de sua língua ferina nem o próprio oceano: “Eu temo muito o mar, o mar enorme,/ Solene, enraivecido, turbulento,/ Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;/ O mar sublime, o mar que nunca dorme./ (...) Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,/ Escarro, com desdém, no grande mar!” (de Heroísmos).
A rima, na poesia de Cesário Verde, nunca é banal, rotineira, mas incisiva, contundente; ele obtém efeitos de ironia, de sensualidade, de comoção, dentro de sutis jogos metalinguísticos. Em sua oficina, o poeta obtém rimas entre nomes próprios e substantivos comuns (Marta/carta); entre palavras do idioma português e estrangeirismos (contrarie/coterie); entre termos científicos e do léxico comum (aneurisma/abisma); entre vocábulos de diferentes números de sílabas (relógio/martirológio), isso para ficarmos em poucos exemplos. O uso de adjetivos justapostos, em seus poemas, não é acessório, cosmético, mas, na maioria das vezes, cumpre uma função crítica, de caricatura, via linguagem, como em Ecos de Realismo — Manias:
O mundo é uma velha cena ensangüentada,
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.
Eu sei um bom rapaz, — hoje uma ossada —,
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância quixotesca.
Aos domingos a déia, já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa.
Na sujeição canina mais submissa
Levava na tremente mão nervosa
O livro com que a amante ia ouvir missa!
O pessimismo de Cesário Verde, que encontra sua força de expressão no humor negro, nos cromos metafóricos, no grau superlativo dos adjetivos, recorda o état d'âme e o estilo analítico-cirúrgico do brasileiro Augusto dos Anjos. A visada crítica do poeta português, porém, martelo nietzscheano para golpear todos os valores, é ditada menos pelo tédio, pelo spleen do estar no mundo que por um sentimento de asco ante a degradação social e de espírito.
Perfis do eterno feminino
Em sua poesia amorosa, porém, o bardo inconformista faz-se cantor romântico, blues singer da última flor do lácio, em versos como: “Pudesse eu ser o lenço de Bruxelas/ Em que ela esconde as lágrimas singelas” e “Pudesse eu ser a Lua, a Lua terna,/ E faria que a noite fosse eterna” (de Responso). No mesmo poema, o autor define sua amada na melhor tradição byroniana: “É loura como as doces escocesas,/ Duma beleza ideal, quase indecisa,/ Circunda-se de luto e tristezas/ E excede a melancólica Artemisa”. E conclui, na última estrofe: “Uníssemos, nós dois, as nossas covas,/ Ó doce castelã das minhas trovas!”. Esta associação da mulher sonhada com a noite, a melancolia e a morte encontra-se em autores do primeiro Romantismo, nas heroínas pálidas de Poe, nas damas dramáticas de romances sentimentais e óperas de boulevard. A lírica de Cesário Verde, no entanto, revela outros perfis do eterno feminino: o arquétipo da mulher pura, sincera, apaixonada, que o poeta deve proteger com ternura, e sua contraparte, a imagem de Lilith-Astarté, de uma Madalena lúbrica e impenitente, que nele desperta ao mesmo tempo o sentimento erótico, o desprezo e, sobretudo, o medo. Diz o autor, em A Forca: “Ó áridas Messalinas/ não entreis no santuário,/ transformareis em ruínas/ o meu imenso sacrário!/ Oh! A deusa das doçuras,/ a mulher! eu a contemplo!/ Vós tendes almas impuras,/ não me profaneis o templo!”. Curiosamente, na temática erótica, ressurgem, na poesia do rapsodo anticlerical, símbolos e referências do catolicismo, a condenar aos círculos infernais a mulher-só-carne. Em outro poema, Lúbrica, o poeta entrega os pontos, e deixa-se enfeitiçar pelas investidas da amiga luxuriosa:
Mandaste-me dizer
No teu bilhete ardente,
Que hás de por mim morrer,
Morrer muito contente.
Lançaste no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cena de rapazes.
Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!
(...)
As grandes comoções
Tu neles, sempre, espelhas
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...
Teus olhos imorais,
Mulher que me dissecas,
Teus olhos dizem mais
Que muitas bibliotecas!
