quinta-feira, 29 de outubro de 2009

DIÁRIO DE UM ANTICRÍTICO

A crítica literária sempre cometeu notáveis equívocos. Saint-Beuve, por exemplo, censurou a "imoralidade" de Madame Bovary, de Flaubert, e das Flores do Mal, de Baudelaire... no Brasil, Antonio Candido, em sua Formação da Literatura Brasileira, exclui o barroco e o arcadismo, como se as nossas letras tivessem como marco fundador o romantismo (apenas porque esse movimento artístico coincidiu com a proclamação da independência, em 1822). Alfredo Bosi, em sua História Concisa da Literatura Brasileira (livro que não acho desprezível, num todo), esquece de incluir Sousândrade, de longe o mais inventivo de nossos poetas românticos, e Pedro Kilkerry, simbolista original de linha mallarmeana. Wilson Martins, autor da História da Inteligência Brasileira, faz pouco caso de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, preferindo o chatíssimo Vila dos Confins, de Mário Palmério. Roberto Schwartz (o mesmo que não soube ler o poema Pós-tudo, de Augusto de Campos), em seu estudo de Machado de Assis, submete a leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas a um viés sociologizante marxista, aliás ultrapassado há muito tempo, desde antes da queda do Muro de Berlim; isso sem falarmos das barbaridades cometidas por certos críticos contemporâneos (vide revista Sibila). Porém, a margem de erro da crítica literária não é um fato recente: já na década de 1870, quando José Veríssimo e Sílvio Romero criam os alicerces de nossa crítica (há um notável ensaio de Benedito Nunes sobre isso, chamado Crítica literária no Brasil, ontem e hoje), os erros de avaliação não eram poucos, nem menos assombrosos. Leiam o que José Veríssimo (que acertou a mão em vários estudos etnológicos, literários e históricos e soube avaliar a importância de Machado de Assis, desprezado por Sílvio Romero) escreveu a respeito de Cruz e Sousa: “Nunca ousei dizer que em Cruz e Sousa não houvesse absolutamente matéria de poesia, nem sensações e sentimentos, ideação bastante, dons verbais, capazes de fazer um poeta. Admiti sempre que os havia, mas o que não senti então, além da música das palavras, do dom da melodia, que é comum aos negros, era a capacidade de expressão, e essa capacidade escondia-me a sua inspiração. Ou ele não tinha de fato nada para dizer ou não o sabia de todo dizer, e esta sua inaptidão de expressão artística parecia-me chegar nele à inibição patológica. O caso que, com certas restrições, continua a ser exato, é curioso como fenômeno de psicologia étnica. Os seus sonetos, senão lhes vamos mais fundo que ao sentimento literal, não significam coisa alguma. (...) Constam apenas de palavras gramaticalmente arrumadas, sem sentido apreciável, ou tão escuro ou sublimado que escapa às compreensões miseráveis, como a minha”. (Fonte: José Veríssimo: Teoria, Crítica e História Literária. Seleção e apresentação de João Alexandre Barbosa. São Paulo: Edusp, 1978.) Alguém deveria organizar uma antologia só com as “pérolas” de nossos críticos literários... com certeza, seria um livro engraçadíssimo...

Besos,

CD

10 comentários:

  1. ... claro que há críticos literários inteligentes em nossa tradição literária, autores do porte de João Alexandre Barbosa, Benedito Nunes, Luiz Costa Lima, Leda Tenório da Mota, Aurora Bernardini, além de poetas-críticos como Haroldo de Campos (A Arte no Horizonte do Provável, para mim, supera toda a obra de Candido); infelizmente, porém, ainda predomina, na universidade, uma tendência sociologizante incapaz de ver a poesia como construção estética, enquanto na imprensa diária críticos superficiais e despreparados confundem crítica com elogio aos amigos e boicote aos demais. Por essas e outras, a internet surge como um espaço muito mais atualizado, pluralista e eficiente para veicular e discutir o que há de mais elaborado na poesia brasileira de hoje. Vide sites como Germina, Cronópios, Errática, Popbox, Zunái, entre outros...

    ResponderExcluir
  2. Anônimo29.10.09

    caríssimo claudio,
    não estou querendo fazer bairrismo... realmente vila dos confins é um livro menos interessante, mas do mário palmério, eu gosto bastante de "chapadão do bugre", muito bem escrito, pelo menos. mas um escritor uberabense que infelizmente é pouco lido, é campos de carvalho, que eu pessoalmente acho genial, campos de carvalho tem suas fontes em lautréamont, de quem se dizia irmão, classificam ele como surrealista (mas vc sabe de q surrealismo estou falando, ou q é possível falar dentro do que preferimos), enfim, humor negro talvez seja uma referência melhor, talvez vc já conheça, o nelson de oliveira e o claudio willer já escreveram sobre ele, e ele morou a maior parte do tempo em sp, onde morreu (acredito que ele odiava essa cidade onde moro, e onde ele nasceu). abração! nícollas

    ResponderExcluir
  3. Nicollas, sem dúvida, Campos de Carvalho é um autor muito interessante!

    Abraço do

    Claudio

    ResponderExcluir
  4. Oi, Claudio!

