quinta-feira, 30 de setembro de 2010

UMA HOMENAGEM A ROBERTO PIVA

“Os poetas são malditos mas não são cegos, eles enxergam com os olhos dos anjos”. Essa frase luminosa revela algo da poética de Roberto Piva. Em certo sentido, Piva compartilha da tradição dos malditos (Sade, Lautréamont, Rimbaud, Baudelaire, poetas beatniks) tanto quanto da magia visionária e do êxtase xamânico (Mircea Eliade). Sua poesia é visionária na medida em que o poeta se faz vidente, buscando sempre o desregramento de todos os sentidos. E maldita porque nunca se conforma com as regras sociais, sendo justamente uma forma transgressiva de romper com a normalidade.

Poeta que vislumbra brechas e horizontes, Piva é criador de sonhos, visões e devaneios. As suas visões são originalíssimas. Como dizia o filósofo Gilles Deleuze, o artista é criador de perceptos e afectos. Ele cria blocos de percepção e de sensação que se erguem como monumentos gigantescos. E a originalidade de Piva, no meu ponto de vista, reside no fato de que sua poesia instaura perceptos e afectos na realidade mundana. A realidade se transmuta nos seus gestos. É nesse movimento de “mutação das formas” no plano das significações e dos símbolos que vejo a potência da poesia de Piva dentro do cenário da literatura brasileira contemporânea.

Como o próprio poeta declara num dos seus poemas do Ciclones:

a poesia mexe
com realidades não-humanas
do planeta
profecias
espíritos animais
vidência
estrela bailarina
lugares de poder
fogo do céu

Nos seus últimos livros, Ciclones e Estranhos sinais de Saturno, pressentimos a força dos perceptos que se ancoram numa dimensão ecológico-existencial cujo domínio ultrapassa o mundo dos seres humanos. A poesia se torna presença totêmica, epifania de um ser sagrado que fala pelos orifícios dos vegetais e que escorre nas realidades não-humanas.

Jurema preta

Sou aluno
das árvores
alma elétrica
nas veredas mais secretas
Catimbó sonâmbulo
& seus palácios
meu crânio virando brasas
desfolhando meu coração
mananciais transfigurados
na
memória

A propósito dessas “realidades não-humanas”, podemos considerar os afectos como “devires não-humanos do homem” enquanto “os perceptos (entre eles a cidade) como paisagens não-humanas da natureza”. A arte busca a expressão dessas realidades por meio da criação de perceptos e afectos, enquanto a filosofia o faz por meio da criação de conceitos. No fundo, ambas comungam de um mesmo esforço de transcendência: são criadoras no sentido de uma gênese epistemológica – esse ato dificílimo de transfiguração do real. E o que vemos nas obras-de-arte são blocos de sensação e de percepção, os quais segundo Deleuze, se repetem de modo rítmico. São aqueles ritornelos que aparecem no canto dos pássaros e se repetem para constituir o seu próprio habitat. Ritornelo “é um jorro de traços, de cores e de sons, inseparáveis na medida em que se tornam expressivos...”. Desse modo, os pássaros são vistos como verdadeiros artistas. Um poema, uma dança e uma música são compostos por fragmentos rítmicos ou ritornelos que cristalizam agenciamentos existenciais. É nesse sentido que se diz que o artista cria um universo de afectos e perceptos. No caso específico de Piva, são aqueles perceptos criados a partir das imagens do Sonho e de uma Natureza convulsiva.

O poeta mobiliza “máquinas desejantes” – para usar uma expressão cara à filosofia deleuziana – e as conecta com outras máquinas num fluxo contínuo infinito. Costura um curto-circuito de fluxos, uma imensa usina de máquinas. Desde a máquina-ânus até a máquina-boca, passando pelo seu corpo, mas também atravessando outras esferas, costurando os objetos parciais de seu desejo. Toda máquina desejante corta, extrai e se conecta funcionando como uma produção. Nesse processo de sínteses e disjunções maquínicas, o que se verifica não é apenas a zona indefinida de uma região denominada inconsciente, mas a produção material do inconsciente. Essa mesma produção é social, libidinal e sígnica. Trata-se de uma mesma produção: a produção social, a produção dos desejos e a produção da linguagem.
(Leia a íntegra do ensaio de Chiu Yi Chih e um poema dedicado ao autor de Paranóia na edição de outubro da Zunái.)

Um comentário:

  1. Celso Vegro30.9.10

    Prezado prof. Claudio Daniel
    Magnífico ensáio que só faz aumentar a curiosidade com o próximo número da ZUNAI.

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