sábado, 6 de fevereiro de 2010

CONVERSANDO SOBRE POESIA (IV)


Caros, escrevi um pequeno ensaio sobre Huidobro chamado Altazor, a demolição sísmica do texto, como uma guia de leitura para mim mesmo, na época em que comecei a ler e traduzir o poeta chileno. Esse texto foi publicado há vários anos na revista eletrônica Agulha. Relendo hoje o trabalho, quase não o reconheço, pois mudei, e muito, o meu estilo de escrever ensaios. Porém, resolvi republicá-lo aqui, na Pele de Lontra, pelo fato de não encontrar muitas referências a esse autor insólito em nossos cadernos literários, cada vez mais superficiais e ilegíveis. É preciso falar sobre Huidobro, um poeta tão essencial quanto Girondo, Vallejo e Lezama Lima para a renovação da poesia latino-americana na primeira metade do século XX.

Vicente Huidobro (1893-1948) é o Colombo da nova poesia na América Latina. Depois da renovação modernista de Rubén Darío, coube ao poeta chileno dar o passo seguinte, assimilando os recursos formais do futurismo, do cubismo e do surrealismo de maneira original e ousada. Em Poemas Árticos e Equatorial (ambos de 1918), ele incorporou as "palavras em liberdade" de Marinetti, suprimiu os sinais de pontuação, trabalhou a collage e o caligrama à maneira de Apollinaire, em grafismos icônicos que estão na gênese da poesia visual. Em Tremor de céu (1931), ensaiou um poema em prosa construído como uma seqüência de flashes, de imagens alucinadas que recordam a pintura de Chagall.

Sua obra central, no entanto, é Altazor (1931), um poema longo em sete cantos em que o poeta operou a gradual desconstrução do texto, sinalizando a dissolução do pensamento e da linguagem — e, portanto, da consciência — no caos do barbarismo tecnizado contemporâneo. Essa é uma elegia à orfandade espiritual do homem moderno, o cântico da "Queda", após o pecado original: lírica sísmica, feita de abalos e rupturas. Huidobro dedicou-se a este poema-limite, redigido primeiro em francês e depois em espanhol, de 1919 a 1931; é, assim, um work in progress desenvolvido entre as duas guerras mundiais. Alguns críticos censuram em Altazor uma suposta descontinuidade, a falta de unidade entre as partes, pela diversidade estilística; o Canto I, o mais extenso, com cerca de 700 versos, é discursivo, fluente, ao passo que nos Cantos seguintes o discurso vai sendo dilacerado, com o emprego de neologismos, palavras-montagem, onomatopéias, até a fragmentação fonética e a irrupção do "transmental" (ou zaúm) no Canto VII.

Essa aparente "desordem" na estrutura textual do poema revela, justamente, o seu princípio normativo e ideológico: a coisificação do caos, da quebra, da ruptura. Altazor, assim como Trilce, de Vallejo, e os Cantos, de Pound, é uma sucessão de epifanias, de mementos, uma montagem de ideogramas em profusão. Conforme Bernardo Ruiz, "ao longo de cada Canto se desenvolverão sete diferentes temas: no primeiro, a Queda; no segundo, a Mulher; o Suicídio é o terceiro. A Separação, a Morte e a Noite compõem o quarto Canto, enquanto o quinto descreve o Além e a consciência: o transmundo. Finalmente, os dois últimos Cantos descrevem a aniquilação dos sentidos e da consciência, quer dizer, da linguagem". Altazor tem como subtítulo "A Viagem em Pára-Quedas", indicando desde aqui o tema da viagem como queda, precipitação. A angústia do personagem, conforme Guillermo Sucre, é "a impossibilidade de uma aspiração ao absoluto", pela morte de Deus (anunciada por Nietzsche em Assim Falava Zaratustra). Em sua solidão existencial e metafísica, abalada ainda pela guerra e pela ausência de uma utopia, ele encontra refúgio na Mulher amada e posteriormente, na Morte: a dissolução, na Noite, de toda consciência. O desejo de aniquilamento, de mergulhar no Vazio original anterior à Criação (um tema caro ao romantismo alemão, de Novalis a Wagner), se manifesta esteticamente na fraturamento dos corpos verbais.

A destruição, porém, tem a sua contraparte dialética, que é a criação de uma nova linguagem _ e, portanto, de uma nova realidade _ a partir da remodelagem das partículas semânticas, numa quase que nova língua. Essa tendência inicia-se no Canto V ("Não há tempo a perder”), em que Huidobro transforma substantivos em verbos e verbos em substantivos; altera a função e o gênero dos objetos e das palavras; cria neologismos pela amálgama de termos (“mandolina” + "ventania" = "mandonia"); tece seqüências rítmicas de paronomásias a partir dessas recombinações semânticas (“La goloniña/ La golongira/ La golonlira" etc) ; e introduz, já no Canto IV, o tema "zaúm", à maneira de Khlébnikov: "Uiu uiui/ Tralalí tralalá/ Aia ai ai aaia i i". O Canto V dá continuidade a essa progressiva dilapidação do sentido nas rimas monocórdicas da seção central do Canto: "Molino de viento / Molino de aliento/ Molino de cuento/ Molino de intento".

