terça-feira, 3 de agosto de 2010

UM POEMA DE DAVID HUERTA

LOUCURA, UM CORPO: ESTE PAPEL

AGORA salta a fantasia como lasca de ferro, espumas velozes,
tantas luas na garganta sob a linha do frio,
uma mulher azul na água das mãos e uma longitude frágil na
procissão do verão sobre o olho.

Unhas cravadas na luz, roupa de cego. A loucura passeia, navega.
As pernas estão afiadas como navalhas: filtros do talho,
calcanhares desnudos sobre o pó das maneiras sociais.

Filtros da punhalada, saliva luminosa no peito desejado.
Baixam os dedos pela laguna de um peito, no ar se ocultam
palavras negras,
desfiadas profecias, entalhes, documentos, esquinas repletas,
rincões borrados pela ânsia.

O verão passeia, passa entre as pernas.
Toca o corpo: é uma aurora entre os cabelos.
Amêndoas salgadas para o que foge de sua mãe: o Desejoso.
Vapores, tóxicos do século para o que grita, voraz, para o que vocifera nas ruas vazias.
O doce louco geme, gagueja, suplica: sua saliva brilha para nós
nos cantos da boca.

Temos beijado o mundo com lábios mecânicos, no ardor,
afastados de ti,
apartados de toda ciência e de todo saber para chegar a ti,
mais nus que livres, mais estranhos que a fantasia que dói
em teus rostos de bocas abertas,
em teu pijama de hospital, em tua mãe e seus gestos à defensiva,
mas gestos de tigre
que babeja o leite da piedade, a comiseração, a dor, etcétera.

Sentes o ar ou a brisa, seus fantasmas brilhantes.
Quem te fala ouve também, desesperado, só e mais só que tu,
encerrado, quem fala e te ouve
está mais encerrado que tu, tem suas próprias frestas, escuras dores como tu, como tu.

Abres a boca e recebes o verão. Falsa salvação, outra mentira à
conta das maneiras sociais, da beleza, da contemplação, etcétera.
Abres as mãos: nada. Nem um peito nem umas pernas afiladas contra os pedernais.

Quem te fala, caralho, tem verão próprio, saliva escura e uns
lábios inconsoláveis.
As túnicas do medo, da culpa, da batalha surda para ti.
Nenhum peito primaveril entre a seca morte do verão, entre os
barreiros despedaçados,
entre as letras lidas com uma enorme dificuldade, entre as páginas
submersas numa luz mais estranha que teus lábios.

Cresceu a tua barba e dizes que todavia estás confundido.
Fala com quem te ouve, saca o desejo de tua maquinaria sentimental
como vulto de areia para o próximo embarque,
fala de poesia, ignora tudo e abre os olhos outra vez, caralho.

O verão te engana, eu te engano ao escrever isto.
Pensa com as pernas juntas e com as pernas separadas, ouve a água da chuva e passa as mãos pela janela,
pelos olhos, pelo peito sangrando de tua terceira ou quarta tentativa de
suicidar-se vivendo morto, vivo, fictício, etcétera.

Eu não sei nada. Eu te vejo entre 95 paredes e uma frágil fresta
como um planeta à deriva. Nessa fresta porás as mãos
quando eu te vou visitar, Desejoso.

O verão é outra ficção, estas palavras também.
De onde te vejo, te ouço, toco tuas mãos frágeis em meio a uma
tormenta de antipsicóticos,
tua espádua no abraço como uma praia submersa em espessos detritos.

Céu de verão, loucura, pureza. Estas palavas para ti.
As maneiras sociais ardem comprazidas. Nenhuma rebelião, só
amêndoas salgadas como ratos para tua boca surda.
Onde te queimas, te dói, te cala. Dás com a cabeça contra uma das
95 paredes que te cercam.
Este sal implacável entrando por tua boca é minha comodidade,
o fervor médico, os engarrafamentos de trânsito, as eleições de
um domingo plácido,
a roupa negra do coveiro, as grilhetas do verão civil.

O desejo úmido é uma cova salpicada de maravilhas, no reino de
outra realidade.
Pássaros vêm pelas pontas desta luz metálica, o verão se fecha
como uma caixa
e te deixa com um corpo extravagante de mimo, de obscurantista.

Cada filete de tuas palavras entra nessa caixa,
o céu médico te unge e te amordaça, estende seus alvéolos de cura em teus membros lastimados, lastrados.
Porém o desejo e seus colares de mesmidade. Caralho. Uma cascata se fecha sobre ti,
sobre os reinos de tua cabeça, sobre tuas mãos adelgaçadas.

Luz curva de verão, linhas fraturadas. Linguagem fraturada.

Tradução: Claudio Daniel

2 comentários:

  1. David Huerta, poeta mexicano, nasceu em 1949, na Cidade do México. Publicou, entre outros, os seguintes livros de poesia: El Jardín de la Luz (1972), Cuaderno de Noviembre (1976), Huellas del Civilizado (1977), Versión (1978), Historia (1990) e Los Objetos Están más Cerca de lo que Aparentan (1990, em colaboração com o pintor Miguel Castro Leñero). Também publicou um volume de ensaios, Las Intimidades Colectivas, e compilou antologias da poesia de Lezama Lima e de relatos românticos.

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  2. A diagramação do poema original, infelizmente, ficou alterada nesse editor de textos da blogspot, que oferece poucos recursos; o poema já foi publicado, com as quebras de linha corretas, no link de Traduções da Zunái, para quem quiser conferir.

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