CD: Acredita que a poesia tenha relação com estados alterados de consciência, com a experiência visionária?
CW: A questão não é “acreditar” — a questão é aquilo que é. Baudelaire escreveu aquela quantidade de paginas sobre haxixe, a troco de quê? Falava de um meio de passar o tempo, só? Experiências visionárias? E Mallarmé, aquelas enormes crises, ele ouvindo o refrão, la penultiéme est morte, e aí escrevendo, ou melhor, transcrevendo O Demônio da Analogia, obviamente o tipo do texto que, digamos assim, baixou, que certamente nem ele conseguiu entender o que significava, como traduzir, decodificar, e que até hoje é tido como obscuro, hermético. E Ginsberg ouvindo a voz de William Blake? E o próprio Blake? E...? Podia escrever páginas e páginas sobre episódios de criação poética como revelação, êxtase, algo baixando. É claro que não estou fazendo nenhuma condenação a priori da escrita a frio, pensada. Apenas estou dizendo como as coisas são, ou foram, ou têm sido, historicamente, e não só para mim.
CD: Mircea Eliade, autor de Técnicas Arcaicas do Êxtase, foi uma influência intelectual marcante entre os poetas de seu círculo literário? Você tem interesse pelo esoterismo e por tradições iniciáticas?
CW: Sim e sim, as duas partes da sua pergunta. Com tudo o que se escreveu depois sobre mito e sobre xamanismo, Mircea Eliade me parece ainda insuperado. Há, nele, um fundamento filosófico, ontológico, que é a idéia da relação entre o homem e o mundo como algo vivo, animado e sagrado, nas sociedades tribais, no mundo arcaico. Quanto a esoterismo e tradições iniciáticas, trato disso em minha narrativa em prosa, Volta. Nunca fui adepto, de fazer parte de uma seita ou grupo, a exemplo, digamos, de Yeats e a Ordem da Aurora Dourada. Interessa-me o movimento oposto, da experiência poética se tornar mágica, de, no contexto da criação poética, acontecerem antevisões, revelações, o acaso objetivo. Esoterismo e poesia se aproximam por ambos terem como fundamento um modo de pensar analógico, oposto à razão da herança cartesiana ou aristotélica.
CD: Fale um pouco sobre o seu livro de estréia, Anotações para um Apocalipse (1964). Como ele foi recebido na época?
CW: É uma série de poemas em prosa, escritos automaticamente, e um manifesto, em um tom bretoniano, mas que vale, penso, por antecipar o que vinha pela frente, a rebelião contracultural, e mais coisas, e falar de Ginsberg e outros em primeira mão, aqui no Brasil. Recepção? Amigos gostaram. Tanto o meu livro, Anotações para um Apocalipse, quanto os do Piva, Paranóia e Piazzas, fora daquele ambiente, ninguém entendeu nada, silêncio total. Crítica, nem pensar. Levamos uns 15 ou 20 anos para ser lidos.
CD: Como os poetas do modernismo receberam a tua poesia? Tomaram posição a respeito? Faço essa pergunta porque, em minha opinião, o teu trabalho, como o de Piva, não tem nada a ver com o modernismo dos anos 30 e 40... Claro, há certos paralelos com Murilo Mendes e Jorge de Lima, na imagética, em especial. Mas a impressão que eu tenho é que a poesia de vocês existiria mesmo sem o modernismo, pois descende de outras fontes, do romantismo, do simbolismo, de Breton, dos beats, da contracultura dos anos 60... o que você pensa a respeito?
CW: Penso um monte de coisas! Modernista, remanescente da semana de 22, havia Sérgio Milliet, bela figura, mas, no início dos anos 60, não tomamos conhecimento, freqüentava o bar ao lado (ele e a turma dele no Paribar, eu e minha turma mais no Leco ou La Crémerie, lugar mais agitado), mas ainda assim era muito burguês, muito establishment para nosso gosto. Não nos interessou qualquer interlocução pessoal com modernistas e afins, embora não tivéssemos dúvidas quanto à importância de Drummond e admirássemos Murilo. Bandeira, nunca gostei, simplesinho demais. Guilherme de Almeida, o então Príncipe dos Poetas Brasileiros, de enorme prestígio, nem chegar perto, de jeito nenhum, representava tudo o que não suportávamos, oficialismo, academicismo, restauração do beletrismo etc. Idem os demais corifeus do retorno dos modernistas ao academicismo, Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo. O contexto literário imediato era dado pela Geração de 45. Nem foi preciso romper, nos afastarmos, tomar posição contra, bastou saírem Paranóia e Piazzas do Piva, e o meu Anotações para um Apocalipse, e eles imediatamente esfriaram conosco.
Agora, você tocou em uma questão importantíssima ao falar em simbolismo. Pelo seguinte — na França, em especial, modernismo estava dentro do simbolismo! Houve aquilo que Breton denominou de correia de transmissão entre simbolismo e surrealismo. Vanguardas recolheram um legado simbolista. Veja bem: Jarry (e Jarry já é tudo, em sua obra colossal, está tudo lá, ele produziu século XX como ninguém) era simbolista, freqüentava Mallarmé e os outros, foi quem proclamou como fundamentos da nova literatura Rimbaud, Lautréamont, Mallarmé. O primeiro tradutor de Jarry, para o italiano, foi Marinetti... Apollinaire, o ideólogo do novo, idem, freqüentava Jarry, o admirava. Os surreais adotaram como referências, a exemplo de Jarry, a Lautréamont e Rimbaud. Os formalistas, Eliot e Pound inclusive, a Corbière e Laforgue. Linha direta, conexão, em todos esses casos, e em outros.
Aqui não, o pessoal de 22 maravilhou-se com futurismo e vanguardismo, mas não reparou em nosso próprio simbolismo, no que havia de moderno em Kilkerry, na poesia em prosa de Cruz e Souza. Não sabiam de Sousândrade, e olha que em seus momentos simultaneístas, em muito de Oswald, até lembram Sousândrade. Não perceberam o anti-beletrismo de Lima Barreto. Nacionalistas que não souberam olhar a seu redor, algo muito estranho, que associo a uma certa caretice modernista, especialmente em Mário de Andrade, um discurso como: sim, vamos inovar, mas espere aí, até certo ponto, devagar, loucura, isso não, como ele diz em seus primeiros textos críticos. Isso posto, muito do que Mário fez, gostamos. E, sem dúvida, Oswald, o mais inquieto e criativo de 22.
(Continua)
diálogo enriquecedor, principalmente por entrecruzar e fazer convergir certas questões e concepções poéticas que não costumam ser tratadas com a devida seriedade e respeito. Que bom ler isso por aqui!
ResponderExcluirAbraço
Pablo, sim, ainda falta uma recepção crítica séria da poesia de Piva, Willer, Rodrigo de Haro e outros poetas da década de 1960. Há muito preconceito na academia em relação ao surrealismo. Abraço,
ResponderExcluirCD