segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

CONVERSANDO SOBRE POESIA (I)

Caros, conheci a poesia de Ferreira Gullar em 1980, quando eu tinha 18 anos e acabara de ingressar no curso de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Eu li, em poucas semanas, o volume Toda Poesia, publicado pela Civilização Brasileira, que reunia o trabalho poético do autor maranhense escrito entre 1950 e 1980. Fiquei com uma impressão que, acredito, se manteve inalterada até hoje.

O primeiro livro de Gullar, A Luta Corporal, é uma obra-prima; sem dúvida alguma, a melhor coisa que ele fez em vida. Poemas como O Anjo (“O anjo, contido / em pedra / e silêncio, / me esperava. (...) Começo a esperar a morte”), Galo galo (“Grito, fruto obscuro / e extremo dessa árvore”), As peras, O quartel, entre outras, resumem a linhagem mais radical do Modernismo, de Oswald de Andrade e Murilo Mendes a João Cabral de Melo Neto: aqui estão a palavra precisa, a concisão verbal, a geometria, a força das imagens poéticas, a busca de novos meios expressivos.

Em poemas como Roçzeiral e as peças finais do volume, ele não se contenta em explodir o verso livre, mas chega ainda a fraturar a sintaxe e a própria semântica, aproximando-se de uma sonoridade pura. Em A Luta Corporal, Ferreira Gullar demonstrou o domínio impecável das técnicas poéticas, sem abrir mão do lirismo (nos Sete poemas portugueses, por exemplo), da reflexão existencial e sobre o estar no mundo.

Já em Vil Metal, que reúne poemas escritos entre 1954 e 1960, ele parece continuar nesse caminho, no poema de abertura do volume (Fogos da flora), mas logo em seguida retoma o discurso linear, aproximando-se inclusive da linguagem conversacional de Carlos Drummond de Andrade, ainda que com algumas peças inventivas aqui e ali (como Definições). É um Gullar que alterna radicalidade e referencialidade, mas que ainda trabalha num patamar elevado. Nesse tempo, houve a ruptura de Gullar com os poetas concretos paulistas (motivada pelo narcisismo do autor maranhense, cujo ego não cabia no mesmo espaço ocupado por Augusto e Haroldo de Campos), a criação do movimento neoconcreto (que ganhou vida nas artes plásticas, com Lygia Clark e Hélio Oiticica, mas que não apresentou resultados poéticos apreciáveis) e por fim o alinhamento com a esquerda stalinista, representada na época pelo antigo PCB, o “Partidão”, que inspirou as vaias a Caetano Veloso, à Poesia Concreta e a qualquer coisa que parecesse moderna (“formalismo burguês”, na linguagem de nossos comissários do povo).

Fiel à nova cartilha, Gullar aderiu a um versão cabocla do realismo socialista, em seus tristemente famosos Romances de cordel. A leitura desses poemas hoje revelam um gritante anacronismo estético e conceitual, pelo proselitismo típico de uma arte que se confunde com as tarefas de agitação e propaganda da esquerda, como ocorre em versos como esses: “o homem vem caminhando / para a plena liberdade; / tem que se livrar da fome / para atingir a igualdade; / o comunismo é o futuro / risonho da humanidade”. Esse tom panfletário permanece no livro Dentro da noite veloz (1975), onde encontramos poemas dedicados a Che Guevara e à guerrilha no Vietnã, e ainda a problemas sociais do Nordeste brasileiro.

Este talvez seja o livro de menor impacto estético na obra de Gullar, pela ênfase na abordagem ideológica, maniqueísta, dos fatos históricos do período, mas ainda encontramos aqui peças líricas e bem-humoradas como Cantada: “Você é mais bonita que uma bola prateada / de papel de cigarro / Você é mais bonita que uma poça d’água / límpida / num lugar escondido / Você é mais bonita que uma zebra / que um filhote de onça / que um Boeing 707 em pleno ar / (...) Olha, / você é tão bonita quanto o Rio de Janeiro / em maio / e quase tão bonita / quanto a Revolução Cubana”. Claro que se trata de um poema de circunstância, mas ao menos conserva o bom humor, sem o tom marcial, de banda de música, de seus poemas políticos (que fariam Fidel Castro bocejar e cair no sono, logo na leitura das primeiras linhas).

