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Escrevo como um animal, mas com menor
perfeição alucinatória. Não sei imprimir as três linhas
convergentes do pé da gaivota, nem os pomos
leves da pata dos felinos. Só de uma forma rudimentar
escrevo, e estou a predestinar-me ao fim.
Depois de tantos séculos posso afirmar
que a escrita é uma escravidão dura.
Sei que é inútil e desumano mover as mãos
assim. Nem estou convicta de que seja digno
escrever desta maneira; é uma manufatura triste,
quando as mãos podiam apenas escarvar
na terra ou no corpo. Podem ficar as palavras
somente na fita magnética como nas cabeças loiras.
Nada na infância nos deveria obrigar
a traçar as patas dos roedores repelentes
que são letras. O som da boca deve escrever-se
no écran, com a nova razão da nova máquina
da realidade. Na areia, porém, ou no mosaico molhado
terei de aperfeiçoar a minha pegada. Aproximar
dela a mão até alcançar a harmonia do trilho
do escaravelho. Uma fieira de montículos
e ranhuras até o infinito que para ele é o mar.
Há quantos séculos os seres humanos me aprisionaram
no mito da caligrafia. Como tem sido penoso esse gesto,
há tanto tempo, e só eu o renego, porque sinto
a opressão com que alguém o tornou mais nobre
do que a minha fala ou a minha visão, únicas
propensões inatas. Prefiro aprender pormenorizadamente
a conservar uma impressão digital. Há um pensamento
abstrato e maquinal que decora a História com inteligência
mecânica, e por isso é supérfluo escrever. Só alguns
raros escribas, como os desenhadores de máquinas,
seriam necessários. E poderia descansar a cabeça
no regaço da lama.
Ensinaria à infância a gravar
no pó de talco a palma das mãos e a considerar as palavras
modulações da voz pura, sem a mancha embaciada
compacta que paira diante dos olhos sempre
que se fala. A mancha que se desloca no raio de visão
e desbota qualquer imagem como a chama de uma vela
com a fuligem constante a torná-la opaca.
(Do livro Área Branca, 1978)
terça-feira, 15 de junho de 2010
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