domingo, 12 de setembro de 2010

CÂNONE E ANTICÂNONE (I)


Mário Faustino (1930-1962) foi um dos maiores poetas-críticos de nossa história literária. Na década de 1950, dirigiu a página Poesia-Experiência, no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, que é um marco em nosso jornalismo literário. Seus artigos, breves e densos, escritos numa linguagem objetiva, fazem uma releitura inteligente da poesia brasileira, enfocando os seus autores mais inventivos, de Gregório de Matos a Augusto de Campos, além de poetas de outras latitudes que na época ainda eram pouco lidos e estudados no Brasil, como Stefan George, Jules Laforgue e Tristan Corbière. Faustino também foi excelente tradutor, e verteu para o português, entre outros autores, Ezra Pound. Como crítico, Mário Faustino foi sempre parcial, na melhor linhagem baudelairiana: o poeta deve descer do muro, tomar partido, dizer aquilo de que gosta e aquilo de que não gosta, sem meios termos, fiel àquilo em que acredita. É uma questão de sinceridade, não apenas no domínio da ética, mas também no da estética.

Mário Faustino tinha raro domínio das técnicas de versificação e apurada sensibilidade musical, como demonstram os poemas de seu único livro, O Homem e Sua Hora, mas ele foi contemporâneo dos poetas concretistas e estava engajado na saga de renovação das formas poéticas, ainda que não aderindo, integralmente, ao Plano-piloto da Poesia Concreta. Sua atitude em relação a esse movimento foi de respeito e diálogo intelectual, mas ele buscava outras possibilidades de invenção estética, que não chegou a desenvolver plenamente, devido a sua morte prematura, num desastre aéreo (ele foi a Cuba, como jornalista, para entrevistar Fidel Castro). Podemos apenas adivinhar o que ele teria feito se vivesse mais tempo lendo o seu Marginal Poema 15, que ainda hoje soa estranho, dissonante, moderno. Mas o que nos interessa aqui é falarmos, brevemente, do Mário Faustino crítico.

A editora Companhia das Letras teve a ótima idéia de publicar em 2003 as suas obras completas, em três volumes (ou quase completas, porque faltou incluir as traduções): O Homem e Sua Hora (poesia), Artesanatos de Poesia e De Anchieta aos Concretos (crítica literária). Em Artesanatos de Papel, estão reunidos os seus textos sobre poetas estrangeiros, como Edgar Allan Poe, Théophile Gautier, Walt Whitman, Baudelaire, Apollinaire, Tristan Tzara, entre muitos outros, lidos à maneira poundiana, com atenção especial à informação nova que ainda pode ser encontrada nesses autores. Já em De Anchieta aos Concretos, ele faz uma investigação de poetas brasileiros canônicos ou recentes, com o mesmo olhar crítico preciso e implacável. Sobre Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, diz o seguinte:

“3. A poesia de Carlos Drummond de Andrade é documento crítico de um país e de uma época (no futuro, quem quiser conhecer o Geist brasileiro, pelo menos de entre 1930 e 1945, terá que recorrer muito mais a Drummond que a certos historiadores, sociólogos, antropólogos e ‘filósofos’ nossos...) e um documento humano ‘apologético do Homem’. (...) 4. Carlos Drummond de Andrade é um ‘inventor’. Se não o é ao nível universal (é meio incerto encontrar um ‘processo’ seu que já não esteja em Heine, Laforgue, Valéry, Eliot, Auden etc.), sem dúvida o é entre nós: poemas como Soneto da Perdida Esperança, José, A Flor e a Náusea, Os Bens e o Sangue, para não falar de pormenores, trouxeram, ao aparecerem, contribuição quase inteiramente original ao desenvolvimento de nossa poética. (...) Sobre a linguagem de Carlos Drummond de Andrade há muito que estudar, que optar, que decidir. Antes de mais nada, dentro de um conceito contemporâneo de linguagem poética, bem distinto da linguagem prosaica e da linguagem retórica, e da ‘expressão sentimental ou imediata’ (Croce), será essa linguagem realmente poética? A resposta seria, a nosso ver (neste momento, pelo menos, de nossa própria evolução): ocasionalmente, sim; o mais das vezes, não.

Ocasionalmente, sim. A linguagem de Carlos Drummond de Andrade sempre teve momentos indubitavelmente ‘poéticos’ (i. é, linguagem de criação, e não de expressão; meio de doação, e não só de comunicação; apresentação do objeto, e não apenas alusão ou comentário ao objeto), como, por exemplo, Cota Zero, Poema Patético, Bolero de Ravel, (...) ou como o Noturno à Janela do Apartamento (...). No caso de Drummond, entretanto, esse frequente acertar não basta ainda, porque não o define. Não constitui o principal em sua obra. Ele nos surge, neste momento, sobretudo, como o renovador, com seus versos, de nossa linguagem prosaica (...). Como poeta, entretanto, no sentido de Criador de palavras-realidades, somos levados a pensar que um Jorge de Lima – muito menos importante que ele sob qualquer outro aspecto – o vence nesta tarefa, por excelência da linguagem poética, de identificar magicamente sujeito e objeto de conhecimento poético, de recriar a palavra na ocasião do poema, tarefa de criação, repetimos, e não apenas de expressão.”

(CONTINUA)

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