Quand’eu un dia fui en Compostela en romaria. Vaguei por veredas e várzeas seguindo a concha vieira, e vi mantos de verde relva, rebanhos e alvoradas, ora um riacho, um lagarto, um cão, os olhos prenhes de beleza e beleza. Após muito vagar, o corpo exaurido, cheguei à terra da Via Láctea, São Tiago do Campo da Estrela; e só então chorei, Don Pelegrin. Recordei a saga do apóstolo, decapitado por Herodes Agripa; seu corpo foi levado da Palestina para as terras da Ibéria, em barca marmórea, por Atanásio e Teodoro, e sepultado no bosque Libredón. Ali restou oculto, até que uma chuva de estrelas guiou Pelayo, o eremita, ao sacro túmulo, no século oitavo. Sim, chorei, mas logo senti estranha felicidade, feita de matéria sem tempo, impalpável; e assim fiquei, por alguns minutos, estático e mudo. Depois, fiz uma pequena refeição, e segui até a Praça do Obradoiro, onde avistei a catedral, o verbo feito carne feito pedra, o eterno em rocha temporal manifestado. Entrei pelo alto pórtico, sentei-me no banco, e era meio-dia; o botafumeiro incensava o ar com um odor de beatitude e martírio, enquanto o padre, em voz monótona e turva, recitava, em vernáculo, a missa dos peregrinos. Pensei no Codex Calixtinus, de Aimeric Picaud; numa das páginas proféticas do Apocalipse; nas manhãs de Pontevedra; nas ondas do mar de Vigo; no rosto oval da núbil núbia; numa fuga de Bach; e nas linhas finais do Fédon de Platão. Eu já sabia, em meu coraçon, que não haveria paz para minha alma, e que tudo fora em vão. Pouco depois, ao falar com padre Guedes, tive a certeza: Vera nunca estivera em Campus Stelle. Tudo reles nada, noves fora, zero. Andei pela cidade por horas, vendo sem ver o Palácio do Ayuntamento, o Hospital de los Reyes Caóticos, hoje um parador, as pequenas casas baixas, as pombas e os niños rosados de largas bochechas. Sabe o que penso, Don Pelegrin, amigo João Airas? Tutti é burla nel mondo. Tudo é sonho. Somos cegos e loucos, tolos mancebos sem siso, sem eira nem beira. Vivemos de lucro em logro, de mágoa em malogro. Só a dor é real. Deus? Não creio. Só no demo. Que está aqui, na rua, no meio do redemunho.
En santiago, seend’ albergado en mia pousada, chegaron romeus, preguntei-os e disseron: — par Deus, muito levade-lo caminh’ errado, ca, se verdade quiserdes achar, outro caminho conven a buscar, ca non saben aqui dela mandado.
Onde está o teu paradiso, jardim edênico, Shamballa, Vrajabhumi, Vrajadhama? Onde está o teu Brahma, em que lótus de áurea flama? Som de búzios, luz de prata em prata refletida, seda rara em seda entretecida, o mais puro branco em rosa infinita; onde está a tua terra prometida? Que rios a banham? Qual Nilo, Ganges, Tigre ou Eufrates? Em que prística era primeva estão o tonto Adão e sua velha Eva, Noé, sua barca e a arca da aliança? Onde as ninfas do céu e suas danças? Tua aérea Meca diamantina está na mente de Deus: Qual Deus? E se o divino não há? Nele já não creio, pois negou-me a minha dona:
Deus nunca mi a mi nada deu e tolhe-me bõa senhor: por esto, non creo en el eu nen me tenh’ en pecador, ca me fez mia senhor perder. Catad’o que mi foi fazer, confiand’ eu no seu amor!