Porém, é nos Cantos VI e VII que a dissolução/reconstrução verbal chega a seu ponto máximo. Aqui, Huidobro realiza plenamente o ideário do Criacionismo, que ele formulou pela primeira vez no manifesto Non Serviam, lido no Ateneo de Santiago em 1914: “Podemos criar novas realidades num mundo nosso, num mundo que espera sua fauna e flora próprias". Das ruínas da lógica verbal fraturada, ele ergue um novo edifício, estranho, irreal, inquietante, desafiadoramente belo. Essa arquitetura prometeica tem início no Canto VI. Essa seção do poema sugere uma irrupção de imagens, de ideogramas justapostos ("Vento flor/ seda cristal lento seda"). O discurso é abolido; não há verbos nem sintaxe; o poeta pulveriza a relação causa-efeito e a sucessão início-meio-fim, usando de uma lógica sincrônica; não há sujeito, nem ação, nem objeto. O texto todo é construído como uma tapeçaria, um mosaico ou mandala, em que o encadeamento de substantivos, de idéias-coisas recriadas ("cristal olho cristal seda cristal nuvem") oferece a contemplação do sagrado: a epifania.

Esse aspecto de eternidade é reforçado pela ausência de qualquer noção de espaço-tempo. Huidobro, "antipoeta e mago", faz da poesia a sucessora da religião como mediadora entre os homens e o eterno. O Canto VI é construído numa rigorosa estrutura musical. Conforme René da Costa, "ao pronunciá-lo, percebemos padrões rítmicos da poesia tradicional (. . .). O octassílabo e a repetição de fórmulas características do romance servem como unificadores do ritmo, criando a ilusão de poesia". Essa “ilusão” refere-se, sem dúvida, ao efeito paródico criado pelo poeta, que, ao adotar uma melodia de inspiração folclórica, insinua um lirismo impossível em um texto tão abstrato quanto este. De todo modo, essa seção do poema, se é "estranha", "bizarra", ainda "parece" poesia. O golpe de misericórdia é dado no Canto VII, em que Huidobro destrói a ilusão lírica e disseca a palavra em fonemas e letras, recombinando-as em neologismos impronunciáveis. Neste Canto, Huidobro se aproxima dos experimentos dadaístas e da linguagem transmental, ao mesmo tempo em que, pelo rigor arquitetônico na disposição espacial, pelo uso do princípio do ideograma na construção das palavras-valise e pela tessitura sonora polifônica, antecipa processos da poesia concreta.

O Canto VII começa com um jogo de vogais que recorda a onomatopéia e a linguagem das crianças: "Ai aia aia/ ia ia ia aia ui". Aqui, ele utiliza apenas três letras (a, i, u), combinando-as de quatro modos diferentes (Ai, aia, ia, ui). Em seguida, prossegue a ladainha infantil, similar à linguagem das histórias em quadrinhos: "Tralali/ Lali/ Lalá". Chamar isto de poesia, para alguns, seria uma afronta. De fato, há aqui uma bufoneria paródica que dessacraliza a "seriedade" da poesia, pela incorporação/transformação do banal, como Joyce faria, mais tarde, no Finnegans Wake. Após essa "introdução", o texto evolui numa seqüência de palavras-montagem construídas a partir de fonemas de substantivos e sons abstratos inventados pelo autor: "monluztrela" (montanha + luz + estrela), "eternauta" (éter + nauta), "ululacente" (ulular + sufixo ente) etc. O próprio nome "Altazor", diga-se de passagem, é uma palavra composta: "alto" + "azor" (açor). O final do poema remete ao tom infantil do início: "Lalali/ io ia/ i i i o/ Ai a i ai a i i i i o ia", em que o espaçamento entre as vogais e sílabas indica as pausas na leitura. Apesar da aparente incomunicabilidade do texto, que não possui qualquer nexo lógico em termos cartesianos, o que surpreende é a sua capacidade de oferecer múltiplas possibilidades de leitura. É uma obra aberta que, em sua extrema concisão (apenas 65 linhas, divididas em duas páginas), concentra o máximo de informação com o mínimo de recursos.

Em Huidobro, como em Joyce e Cummings, há uma inflação de significados. Esse aparente paradoxo do comunicável / incomunicável, aliás, é o emblema de toda a poesia de invenção, desde Mallarmé até os dias de hoje. Como sempre, o “incomunicável” torna-se "comunicável" após ser ingerido/digerido pela indústria cultural e retransmitido, diluído, como produto de cultura de massa ("mó, num pa tro pi"). O tabu se transforma em totem.

2 comentários:

  1. ... nem preciso dizer que Huidobro é mais interessante do que Pablo Neruda, e muito, muito, muito, muito mais interessante do que Nicanor Parra...

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  2. Claudio, tem um ensaio do Octavio Paz no Convergências, publicado pela Rocco, sobre Huidobro. Muito interessante!!!

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