Trabalho a crueldade
pelo lado da exuberância.
Como instigando a carne
à vernação das goivas.
* * *
A chacina é uma indução
à espera do seu tempo.
Sobre esse propósito
estabeleço-me unívoco.
E onde cães e homens
disputam a carniça
à lisura dos ossos
inscrevo a consolação.
* * *
Adestramos na carne
os estrepes do horror.
E pela elocução do medo
inferimos da consolação:
só o ferro
remirá em si a ferida.
* * *
Vi o relâmpago disposto pelas traves
como uma plaina ao desvario sobre as córneas.
Os ganchos com a sua incisiva
mecânica de clarões.
Vi o cutelo. E a percussão
era uma cegueira decantada.
(Do livro Disrupção. Maia: Cosmorama, 2008)
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
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Disrupção, do poeta português Jorge Melícias, é uma reunião dos sete livros de poesia publicados pelo autor, desde Iniciação ao Remorso (1998) até Agma (2008). A lírica de navalhas desse poeta singular é substantiva, elíptica, fragmentária, com uma secura e precisão que colocam o autor na tradição de Carlos de Oliveira e João Cabral de Melo Neto (embora a temática da crueldade remeta à poesia expressionista alemã, e em especial a Gottfried Benn). Ele não precisa de rebuscadas metáforas nem dos apelos a um fácil subjetivismo para compor o seu discurso, centrado na força semântica das palavras. É um poeta que sabe manejar muito bem o seu instrumento, e que está entre as vozes mais consistentes da poesia praticada hoje em Portugal.
ResponderExcluirEstimado Claudio,
ResponderExcluirMelícias é de facto um dos excelentes poetas da actual poesia portuguesa, sem dúvida. Quanto à tradição, se nos é permitido aqui falarmos em tradição, pela minha parte vê-lo-ia mais na linha estética de um Luís Miguel Nava ( a violência da linguagem,arrojada e expressiva, bem como certas imagens ( em vários casos até muito parecidas com as do Nava ) apontam para isso. Mas, embora o discurso seja bastante diferente, também poderíamos ali descobrir rastos de um Herberto Helder.
No que diz respeito à influência do expressionismo alemão, quer esta venha da literatura ( o universo cruel e clínico de Benn encontra- se ali bem patente [ Benn é um dos poetas preferidos do Melícias] ), quer venha do cinema, é evidente na obra deste poeta. E isto ele próprio o reconhece numa entrevista dada ao poeta Walter Hugo Mãe.
Mas também se descobre que Melícias leu de Quincey
Com um abraço:
Luís Costa
Caro Luís, grato pelo comentário!
ResponderExcluirAbraço do
Claudio
Cláudio!
ResponderExcluirq maravilha encontrar teu blog! Seleção exemplar de poemas. Já linquei nos favoritos e na barra do meu blog! um abração