segunda-feira, 9 de agosto de 2010

UM CONTO INÉDITO DE WILSON BUENO

SOMBRUS

Perde-se na noite dos tempos a memória do primeiro navegador que desembarcou na ilha de Sombrus. Não se sabe quando isso se deu nem a nossa humanidade foi capaz de buscar mesmo a data aproximada da arriscada façanha.

É que em Sombrus vivem e latem, noite e dia, os cães selvagens do Arquipélago, que ali fizeram morada não se sabe igualmente como e muito menos por meio de quem. Aliás, pouco se sabe da história primeira de Sombrus, suja, sem dúvida, de lendas sinistras e ainda mais sinistros eventos de sangue e mar, sal e insistência.

Não convém, de nenhum modo, entretanto, ficar aqui lembrando a história pregressa de uma ilha que emergiu das águas do Pacífico feito uma flor monstruosa e triste. O que vale anotar é o presente. Este se dá, em Sombrus, de forma sumamente enigmática – as horas passam não em direção ao futuro, mas num lentíssimo escoar-se passado e saudade afora. Herança, odores, perfumes – esvaídos nas dobras dos dias, puro reverso, notícias longínquas, ecos de tardes soterradas pelo Tempo.

Em Sombrus, primeiro vêm as noites e depois delas o entardecer e, na sequência, a própria tarde, a manhã, o alvorecer, a madrugada inteira, para só então sobrevir de novo a noite antes da meia-noite, a lua e as estrelas.

É sempre assim. Conosco também retornam as faces que a mó dos anos puiu e gastou, e, tudo o que era sulcos e rugas reverte, o que é ainda mais inquietante, até uma temida infância que ameaça as gentes com o retorno ao útero e do útero ao aéreo nada de que fomos feitos um dia. A morte de não haver?

Contudo, os cães de Sombrus são os únicos seres que alcançam vencer a marcha à ré do Tempo. Nascem, crescem, procriam e morrem – os alvos ossos nas praias desertas; cada vez mais desertas.

Ninguém até hoje conseguiu explicar porque de toda ilha são os únicos seres vivos capazes do que chamamos, em Sombrus, ou fora dela, escassamente, de futuro.

Então é que se dá de Sombrus o inenarrável encanto – os cães, diz a lenda, são os testemunhos fiéis de que, mesmo ao contrário, os anos andam e andam, consumindo seres e coisas, vegetais e pedras.

Por isso, aturdidos, os cães latem, tarde da noite, e vão aos bandos pelas praias da ilha, como se sentissem a dor do Tempo atravessada na garganta.

Isso um dia vimos e ouvimos, nós, os navegadores de Hérida, há muitos e muitos séculos. Desconhecemos apenas se, pelos indizíveis meses que passamos ao mar, e o nenhum calendário, eles, os séculos, se encontravam ou não ao revés.
(Do livro de contos Ilhas, ainda inédito, que o pintor das tardes da floresta enviou para mim, semanas antes de virar constelação. Saudades, mano velho!)

Um comentário:

  1. Celso Vegro13.8.10

    Prezado prof. Claudio Daniel
    Trazer nova produção do Wilson Bueno é das coisas nobres que realiza. Você já percebeu que voltae meia que na obra dele sempre aparecem cães.
    Abçs

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