quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

DOS DIÁRIOS DE VIAGEM DE BASHÔ (II)


Luas e sóis são viajantes da eternidade. Os anos que vêm e que vão são viajantes também. Aqueles que passam a vida a bordo de navios ou envelhecem montados a cavalo estão sempre em viagem, e seu lar é lá onde essas viagens os levam. Os homens de antigamente, muitos morreram pelos caminhos e a mim também, durante os últimos anos, a visão de uma nuvem solitária levada pelo vento me inspirou idéias contínuas de meter o pé na estrada. O ano passado dediquei a vagar pela costa. No outono, voltei a minha cabana às margens do rio e a limpei das teias de aranha. Aí me surpreendeu o fim do ano. Quando veio a primavera e houve neblina no ar, pensei em ir a Oku, atravessando a barreira de Shirakawa. Tudo o que via me convidava a viajar, e estava tão possuído pelos deuses que não podia dominar meus pensamentos. Os espíritos do caminho me fizeram inúmeros sinais, e eu descobri que não podia continuar trabalhando.

Remendei minhas calças rasgadas e troquei as tiras do meu chapéu de palha. A fim de fortalecer as pernas para a viagem, me untei de “moka” queimada. Logo a idéia da lua na ilha de Matsushima começou a apoderar-se de meus pensamentos. Quando vendi minha cabana e me mudei para o sítio de Sampu para esperar ali o dia da partida, pendurei este poema numa viga da minha choça:

a cabana de ervas secas
(o mundo tudo muda)
vira casa de bonecas

(Trecho inicial do diário de viagem Sendas de Oku, de Matsuo Bashô. Trad.: Paulo Leminski. In: Bashô, a Lágrima do Peixe. São Paulo: Iluminuras, 1983.)

2 comentários:

  1. Como isto é bonito! Pena que quase ninguém mais sabe ver e ouvir os sinais pelo caminho. Os poetas, talvez...

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  2. Um legítimo beatnik!
    É emocionante ler o relato de um poeta como Bashô, e constatar que ele experimentou sensações semelhantes ao que sinto hoje. Por exemplo, essa coisa de estar possuído pelos deuses, e não conseguir dominar os próprios pensamentos. Claro que hoje daríamos nomes mais científicos a tal fenômeno, mas no fim, é só uma questão semântica.

    Abraço, Claudio!

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