O poeta dissidente
O poeta moderno, despido de aura, encharcado pela lama e entregue às vicissitudes da sociedade de consumo é um tema que já aparece em Baudelaire, inspirando a reflexão crítica de Walther Benjamin. Para Cesário Verde, na civilização burguesa, o artista é o dissidente rebelionário, rejeitado pelo mundo que rejeita, sendo natural a solidariedade por todos os oprimidos, pelos humilhados, que, acreditava-se, um dia fariam a revolução. No poema Contrariedades, ele nos diz:
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.
Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas...
O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.
Neste poema, o autor compara a situação dos excluídos, dos miseráveis, à do poeta, também ele um marginal, um anjo torto, gauche na vida. Aqui, ele utiliza técnicas de corte de cena e de montagem que recordam a linguagem do cinema e das histórias em quadrinhos. A narrativa é dinâmica, com planos sucessivos de imagens, e a fala do poeta, direta, enfática, coloquial, reforça o efeito comunicativo do poema. Mais adiante, o autor diz:
Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.
Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.
A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
Os meus alexandrinos.
E a tísica? Fechada e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
E fina-se ao desprezo!
Não se pode olvidar que o poeta é contemporâneo do realismo e do naturalismo, correntes estéticas que buscavam conciliar o humanismo e a defesa de valores democráticos a uma visão mecanicista, cientificista de mundo, cuja expressão teórica foi Taine. E Cesário Verde, como um pintor naturalista, nos mostra “cidades fabris, industriais,/ De nevoeiros, poeiradas de hulha” e “condados mineiros! Extensões/ Carboníferas! Fundas galerias!/ Fábricas a vapor! Cutelarias!/ E mecânicas, tristes fiações!” (de Nós).
O poema que melhor expressa o pacto de Cesário Verde em retratar a verdade, sem maquilagem, é O Sentimento dum Ocidental A peça, dividida em quatro partes (I - “Ave-Maria”; II - “Noite Fechada”; III - “Ao Gás”; IV - “Horas Mortas”) foi publicada pela primeira vez em 1880, numa edição comemorativa do Jornal de Viagens, que homenageava Camões. Este é o poema de ambiente mais urbano, mais moderno, do poeta; por ele trafegam dentistas e carpinteiros, operários e floristas, carros de aluguel e navios mercantes, numa paisagem de edifícios e vias-férreas, hospitais, cadeias e praças. É uma elegia às ruas de Lisboa, essa Londres em caricatura, emulsão de capitalismo tardio e cristandade, que o poeta retratou com as verdes tintas do sarcasmo. Logo na primeira parte do poema, o autor nos dá um exemplo de sua fanopéia concisa, fragmentária: “O céu parece baixo e de neblina/ O gás extravasado enjoa-me, perturba;/ E os edifícios, com as chaminés, e a turba/ Toldam-se duma cor monótona e londrina”.
O poema recorda, por vezes, os cenários dos romances de Zola e das crônicas de jornal; mas a síntese verbal, a linguagem dinâmica, substantiva, as metáforas ferinas, os efeitos sonoros e construções insólitas (“E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,/ Amareladamente...”) revelam o artesão apurado, mestre em sua arte, feiticeiro da orquestração das palavras. O Sentimento dum Ocidental é o documento doloroso de uma época da cultura européia, a do desenvolvimento fabril, com o inevitável custo social em miséria e sofrimento; este é o cântico noturno da gênese do século XX.
Cesário Verde faleceu em 1886, em Lisboa, aos 31 anos, vítima de tuberculose. Seus poemas, reunidos postumamente, foram publicados por seu amigo Silva Pinto sob o título de O Livro de Cesário Verde. Essa edição, no entanto, sofreu a ação de rapinagem do editor-censor, que excluiu muitas peças do volume, considerando-as “imorais”. Em edições seguintes, entre 1901 e 1926, os poemas excluídos foram sendo descobertos e publicados, até a versão definitiva, de Joel Serra, que conta 41 poemas. A influência do irrequieto poeta sobre a moderna poesia de língua portuguesa pode ser avaliada pelos nomes de Fernando Pessoa, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. Sua arte insurrecta, cutelo e forja, à margem de florilégios e perfumarias, não é só o espelho de uma época, mas o estandarte veemente da poesia que recusa ser mercadoria, aríete ideológico do conformismo ou deleite de salões ociosos. É a poesia que se afirma como o ofício do imprevisto, do lugar-incomum, da insubordinação.
