segunda-feira, 30 de agosto de 2010

RELENDO AL BERTO (IV)

A SEGUIR O DESERTO
(fragmento)

lua gelada osso branco sinalização nocturna da cidade
desolação de todos os quartos
ainda entesado olho-me no espelho da noite
envolve as enxárcias húmidas deste navio-cama
odores mornos de urina
o jornal onde acabo de ler uma infindável e confusa aventura de gatos assassinos
levanto-me pela janela apercebo o mar
amanhece
como sempre acontece assim que pressinto o mar
tenho a cara manchada de sal
um gemido sobe cola-se ao espelho à pele do rosto
grito
penso que foi um grito a escorregar atrás doa andaimes
havia lama duma ponta à outra da cidade
Lulu la Balle contorcia-se num espasmo de néon metalizado
lama
havia lama quando o lisérgico astro se atreveu a descer à boca
cores de pêssegos vermelhos troncos de árvores azuis queimados sobre o relvado
um centauro de fogo cobre os telhados com guinchos num derradeiroa pelo à chuva
eu sei
naquele instante ainda sem memória poderia iniciar a fuga
mas elaboro circuitos movo-me por entreportas
atravesso o escuro sono de aves petrificadas
o sonho dos dedos estende-se luminescente
e a noite enfurece-se onde escavo a pele imensa das cassiopeias
imemoriais subterrâneos do pesadelo paralelos corpos
ruídos de insectos marcando as horas
a casa expele vibrações de água cheira a metal enferrujado
desço pelo interior rugoso das paredes
a viagem devora-me
cega-me o brilho dos alicerces ainda sólidos da casa
ultrapasso-os por fim atinjo o lodo
as ardósias onde o cuspo dos deuses inscreveu a memória daquele que foge
pressente-se já a pequenez do país submerso
quando atei a minha idade ao coração da terra era porque a morte se aproximara
suicidei-me há muito se era isso que desejavam saber
enrolei-me nos fios eléctricos
comi as estrias dos discos para possuir em mim a música possível
depois mordi a mesa a caneta e os lápis
os objectos que me cercavam
conheço bem as suas consistências texturas e dimensões
irradio luz
naquela fotografia ainda podem ver o enigmático sorriso
o visco cor de sépia do rosto meigo em cima do musgo ensanguentado
e o lugar secreto onde ressoa a respiração dum outro corpo
toco com a ponta da língua as primeiras camadas de barro
ouço uma voz: lost in a labyrinth of future mystery
entro em estado de hibernação
a eternidade

(Do livro A seguir o deserto, 1983/84, incluído na edição das obras completas do autor português, intitulada O medo.)

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