quarta-feira, 23 de junho de 2010

DONA VIRGO (I)

Ondas do mar de Vigo, verde mar, musgo, mofo, muco; verde malva, jaspe, jade ou junco. Vera viçosa, fremosa, velida, tecido sem vinco; negra ninfa, niña de Mama África, de São Salvador, filha de Oxum, en las calles de vieja España, onde os teus olhos, onde os teus peitos, moça de virgo? Vera olhos verdes, vê-la é vício, não vê-la é vírus, seu cheiro: folha de ipê, folha de figo, só folhas; aloés, baobá, broto de bambu, begônia, branco alecrim, visgo. Penso em tua pele, não prata, aljôfar ou espuma, mas seda azeviche, seda escura, de brancaflor noturna , em tua voz, que sussurra ao coraçon, e em teus olhos, que falam para a alma. Praza-vos já que vos veja no an, hua vez d’un dia! Só ela, a moura moçela, faz o meu sangue ferver: a que partiu sem me ver, sem se dar. Eu me lancei à viagem, sem temer a voragem, cruzei terras e mares, atrás dessa dona de mim, que me fez danado, e nulhas guardas migo non trago, ergas meus olhos que choran ambos. Estou aqui, em Vigo, Vicus Sacorum, nas encostas de Cerro Castelo, na Galícia, há três dias já, e esta cidade é todo lugar, é lugar nenhum, sua estranha beleza: escamas argênteas de peixe ao sol. Sigo e persigo essa molher em vilas, vales, vielas, como a seta persegue a caça, mas, esforço inútil, de todo fútil: ela se evola, de viés, desvanece, dissolvida no ar do ar. Jogo de esconde entre o nada, o nenhures e o coisa alguma, que começa em qualquer parte e termina, talvez, além-alhures, dois passos à esquerda de lugar algum. Ela, a moçelinha, dona de mui ben parecer, apartada de mim, por quê, para quê?, pergunto a São Simeão, em sua ermida. Quand’ eu vejo las ondas e las muyt’ altas ribas, logo mi veen ondas al cor pola velyda: maldito sea l’ mare, que mi faz tanto male! Sou Gil Eanes Brás, o gatuno, garanhão, desgrenhado, deserdado, desconjunto, bebum sem ofício, poeta sem arte. Sigo e persigo Brancaflor, a louçana de doces garcetas, e pergunto a São Simeão: por quê, para quê?, em sua ermida. Molher tão sem amor: sem você, já sandeu, não sou homem: sou lagarto, locusta, lagostim, látego, ladrilho, sou menos que tudo, uma coisa, uma cousa.

* * *

Eno sagrado, en Vigo, bailava corpo velido: amor ei, cantou Martim Codax, o jogral, cortesão de Fernando terceiro, rei de Castela. Sim, ele padeceu de coita por uma dona de corpo delgado, por uma dama fremosa, que bailava junto à fonte dos cervos, com suas amigas. Também ele viu a lua em um poço, e perguntou, na hora da alvorada, onde estava a sua amada. Martim Codax, o trovador? Sim, Don Pelegrin, apenas sete canções nos deixou, descobertas por Pedro Vindel, livreiro em Madri. Jamais saberemos quantas outras escreveu. Mia irmana fremosa, treides comigo a la igreja de Vigo, u é o mar salido: e miraremos las ondas. Alba, água, areia, onde está a minha sereia? Só vejo o céu alvo, algo de algas, mágoa de mágoas. Vera, Vênus de Vigo, molher marinha, eu a sonhei saindo das águas, nudez até o umbigo, nascendo da espuma-esperma do mar de vidro. E caminhei ao longo da praia, nesta manhã, praia de pedras e areia, de escuro mar piscoso sem gaivotas, e só vi a alta grama, areia, musgo, lama, areia. Sem ela, tudo é treva, pó, tudo triste treva, noite em noite dissolvida. Amigos, non poss’eu negar a gran coita que d’amor hei, ca me vejo sandeu andar, e com sandece o direi: os olhos verdes que eu vi me fazen andar assi. Fui à igreja de São Marcos, meu amigo, no escarpado vicariato, fazer uma oração à Virgem Santa Maria. O sol carmim crestava a pele e a longa ladeira ensejava ladainhas de romeiros de passagem para Compostela. A igreja é velha, grave, austera, lascas e vincos em pedra e madeira; suas lajes e vigas, capitéis e colunas, seus altos arcos alvos, já desgastados, como a fé dos mundanos, digo ao senhor, meu bom amigo. Ao fundo, na nave escura, em delicado nicho, sob o alvadio baldaquim, vi a imagem da Virgem Santa, Dona Mística, em seu manto azul: os olhos tristes de coração trespassado, o rosário que quase escorrega das mãos, a coroa de estrelas. Cantei ora pro nobis, ora pro nobis, e passei o dia todo a rezar em ladainha, a rezar em ladainha, a rezar em ladainha, à Celeste Regina, pela paz de minha alma, pelo sossego de meu coraçon. Com’ ome que ensandeceu, senhor, con gran pesar que viu, e non foi ledo nen dormiu depois, mia senhor, e morreu: ay mia senhor, assi moir’eu! A noite é negra como o ébano, a graúna, é negra como o ônix, a perla escura, é negra como a pele de minha amiga, a malvada mourisca, a ladina saladina, sarracena, mas amo-a endõado. E caminhei de volta para a cidade, Don Pelegrin. E que farei eu, pois non vir’ o vosso mui bon parecer? Non poderei eu mais viver, se me deus contra vos non val. Mais ar dizede-me vos al: senhor fremosa, que farei?
(Fragmento inicial do conto Dona Virgo, que publiquei no livro Romanceiro de Dona Virgo. Rio de Janeiro: ed. Lamparina, 2004.)

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