Confiram outro texto sobre o poeta português, escrito por Nicole Cristófalo, no blog http://dadoacaso.blogspot.com/
ResponderExcluirNão entendo o motivo da divinização de Fernando Pessoa. Se você conversa com professoras de literatura sobre a poesia portuguesa, elas só conhecem Pessoa, além de Camões. O único poeta que enfrentou esse fato foi João Cabral de Melo Neto, que na minha mísera opinião é muito maior do que Pessoa, além de Saramago!
ResponderExcluirHilton, gosto muito do Fernando Pessoa Ele Mesmo (Mensagem, p. ex). Agora, é injusto resumir a poesia portuguesa a Camões e Pessoa (como é injusto resumir a brasileira a Bandeira e Drummond). Pessoalmente, curto muito Bocage, Cesário Verde, Camilo Pessanha, Mário de Sá-Carneiro, Carlos de Oliveira, Luiza Neto Jorge, Ana Hatherly, Herberto Helder, entre muitos outros. A literatura portuguesa é riquíssima, tem mais de 800 anos de história. Por isso é também injusta a frase de Antonio Candido, de que a literatura portuguesa é um "galho menor" da literatura universal. Como bem disse Haroldo de Campos, não há literaturas "maiores" ou "menores", mas diferentes. O abraço do
ResponderExcluirClaudio
Lendo seus ensaios sobre os canônes da literatura, fiquei abismado: como críticos literários simplesmente tiram poetas como Gregório de Matos e Padre Antônio Vieira da formação da literatura brasileira? Penso em dois motivos gravíssimos: Esses poetas são de uma grandeza única em nosso país, e também devido ao movimento representados por eles: o barroco. Ora, penso que o Barroco esteja na formação da identidade cultural brasileira!
ResponderExcluirCaro Hilton, sem dúvida! O equívoco de Antonio Candido foi o de fazer coincidir o "nascimento" da literatura brasileira com a nossa suposta independência política, a partir de 1822 (por isso ele aborda basicamente o Romantismo, excluindo o Barroco e o Arcadismo de nossa formação literária). Críticos anteriores, como José Veríssimo e Sílvio Romero, que também tinham abordagens sociológicas e mesmo políticas, de índole nacionalista, não cometeram esse erro, nem o Alfredo Bosi, em sua História Concisa da Literatura Brasileira. Estudar literatura a partir da sociologia sempre levou a absurdos inacreditáveis de avaliação crítica. O abraço do
ResponderExcluirClaudio
Outro problema sério do livro Formação da Literatura Brasileira é a exclusão de Sousândrade, um poeta que estava entre os maiores de seu tempo, no plano internacional, e a inclusão de um pobre coitado como Casimiro de Abreu, que, convenhamos, só permanece em nossos livros de história da literatura brasileira pela força do hábito, e não pela força de seus versos... "Oh que saudades que eu tenho / Da aurora da minha vida / Da minha infância querida / Que os anos não trazem mais" é uma pérola que deve ser incluída numa antologia dos Piores Poemas da Língua Portuguesa (rssss)... abração,
ResponderExcluirCD
Penso que o Romantismo no Brasil representou um retrocesso em relação ao Barroco. Sua força pôde ser sentida apenas na pintura e na música, talvez na poesia alemã tenha sido diferente. Mas é fato: compare Gregório de Matos com Alverez de Azevedo, ou Anônio Vieira com Castro Alvez. Esse poeta que você cita realmente é horrível!
ResponderExcluirCaro Hilton, não acho que o Romantismo é um retrocesso em relação ao Barroco... basta pensar em Blake, Keats, Hoelderlin, no campo internacional... no Brasil, à excessão de Sousândrade, tivemos uma versão caipira do Romantismo, menos radical, mas ainda assim há textos notáveis como o I Juca Pirama, de Gonçalves Dias, a poesia erótica e satírica de Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães e algumas peças de Castro Alves (gosto do Navio Negreiro, quase expressionista). Agora, claro, prefiro o Simbolismo, se tiver de escolher um período histórico... Abraço,
ResponderExcluirCD
Claudio, você tem razão no plano internacional, mas também não podemos esquecer de autores como Luis de Góngora, Francisco de Quevedo y Villegas, John Milton, John Donne... Entre os autores românticos brasileiros como Castro Alves de Álvares de Azevedo também prefiro o segundo, mas gosto mais de poetas como Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, e o parnasiano Raimundo Correa.
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