quarta-feira, 30 de junho de 2010

DONA VIRGO (FINAL)

O mund’ é torvado e, de pran, cuidamos que quer fiir. Tudo treva, pó, tudo triste treva, só o solo seco, chão sem erva; estou só, sem Deus, sem dom, sem nada. Eu, Gil Eanes, em Finisterre tendo chegado, findo o canto, digo adeus, sem pranto. Vem, esposa-irmã, filha-esposa-irmã, ama de minha alma, agora é o começo do fim: noite em noite dissolvida, consumida, fado todo consumado, saga contada, fava masca-da, sabre partido, dados lançados, ciclo cumprido, caso encerrado: o fim da picada. Aqui é o fim do mundo, Fisterre, Finis Terrae. E agora, o que dizer de mim, de nós, do irado sultão otomano e sua airada odalisca, airosa corista, toda ajaezada, flores de amaranto nos cabelos, escura écharpe de zibelina no pescoço de passarinha? O que dizer do tempo passado, escuna azinhavre no mar de marfim, tempo de pletora, de carmim, de índigo gozo em leito alecrim? O que falar daquilo que foi flor, fera, faca, e hoje é fezes, menos que fezes, reles nada? O que pensar, após tanto pesar? O que dizer do que em mim fizeste, de como me feriste, e sugaste, sem lagunas de lágrimas, escumas na face, como algures o orvalho na nervura das folhas?

Os óio da cobra verde, hoje só que arreparei, se arreparasse há mais tempo, não amava a quem amei. Mas agora, pelo sim, pelo não, tanto faz, tanto fez, que não vales um conto de réis, um vintém, valete de ouros ou sete de paus, e sei de outras cem, ali além, que valem mais. E não cortarei os pulsos, e não beberei veneno, e não poderei apertar contra as têmporas o gatilho. Aqui é o fim do suplício, James Finícius, e voltarei ao velho lar, ao início, livre do vero vício, do pubendo precipício. Sim, santa, voltarei a Sampa, de cara lavada, barba cortada, de terno e gravata, e, new yuppie third world, poderei abrir um bingo, bordel ou boteco, e gastar a grana na gruta da Greta Garbo de plantão: Sharon Stone, Demi Moore, Winona Ryder, ok, gurias, podem vir, façam fila, uma por vez, a meus braços amargos. Que tal? Poderei, ainda, talvez, virar um boêmio francês, ou bardo inglês, ou sábio chinês, usar saiote escocês, beber minha urina, fazer-me de poeta, de profeta, declarar-me o messias, virar-me do avesso, até tornar-me a sombra de mim. O que achas? Em nada mais creio: de tudo e de todos me despeço, e digo apenas isto, epitáfio do que fui: um homem sincero, de poucos amigos, que escreveu seu nome nas areias de Vigo. Sim, é o fim. Réquiem. Descanse em paz. toquem os sinos. Close, ação!


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Intermezzo: E depois, ah, sim, meu amigo, e depois, o que houve em nossa história? Onde eu estava? Já perdi o fio da moela, da medula, da medusa, da meada, fio de Ariadne no labirinto do minotáurico racconto, texto bestial de autor animálico olímpico. Mas logo eu me acho, e junto os meus cacos, lascas, trapos, tragos e trecos e retomo o conto porque eu quero contar. O conto é o osso da prosa, é osso e sangue, carne e sangue, é só sangue, célere no corpo da prosa, irrigando as palavras-células, suas inervações. O conto é o canto que não se canta, que só se ouve sem ouvir, música de papel que encanta sem cantar. Sim, Don Pelegrin, pouco fiquei em Finisterre; nem quis ver o farol, as altas dunas e a pedra de abalar. Entejado com tudo, de tudo enojado, segui para Madri, de carro, com o amigo Arnaldo Gandolfi, que encontrei por acaso e me ofereceu carona, para por fim ao caso. Lá chegando, comprei passagem para o Brasil, terra de palmeiras e papagaios, de tristes heróis e larápios. Antes de embarcar, porém, fui a um cibercafé, próximo ao aeroporto, tomar uma boa cerveja irlandesa, e, por um cômodo vício de recirculação, acessei a internet e abri a minha caixa postal, onde li um e-mail da beladona, que por mim esperava em vicus sacorumdixit a diva — por astúcia de Carlos Cazali, diabos o levem ao décimo círculo do Hades.

Arrenego de quem diz que o nosso amor se acabou, ele hoje está mais firme do que quando começou. It’s a long way. Só vi o avião decolar após a quarta dose, meu amigo, da janela oval da taberna, e pensei em suas asas flamejantes de sol, em seu caudaloso rastro no céu, no denso cortejo das nuvens. Paguei a garçonete, deixei o jornal amassado sobre a mesa e corri para chamar um táxi. Já no centro de Madri, fiquei só o tempo preciso para alugar um carro, comprar comida e um par de brincos de prata, mimo para a mina mimada. Tomei a estrada, em seguida, e, caminho inverso, reverso da moeda, avesso do vento, pensei: aquele que ama, na face da amada vê o divino, e, em amá-la, ama o divo, Odin-Osíris-Krishna-Oxalá, e se diviniza. Deus é tudo só amor. E assim me guardei.


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Gran prazer viron os olhos meus. O ponto de partida é o ponto de chegada. Voltei a Vigo, meu amigo, e lá vi Vera, a moçela alvura-densa-escura, olhos vivos de gazela, seu tênue torso em fulvo quimono sobre a tanga. Ah, moça-mel, dama das miçangas, dos muiraquitãs, mascando mariscos na praia cor de prata sob o céu nimboso. E nós olhamo-nos, olhar molhado, e éramos olhos sem pés nem bocas, depois fomos mãos e braços sem olhos, e, por fim, fomos apenas lábios. Ao rugir da procela, caminhamos pela orla, e segui a leona hermosa, de longa sedosa cabeleira, até o seu chalé perfumado a almíscar, máscara balinesa na porta, luminária de crochê no teto e largo leito acolchoado. Ali entrelaçados, as cortinas cerradas, o quimono no biombo de treliças, eu e ela fomos uma só carne, um só espírito, ao som das ondas do mar de Vigo.

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