quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

CONVERSANDO SOBRE POESIA (III)

Caros, eu respeito muito o Luiz Costa Lima, a meu ver um dos maiores críticos literários brasileiros. Seu livro Mímesis e modernidade é exemplar. Ele é um leitor culto, atento e rigoroso de poesia contemporânea, assim como foi João Alexandre Barbosa. No entanto, eu discordo do que ele escreveu no jornal Folha de S. Paulo a respeito da nova edição de Paranóia, de Roberto Piva, para mim, um dos mais impactantes livros de poesia publicados na segunda metade do século XX. Claro que eu não desejo polemizar com Costa Lima, a quem respeito muito, mas apenas registrar a minha opinião, que é diferente da dele. Pois bem: li a poesia de Roberto Piva pela primeira vez no final da década de 1990, após uma conversa de bar com Ademir Assunção. Ele me fez ver que não havia mais sentido na oposição entre os leitores de Haroldo de Campos e os de Roberto Piva. Claro que há diferenças estéticas e conceituais entre ambos, mas isto não significa que, para gostar de um, seja necessário detestar o outro. Durante muito tempo, no Brasil, foi assim: ou você era adepto da Poesia Concreta, logo um inimigo mortal do Surrealismo, ou era adepto do Surrealismo, e portanto inimigo mortal da Poesia Concreta.

Talvez na década de 1960 essa oposição fosse necessária para que cada lado defendesse melhor os seus conceitos teóricos, suas poéticas, suas visões da cultura e do mundo. Hoje, porém, a polêmica entre os dois pólos, o “formalista” e o “lírico-emocional”, pertence à história da literatura, e não precisa alimentar paixões entre os leitores mais jovens. Podemos ler e gostar de Roberto Piva e de Haroldo de Campos ao mesmo tempo, termos clareza das diferenças teóricas entre eles e não tomarmos partido nenhum nessa luta pretérita. Ou ainda: tomarmos o partido da poesia, do que há de mais qualitativo na obra que ambos produziram.

Paranóia é, de longe, o melhor poema de Piva (embora eu também goste muito da Ode a Fernando Pessoa, de algumas das Piazzas, dos poemas de Ciclones e de peças isoladas de seus outros livros). A influência do Uivo, de Allen Ginsberg, nas linhas longas que se aproximam da prosa narrativa e da linguagem conversacional, é óbvia, assim como o eco das leituras que o poeta fez dos Cantos de Maldoror, de Lautréamont, dos surrealistas franceses, de Mário Andrade, Murilo Mendes e Jorge de Lima, entre outros. É um livro que permite várias aproximações intertextuais, ao mesmo tempo em que afirma a voz pessoal de Piva, sua mitologia e obsessões, em que se destacam a visão alucinada das ruas de São Paulo, com seus bares, cinemas e parques, as metáforas que misturam a religião e a obscenidade, o elogio aos narcóticos e aos estados alterados de consciência, entre outros fetiches do autor (estudados em profundidade por Claudio Willer no ensaio que integra o primeiro volume das obras completas do autor, Um estrangeiro na legião, publicado pela editora Globo).

Também é conhecida a visão do poeta em defesa da espontaneidade, do lirismo, numa palavra, da escrita automática, contra o rigor e a construção racional, pensada, da poesia (e nesse ponto está o conflito com João Cabral de Melo Neto e com a Poesia Concreta). No entanto, se lermos com atenção a poesia de Piva, e em especial o livro Paranóia, observamos que a sua escrita nada tem de ingênua, ao contrário: ela é construída (como toda boa poesia), o que nos leva crer que o seu inconsciente trabalha como um engenheiro drogado, que pode fazer loucuras, sim, mas sempre com a noção exata de proporção e medida. Poderia escrever um longo ensaio falando sobre o ritmo na poesia de Piva, sobre a visualidade explícita nas Piazzas, sobre a sua semântica, o modo como ele coordenas as linhas de cada texto, mas vou me ater a um único ponto, já que esta é uma crônica breve, e não um artigo acadêmico. Quero falar sobre a construção das metáforas na poesia de Piva.

Logo no início de Paranóia, o autor escreve: “fagulhas de lua partida precipitava nos becos frenéticos onde / cafetinas magras ajoelhadas no tapete tocando o trombone de vidro / da Loucura repartiam lascas de hóstias invisíveis / a náusea circulava nas galerias entre borboletas adiposas e / lábios de menina febril colados na vitrina onde almas coloridas / tinham 10% de desconto enquanto costureiros arrancavam os ovários / dos manequins”. O ritmo desse fragmento, que acompanha todo o poema, é o da palavra falada, mas a fanopéia recorda o conceito de imagem poética formulado por Pierre Reverdy, para quem a singularidade ou estranheza “não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas. Quanto mais as relações das duas realidades forem distantes e justas, tanto mais a imagem será forte, mais força emotiva e realidade poética ela terá”. Esse conceito, claro, deriva de Lautréamont, que falava no “encontro fortuito de um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecação”.

Marinetti expôs o mesmo princípio ao dizer que “a analogia é nada mais do que o amor profundo que associa coisas distantes, aparentemente diversas e hostis”. Tais formulações, no entanto, têm um ancestral ainda mais remoto, no maneirismo europeu — por exemplo, em Tesauro, para quem, nas palavras de Gustav Hocke, “o verdadeiro poeta é aquele que se mostra capaz de estabelecer conexões entre as coisas, ainda que sejam as mais díspares. Tal é, com efeito, a essência dos diversos maneirismos que surgiram na Europa, sob diversas denominações. (...) Na época, a discordia concors de Tesauro mereceu esta explicação na Inglaterra: ‘trata-se de uma tentativa de combinar imagens dessemelhantes ou de descobrir as analogias latentes nos objetos entre os quais, aparentemente, não há nenhuma relação mútua’”.

A oposição entre “espontaneísmo” e “formalismo” encontra aqui, de modo surpreendente, uma harmonia dos contrários... a poesia de Piva, que numa primeira leitura parece ser o oposto de qualquer maneirismo ou barroquismo de linguagem, numa análise mais atenta revela o contrário, o quanto ela se aproxima da “pérola irregular”, inclusive no sincretismo que faz entre mitos indígenas, africanos e orientais, entre diferentes tempos históricos, estilos e registros culturais, de forma paródica.

Enfim: há muito o que descobrir na poesia de Roberto Piva. Não é uma escrita simples, emocional ou fácil; é muito mais densa, elaborada e rica em recursos formais e referências do que podem supor os que não o leram com a devida atenção. Para quem quiser mergulhar nesse universo, sugiro que comece lendo Um estrangeiro na legião, que saiu pela Globo.

Roberto Piva é um dos mais interessantes poetas brasileiros da atualidade, e não podemos nos dar ao luxo de não lermos as suas obras.

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