segunda-feira, 27 de setembro de 2010

UM ENSAIO DE AURORA BERNARDINI

Tanto para o Evangelho segundo Jesus Cristo (José Saramago, 1991) quanto para A Glória ou “O Evangelho segundo Judas” (Giuseppe Berto, 1980, conhecido no Brasil por ter escrito o roteiro de Anônimo Veneciano e por ter sido o auto de O Mal Obscuro , Ed. 34), os episódios da vida de Cristo, tais são conhecidos por quem foi criado na cultura judaico-cristã, servem de estrutura portante natural aos relatos, cabendo ao leitor não o trabalho de memorizar a seqüência dos fatos para não perder o fio da estória, mas o prazer de reconhecer acontecimentos já sabidos nas circunstâncias estratégicas tecida pelos autores e, o que é mais importante, de se surpreender com a interpretação que é possível dar aos fatos assim dispostos.

Nesse sentido, as diferenças entre os dois evangelhos são poucas, diante das coincidências, mas inclusive devido ao ponto de vista e ao fato do narrador adotado formalmente (em Berto é Judas, em Saramago é uma terceira pessoa), elas existem e são basicamente as que seguem.

Não há praticamente em A Glória indagações quanto aos desígnios de Deus pai, nem descrições ou conjeturas quanto à vida, à culpa e à morte de José, que em Saramago ocupam capítulos inteiros. No que se refere a José, sua atuação é extremamente reduzida, em Berto. Contrariamente a Saramago, tendo ele casado com Maria quando essa já havia concebido ao filho, seu despeito revelou-se ao chamá-lo Jesus e não Emanuel, como tencionara.

Não há passagens amorosas no romance de Berto, nem entre José e Maria, nem entre Jesus e Maria Madalena. A Maria, enquanto mãe, é atribuída a origem do complexo de superioridade do filho que, agindo no subconsciente do jovem, libertaria forças inesperadas.

A condição de Jesus, quanto à família, em Berto, é de orfandade. “Quem me segue e não odeia seu pai e sua mãe, e a mulher e os irmãos, e mesmo sua própria vida, não pode ser meu discípulo”, é um dos preceitos que ele lembra em suas primeiras pregações.

Já em Saramago, Maria tem uma personalidade marcada, não é apenas função da vida do filho.

O que realmente importa na obra dos dois autores são as conclusões a que os evangelhos permitem chegar, não somente enquanto versões de “Vida e Obra de Nosso senhor Jesus Cristo”. São conclusões às vezes tão radicais que levam a discutir as questões mais fundamentais de nossa cultura. É a algumas delas que vamos, agora.

Lembro-me da inquietação existencial constelada de dúvidas de minha geração, que tentava remir mergulhando nas argumentações dos grandes clássicos – Dostoiévski, por exemplo. Para uma delas, de primeira grandeza, o equacionamento, se não propriamente a resposta, vinha do discurso de Ivan Karamázov, resumidamente assim: “Não se trata de entrar aqui no mérito da existência ou não de Deus. Se trata do seguinte: se este é o mundo que Deus permitiu que existisse, eu o recuso, devolvo o bilhete”. Dostoiévski, como se sabe, embora por Ele atormentado (sic) durante a vida inteira, nunca chegou a negar a existência de Deus. Ingmar Bergman, conforme também se sabe, faz com que uma das personagens de O Sétimo Selo assim se manifeste: – “os homens pegaram seus medos e deram-lhes o nome de Deus” – e, mais tarde, em sua entrevista aos Cahiers du Cinema, em 1969, ele mesmo depõe:“Depois que me libertei da idéia de Deus, tudo ficou mais fácil para mim. Agora estou tranqüilo”.

“Não há mais grandes valores, pois seus eixos, que são as grandes crenças, com a morte de Deus, deixam de existir”, dizem os pós-estruturalistas, retomando Nietzsche. Deus não existe. Nesse mundo sem Deus, tudo, de fato, é permitido, e o que não o é, não o é graças às leis que agora governam os homens e reprimem a animalidade instintiva à qual a maioria deles se reduziu, ou devido ao medo da culpa, que a minoria continua sentindo, e ao que se costuma dar ainda o nome de “consciência”. Mas o que é esse Medo e o que é essa Culpa que o homem ainda não totalmente bestializados não pode deixar de ter? É aí que entra o livro de Saramago. O Medo e a Culpa (e o medo da culpa) são tão próximos à idéia de um deus virtual que ainda continua condicionando nossa vida, que tanto vale partir - sem tanta especulação e conforme cabe a um evangelista como Jesus Cristo - da premissa que Deus existe sim, ou melhor, que Deus é, tal como o Diabo também é, e um não é sem que seja o outro. Mas, como Jesus descobre que o Diabo não é necessariamente o mal, e que seus papéis ora são invertidos, ora são entrelaçados, mas sempre sendo um a conseqüência do outro? Através do sentimento da Culpa, não a culpa genérica do pecado original, que essa é por demais desgastada, mas de uma culpa concreta que cada um carrega ou herda, fruto de um ato inevitável. Assim se configura o beco sem saída da existência, onde Deus aparenta deixar o homem livre só para poder castigá-lo, onde o homem é, mais do que o instrumento, o joguete de Deus. Se em Dostoiévski o homem resgatava sua culpa com a expiação, aqui a única libertação da culpa é a morte, à qual o próprio filho de Deus aspirava, para que se finde o jogo, aqui está a trama, que com as outras imprevisíveis tramas tende apenas a fazer com Deus continue sendo.

(Trechos do ensaio O Evangelho segundo Jesus Cristo e o Evangelho segundo Judas, de Aurora Bernardini. Leia o texto integral na edição de outubro da Zunái.)

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