    Lendo a sua postagem, lembrei-me de um trecho de Rilke em Cartas a um jovem poeta no qual diz que as críticas literárias:

    "são considerações parciais, petrificadas, que se tornaram destituídas de sentido em sua rigidez sem vida, ou são hábeis jogos de palavras, nos quais hoje uma visão sai vitoriosa, amanhã predomina a contrária".

    Um prazer conhecer seu blog e ler seu texto. Realmente a crítica precisa se aperfeiçoar...
    Abraços.
    Jefferson

    ResponderExcluir
  5. Crítica:

    Falando de critica, é-me por exemplo suspeito que um júri de três pessoas (ou mais) tenha a divina potencialidade de dizer: este livro, este poeta, ou esta obra é que merece receber tal prémio, e não os outros.
    Por que tábuas ou divinas leis se regularão estes tais homens?
    Interessante seria perguntar também aos leitores o que pensam disso. O problema, lá está, é que a maior parte não “ pensa “, aceita simplesmente o que a crítica lhe impõe. E um poeta premiado será, certamente, um bom poeta, um potencial poeta que vale a pena ler... uma boa publicidade. E, claro, as editoras ficarão muito contentes com isso e aplaudirão
    De facto há homens (críticos) com poderes divinos que talvez lhes tenham sido outorgados por algum profeta bíblico, ou por alguma tese de doutoramento em literaturas...
    Evoé!
    Que seja assim: aos críticos o que é dos críticos, aos poetas o que é dos poetas.
    No entanto, por vezes, estou em crer que quem faz de certos poetas “ grandes “ poetas, pelo menos num certo momento do tempo, não serão tanto esses mesmos poetas (a sua poesia), mas sim, sobretudo, os seus críticos amigos ou adoradores. A verdade é que um poeta de quem a crítica, sobretudo a bem encartada e adoradora, se esqueça, ficará talvez para sempre esquecido nas estantes empoeiradas de alguma biblioteca ou livraria...
    Todavia fica-nos uma satisfação: os grandes poetas ( ou escritores ) transcenderam sempre a critica costumeira. Por isso ficaram no tempo e para lá dele.

    Um abraço.

    Luís Costa

    ResponderExcluir
  6. Caro Luís, tudo bem? Infelizmente, a crítica literária brasileira, nos cadernos da imprensa diária, muitas vezes segue o marketing das grandes editoras ou de tendências literárias que possuem maior poder de influência na universidade e na mídia (mas que nem por isso apresentam obras de qualidade acima da média, bem ao contrário...). O mesmo princípio vale para Flips, Flaps, Flups e concursos literários como o da Petrobrás, que premiam sempre os mesmos nomes. O que eu vejo como animador é o fato de surgirem novos estudiosos de literatura brasileira nas universidades, desvinculados da visão sociológica e interessados em estudar o contemporâneo com olhos livres, abertos à invenção e à experimentação. Claro, ainda são vozes isoladas, não-hegemônicas, mas que já fazem uma boa diferença... Faz falta um jornal independente de crítica literária, que não se limite a publicar os press releases da Inimigo Rumor... mas um dia chegaremos lá! O abraço do

    Claudio

    ResponderExcluir
  7. Jefferson, parece que o Rilke escreveu isso após ler a Folha de S. Paulo ou a Veja, né? (rsss)... abraço,

    CD

    ResponderExcluir
  8. "Não conseguimos enxergar o que está demasiado perto nem o que está demasiano distante."

    (Schopenhauer via J.L Borges)


    "Não temos condições de aferir o valor estético da poesia de nosso tempo. Podemos dizer apenas se é ou não autêntica. E isso já é o suficiente."

    (T.S. Eliot)


    "A grande obra de arte é um presente para o futuro."

    (Camus)




    Analisar criticamente as obras de arte do nosso tempo é um trabalho perigosíssimo. Admiro quem tem essa coragem! É tarefa equivalente a atirar uma flecha em meio à penumbra e atingir o centro do alvo. Não é nada fácil. Mas o arqueiro Zen, mestre de Eugen Herrigel, conseguiu. E Claudio Daniel muitas vezes também consegue.

    ResponderExcluir
  9. Cláudio, este post vai dar e já deu o que falar! É incrível, como as pessoas se vestem de ofensas pessoais e saem para o ataque como se fosse uma guerra velada. Espero que tudo fique no campo do intelecto, bobagens como o ataque da Sibila, deixa tudo um pouco mais raso... Abs, Feliz Aniversário! p.s. adorei os "contares" sobre família antiga, sobre pais e formação.

    ResponderExcluir
  10. Sônia, tudo bem? Pois é, uma coisa é discussão intelectual por meio de argumentos, outra coisa são ataques pessoais grosseiros, que recordam os programais de televisão do Ratinho... o site que você menciona é especializado na calúnia e difamação de autores respeitáveis como Armando Freitas Filho, Virna Teixeira, Horácio Costa e até Haroldo de Campos já foi atacado pelo sr. Régis Bonvicino. Mas a Sibila não é caso de crítica literária, e sim de investigação psiquiátrica. Beso grande do

    Claudio

    ResponderExcluir