quarta-feira, 29 de setembro de 2010

UM CONTO INÉDITO DE WILSON BUENO

LÁDIVA

“Feliz daquele/ que ao ver o relâmpago/ não diz – a vida é breve”.

No micropoema japonês foi onde encontramos, tarde dessas noites frias, nós, os navegantes de Hérida, a mais perfeita metáfora em favor da vida eterna – senha e sumo de quem se habilita à inenarrável ilha de Ládiva, ao norte do País Eslavo.

De gelo e praias cinzas, Ládiva nunca amanhece. É sempre bruma, e a imaginação da noite, em Ládiva. A noite imaginada nessa permanência com que a névoa insiste, mesmo quando, ao fim da manhã, você supõe, no céu da ilha um sol de meio-dia.

Contam que, muito antes de nós e de nossos bisavós, ou ainda bem antes destes, os moradores de Ládiva, cuja maior característica, registram, era o engenho para escavar terras e construir túneis, chegaram a abrir, a marretas e pontapés, no céu cinzento, um grande buraco. Por alguns dias, o sol brilhou profuso e obstinado, sem intervalos, sobre Ládiva. E iluminou as praias lavadas pelo azul do mar e pela franja das ondas que sobre a areia se atiram ainda hoje, insistentes, suicidas.

Assim que o buraco aberto por nossos esforçados ancestrais tornou a fechar, voltou a névoa contínua e tudo misturou-se, em Ládiva, ao cinza-escuro quando é a noite imaginada, ou ao cinza-claro, forte indício de que é manhã ou tarde na ilha onde cultuamos os mortos com altas velas e mantras que são quase uma secreta carícia. Isto se não fincamos, ao telhado da casa, os crânios lavados a sal dos mortos antigos. Em Ládiva tudo é assim, surpreendente e novo, como se a morte não houvesse, como se a morte não houvesse mais.

Contudo o que nos incomoda é a imaginação da noite em nossa ilha onde sequer a noite existe, o céu fechado de modo nunca interrompido, sem estrelas, nem mesmo o vazio da ausência delas, ali onde nos postamos, quando é madrugada, e nada descortinamos além do permanente breu e a fuligem eterna das esgarças fumaças. Deambula sobre nossas cabeças um céu sempre móvel, e carregado, que foge, incessante foge para o largo Oceano – como se açulado por forças incoercíveis.

Não por obra do vento, diga-se, posto que em Ládiva o vento gane apenas nas frestas das casas e nunca ascende além que a altura da mais alta edificação da ilha – o templo devotado a um deus que ninguém até hoje soube o nome ou, o que é pior, adivinhou-lhe os preceitos e nem sequer a espécie de oferenda que exige lhe seja colocada aos pés. E sem saber o que um deus quer, nós, os nascidos em Ládiva, vivemos sempre temerosos ante a crua iminência de ser duramente castigados.

Por isso amanhã partiremos outra vez ao continente, em meio à névoa e à neblina. Deixaremos o cais de Ládiva, até que ela seja apenas um ponto perdido, fraco a luzir no horizonte, mas que nossos olhos súplices ainda hão de buscar, com saudade, com muita saudade, feito ela tivesse existido um dia.

(Leia outros contos inéditos de Wilson Bueno na edição de outubro da Zunái.)

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