O Poema Sujo é talvez o livro de Gullar que recebeu melhor acolhida por parte da crítica (Vinícius de Morais afirmou que era “o mais importante poema escrito em qualquer língua nas últimas décadas”), mas também é um livro irregular, intercalando fragmentos inventivos com outros da mais tosca narratividade (culminando com a pérola “Quantas tardes numa tarde!”). Este foi, talvez, o último livro de Ferreira Gullar, já que os títulos seguintes, como Barulhos e Muitas Vozes, são apenas reedições de temas e formas já abordados exaustivamente pelo autor, sem acréscimo de informação nova.

O que fica da obra de Ferreira Gullar, a meu ver, é A Luta Corporal; poucos autores brasileiros da segunda metade do século XX foram capazes de escrever um livro tão forte como este. O que já é mérito suficiente para um poeta que se preze: não é qualquer um que consegue acrescentar à tradição alguma coisa nova. Já os romances de cordel, serão lidos ainda por professores universitários alinhados com a abordagem sociológica da literatura, que apresenta avançados sinais de mofo. Não faz mal: derrubaram a estátua de Stálin na Hungria, na Tchecoeslováquia e até na Albânia; um dia, ela cairá na USP também.

8 comentários:

  1. "O que já é mérito suficiente para um poeta que se preze: não é qualquer um que consegue acrescentar à tradição alguma coisa nova "


    Por que à tradição? Eu não entendi mesmo. Ruptura e tradição, esses conceitos, aparentemente assimiláveis, são confusos pra mim. Tradição é o que segue o classicismo, o da métrica e tal? E a ruptura é a escola que se opõe a isso.
    Mas tanto tempo se passou, refiro-me ao Modernismo. Será que ele já não passou a ser a Tradição, na medida em que até hoje é o que vigora?
    Desculpe a confusão. Se puder, só me explique o que é a tradição e por que o Ferreira está nela.
    ( eu dou aula de redação e a literatura ficou pra trás, pena pq era o que eu queria ter feito, mas a vida é ....)

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  2. Hilton1.2.10

    Gosto também dos poemas bananas podres I e II, além de A alegria e Aprendizado. Em breve deve ser lançado (se já não foi...) o novo livro do Gullar.

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  3. Marcos Anderson1.2.10

    Concordo. A Luta Corporal é o mais importante trabalho publicado pelo Gullar, e um dos mais significativos da poesia brasileira contemporânea (chego pensar que ele seja mais forte e radical que os trabalhos do grupo Noigandres nesse mesmo período, os primeiros anos da década de 50). Dois outros livros que não foram citados e que são também de alta voltagem na poesia do maranhense são O Formigueiro e Crime na Flora. Abraço.

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  4. Rose, a tradição (no meu modo de entender), não passa de uma sucessão de rupturas... quando Dante escreveu a Divina Comédia em italiano, e não em latim, ele fez uma ruptura; quando Goethe, na segunda metade do Fausto, mistura prosa, poesia, teatro, num gênero híbrido, ele fez uma ruptura; quando Whitman criou o verso livre, e Baudelaire o poema em prosa, fizeram rupturas; hoje, todos pertencem ao cânone da tradição ocidental, à grande literatura. Há quem entenda a tradição como conservadorismo estético, imobilismo de formas; eu a vejo como revolução permanente.

    Beso do

    CD

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  5. Hilton, gosto de várias coisas da primeira fase do Gullar (o Formigueiro e o Poema Enterrado são duas obras emblemáticas da vanguarda). Porém, ele não faz nada realmente novo há no mínimo 30 anos. Uma pena, pois foi um grande poeta, antes de ceder à tentação de ser o Pablo Neruda brasileiro. Abraço,

    CD

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  6. Caro Marcos, é verdade, o Formigueiro do Gullar é muito interessante. Crime na Flora eu não conheço, não consta em Toda Poesia. Creio que A Luta Corporal, assim como Carrossel, do Décio Pignatari (em especial o poema O Jogral e a Prostituta Negra), bem como O Rei Menos o Reino, de Augusto de Campos, e O Auto do Possesso, de Haroldo de Campos, caminham na mesma direção; porém, o poema Roçzeiral, de Gullar, naquela época, colocava de modo mais explícito a fragmentação do verso, da sintaxe e da palavra. Foi um grande poeta, em seu início literário. Abraço do

    CD

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  7. Marcos Anderson2.2.10

    Claudio, o Crime na Flora é um livro muito interessante, um poema em prosa escrito logo após a conclusão de A Luta Corporal, mas publicado apenas em 1986. Vale a pena conferir. Mudando de assunto, o que vc pensa do trabalho do Régis Bonvicino? Pretende publicar algo a respeito por aqui? Grande abraço.

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  8. Vou procurar o Crime na Flora, do Gullar. Não tenho nenhum interesse na obra de R. Bonvicino. Abraço,

    CD

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