terça-feira, 24 de agosto de 2010

RELENDO AL BERTO (I)

no sábio jardim d’agosto floresce cor de malva o adocicado dos musgos opiáceos. ventos de fumo azulíneo tingem o melancólico corpo. a manhã costura um lírio de lume, ao inevitável vômito. a pele fica molhada no fresco orvalho da terra, um pássaro move-se no interior marulhar das vozes. os cabelos fibrosos agitam-se em tuas mãos, dentro de mim. acariciam o precário destino do sangue. o ar estrangula-nos com doçura. corto um dedo. corto-o porque está a mais numa das mãos anjauladas na alba. há caminhos que nos conduzem para além da paisagem de papel. estátuas de areia molhada deitadas na relva sequiosa de sono. felpudos antirrinos em murmúrios de saliva. despertam com lentidão pelos nervos repletos de lume. nos lagos da memória reflete-se o silencioso rosto do homem-vegetal. subitamente expande-se no sexo o espesso líquido da alucinação. a droga purifica. a memória projeta-se para lugares inacessíveis. turva-se de pássaros cortantes pontes dilaceradas corpos que pernoitam no estremecer laminar dos neons. acocorados olhamos para a noite em quatro dimensões. do corpo insone irradia o crime. um ninho de vespas enlouquecidas contamina o sangue. luz negra quase solar. o coração atingido.

(Do livro À procura do vento num jardim d’agosto, 1975, incluído no volume O Medo, que reúne a poesia completa do autor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.)

Um comentário:

  1. Poeta português, natural de Sines. Al Berto frequentou diversos cursos de artes plásticas, em Portugal e em Bruxelas, onde se exilou em 1967. A partir de 1971 dedicou-se exclusivamente à literatura. Estreou-se com o título À Procura do Vento no Jardim de Agosto (1977). A sua poesia retomou, de algum modo, a herança surrealista, fundindo o real e o imaginário. Está presente, frequentemente, uma particular atenção ao quotidiano como lugar de objectos e de pessoas, de passagem e de permanência, de ligação entre um tempo histórico e um tempo individual. Por vezes, os seus textos apresentam um carácter fragmentário, numa ambiguidade entre a poesia e a prosa (Lunário, 1988; e O Anjo Mudo, 1993).
    A sua obra poética engloba Trabalhos do Olhar (1982), Salsugem (1984), O Medo/Trabalho Poético, 1976-1986 (prémio de poesia de 1987 do Pen Club), O Livro dos Regressos (1989), A Secreta Vida das Imagens (1991), Luminoso Afogado (1995) e Horto de Incêndio (1997). Deixou incompletos textos para uma ópera, para um livro de fotografia sobre Portugal e uma «falsa autobiografia», como o próprio autor a intitulava.

    Extraído da página http://www.astormentas.com/alberto.htm, que contém fotos e poemas de Al Berto.

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