sábado, 31 de outubro de 2009

DIÁRIO DE UM ALFARRABISTA

Caros, confesso que tenho algumas preciosidades na minha biblioteca, entre elas a Caixa Preta e os Poemóbiles, de Augusto de Campos, a primeira edição de Poesia Russa Moderna e várias coleções de revistas literárias dos anos 70 para cá, inclusive a Código, que era editada por Erthos Albino de Souza em Salvador, Bahia. Para quem não sabe, essa foi uma das principais revistas de poesia de vanguarda, tendo publicado autores como Décio Pignatari, Júlio Plaza, Pedro Xisto, Paulo Leminski, Lenora de Barros, José Lino Grunewald, entre muitos outros poetas e artistas plásticos. O número 5 da revista, publicado em 1981, traz um belo dossiê dedicado a Augusto de Campos, com poemas, traduções, fotos e uma entrevista com o poeta, que lida hoje permanece viva, instigante — e atual. Numa das perguntas, o entrevistador, J. Jota de Moraes, dispara à queima-roupa:

“Nos cursos de Letras de muitas de nossas universidades, a sua produção — junto com a de outros integrantes do movimento concreto — costuma ser vista com muita reserva. Alguns chamam-na de formalista, outros de alienada; outros, ainda, são de opinião que, ao se preocupar excessivamente com a imagem, sua poesia consegue apenas descartar-se da palavra, em uma espécie de escapismo. O que acha desse quadro?”

Augusto: Alienação e formalismo são palavras-senha que identificam uma concepção maniqueísta, pseudo-marxista, e na verdade tributária do stalinismo cultural. Infelizmente, essa é a mentalidade dominante em algumas áreas de letras universitárias. Uma orientação sociologizante, bem educada mas desatualizada, a que veio somar-se o sentimento de ‘má consciência’ aguçado pelos anos de repressão no Brasil, criou uma indisposição pretensamente ‘ideológica’, nessas áreas, contra a poesia de vanguarda. Esta é tida como escapista por não falar diretamente da realidade social brasileira e não proporcionar aos regentes das nossas letras a catarse emocional necessária para aliviar as suas consciências de burgueses privilegiados num país subdesenvolvido. A música popular foi palco de idênticos preconceitos. Em 68, essas áreas universitárias eram, em peso, contra Caetano e todos os baianos — estrangeiros e a favor de Edu Lobo e Vandré, com suas senhas violeiro-boiadeiras. Quando Caetano foi preso, caíram do cavalo e puseram a mão na consciência. Era tarde. Oswald viu (numa tese que ninguém ouviu, A CRISE DA FILOSOFIA MESSIÂNICA): ‘O inexplicável para críticos, sociólogos e historiadores, muitas vezes decorre deles ignorarem um sentimento que acompanha o homem em todas as idades e que chamamos de constante lúdica. O homem é o animal que vive entre dois grandes brinquedos — o Amor onde ganha, a Morte onde perde. Por isso, inventou as artes plásticas, a poesia, a dança, a música, o teatro, o circo e, enfim, o cinema. Ainda uma vez hoje se procura justificar politicamente as artes, dirigi-las, oprimi-las, fazê-las servirem uma causa ou uma razão de Estado. É inútil.’ E até Mário de Andrade viu (carta a Drummond, 16.02.45): ‘O intelectual, o artista, pela sua natureza e pela sua definição, mesma de não-conformista, não pode perder a sua profissão, se duplicando na profissão de político’ (...). Quanto à acusação de eu me descartar da palavra, por causa da preocupação com a imagem, é mais um preconceito, neste caso de índole literária. São raros os poemas em que não uso palavras. com os recursos visuais e a concisão vocabular, penso, ao contrário, valorizá-las, restituir-lhes o seu vigor original, em vez de diluí-las em palavrório frouxo. A minha poesia é — se quiserem — uma poesia de palavrões. LUXO. LIXO.”

7 comentários:

  1. Sempre foi difícil estudar o que é de vanguarda ou o que é contemporâneo a nós mesmos, ou o que está presente para nós. Carecemos de um pensamento crítico liberto dos teoremas e dos roteiros sócioconstritores em muitas instituições universitárias. Mas a coisa está mudando. Tem-se estudado a poesia feita em finais do século 20 e uma atenção interessada se volta para os autores de hoje.

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  2. Susanna, sim, o quadro está mudando, graças a pessoas como você, a Maria Esther Maciel, o Roberto Zular, o Antônio Vicente Seraphim Pietroforte e outros professores, não só no eixo Rio-São Paulo-Minas, que estudam o contemporâneo com novos olhos. Porém, o mofo sociológico ainda impera, infelizmente (espero que não por muito tempo). Beso,

    CD

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  3. Hilton1.11.09

    E uma universidade como a Unicamp? Tenho conversado com muitas professoras de literatura de rede de ensino pública. É impressionante o desconhecimento da poesia contemporânea! É por isso que novos leitores de poesia dificilmente aparecem.

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  4. ... caro Hilton, o problema da Unicamp é mais "sibilante", digamos assim (rsss)... abraço,

    CD

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  5. Acredito que, em parte, a solução seja a mesma encontrada por Augusto: a criação de uma poética - que a meu ver é atemporal - aliada à formação de uma crítica dessa poética - que nem de perto é vaidosa de si, e ao mesmo tempo bem elaborada, ciente de suas preciosidades. Longe da promoção gratuita da poesia contemporânea, mas agindo de forma exata e séria, há poetas-críticos que contibuem para a discussão, enquanto a poesia vai sendo testada, conquistando céus e solos. Como por exemplo, o editor desse blog: poeta admirável e crítico responsável. Abraços!

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  6. Caro Wilson, concordo plenamente quando você fala da "criação de uma poética - que a meu ver é atemporal - aliada à formação de uma crítica dessa poética". Esse é o caminho para evitarmos a crítica impressionista, do tipo "gostei, não gostei". É preciso que o crítico fundamente suas escolhas e recusas com argumentos de uma poética, claro que sem a pretensão de ser dono da verdade. É o caminho mais honesto, sincero e rigoroso, esteticamente falando, a meu ver: adotar critérios claros em vez de desconversa e papo-furado. Abraço,

    CD

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  7. Acho interessante essa discussão sobre a finalidade da arte. Quando você institui à arte um fim externo a ela mesma, como um exclusivamente político, você a reduz a um mero instrumento. E, nesse caso, não tem mais por que assistir a um filme ou ler poesia em vez de escutar o discurso político, diretamente (exceto pelo fato de que na arte ele fica, digamos, adocidadinho)...

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