OFÍCIO DO JADE
por vezes corre-me pelas mãos uma morte
um olhar indefinido
separado do seu rosto mais nítido, um lago de nácar embutido na indelével paisagem
sou capaz de me desprender desse rosto, desse olhar
dessas mãos que adquiriram a sageza fria das fontes e a nobreza do dragão
na verdade, os ritos do suicídio sempre me perturbam o sono, perdem-se
na milenar memória doutro corpo-meu
transparentes paisagens tecem-se em mim
balbucio um desejo
o tempo ensinou-me como deve ser procedido de recolhimento e preces
o mágico ofício do barro
a obra, é em seguida submetida à vida fértil do fogo
onde irrompe a escrita e se aperfeiçoa o jade
OFÍCIO DE VIAJANTE
procurei dentro de ti o repercutido som do mar
a voz exacta das plantas e um naufrágio
o deslizar das aves, o amor obsessivo pelos espelhos
o rumor latejante dos sonhos, as cores dum astro explodindo
o cume nevado de cada montanha
difíceis rios, os dias
vivi em Roma
no tempo em que ali chegavam os trigos da Sicília e os vinhos raros das ilhas
a fama remota dos ladrões de Nuoro
todo o meu corpo estremeceu ao mudar de voz
cresci com o rapaz, embora nunca tivéssemos sido irmãos
e quando ficamos adultos para sempre
alguém lhe ofereceu o ofício de viajante
eu morri perto de Veneza
e quando atirava pedras aos pássaros sempre me ia lembrando de ti
(Poemas de Trabalhos do Olhar. 1976/82.)
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
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