Tudo é névoa, nébula, néquia de nadas, nicas de nuncas, fábula, fumaça de fervura ou coisa alguma. E você, o que me diz, Don Pelegrin? O quê? ahn? êee... ah, louco, o que ouço! O que é isso? Esse dizer entre o roxo cetim, o ouro fosco e o açafrão merino? Esse falar de fábula, tão mascavo, tão melaço de cana? Sua língua é polpa de fruta, gomo de tangerina, mar de Sargaço onde me perco. Mas eu insisto, resisto e recuso teu canto-de-engano, sereia-só-escamas! Teus sofismas? Inumeráveis; não estrelas trêmulas, mas negras listras em pele brônzea de fera. E não tens o rubor violeta nas faces, nem sulcos no rosto albino que me olha. não, não creio em tua fala, amigo João Airas, Don Pelegrin! Ah, encantador de serpentes! Olhos-de-flama-e-gume! Mas vá em paz, irmão. Dei gratia. Salam, shalon, shante. Se Deus não me der a parda leoparda, gata galatéia de lácteos túmidos mamilos, metade da minha alma, nele não crerei. E mais não digo. Vou seguir, danado, penado, condenado, até o limite da terra, que, diziam, é plana como um prato, circundada de águas por todos os lados. Na manhã seguinte, caminhei, e caminhei por dias e dias, até Finisterre, a fronteira do abismo, para olvidar quem me olvidou (e como me olvidaste!).
En santiago, seend’ albergado en mia pousada, chegaron romeus, preguntei-os e disseron: — par Deus, muito levade-lo caminh’ errado, ca, se verdade quiserdes achar, outro caminho conven a buscar, ca non saben aqui dela mandado.
Onde está o teu paradiso, jardim edênico, Shamballa, Vrajabhumi, Vrajadhama? Onde está o teu Brahma, em que lótus de áurea flama? Som de búzios, luz de prata em prata refletida, seda rara em seda entretecida, o mais puro branco em rosa infinita; onde está a tua terra prometida? Que rios a banham? Qual Nilo, Ganges, Tigre ou Eufrates? Em que prística era primeva estão o tonto Adão e sua velha Eva, Noé, sua barca e a arca da aliança? Onde as ninfas do céu e suas danças? Tua aérea Meca diamantina está na mente de Deus: Qual Deus? E se o divino não há? Nele já não creio, pois negou-me a minha dona:
Deus nunca mi a mi nada deu e tolhe-me bõa senhor: por esto, non creo en el eu nen me tenh’ en pecador, ca me fez mia senhor perder. Catad’o que mi foi fazer, confiand’ eu no seu amor!
Tudo é névoa, nébula, néquia de nadas, nicas de nuncas, fábula, fumaça de fervura ou coisa alguma. E você, o que me diz, Don Pelegrin? O quê? ahn? êee... ah, louco, o que ouço! O que é isso? Esse dizer entre o roxo cetim, o ouro fosco e o açafrão merino? Esse falar de fábula, tão mascavo, tão melaço de cana? Sua língua é polpa de fruta, gomo de tangerina, mar de Sargaço onde me perco. Mas eu insisto, resisto e recuso teu canto-de-engano, sereia-só-escamas! Teus sofismas? Inumeráveis; não estrelas trêmulas, mas negras listras em pele brônzea de fera. E não tens o rubor violeta nas faces, nem sulcos no rosto albino que me olha. não, não creio em tua fala, amigo João Airas, Don Pelegrin! Ah, encantador de serpentes! Olhos-de-flama-e-gume! Mas vá em paz, irmão. Dei gratia. Salam, shalon, shante. Se Deus não me der a parda leoparda, gata galatéia de lácteos túmidos mamilos, metade da minha alma, nele não crerei. E mais não digo. Vou seguir, danado, penado, condenado, até o limite da terra, que, diziam, é plana como um prato, circundada de águas por todos os lados. Na manhã seguinte, caminhei, e caminhei por dias e dias, até Finisterre, a fronteira do abismo, para olvidar quem me olvidou (e como me olvidaste!).
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