segunda-feira, 28 de junho de 2010

DONA VIRGO (IV)

Céu pavão-alvura-esperma. Casas baixas e antigas ao longo do caminho. Moças galegas de xales e lenços sobre as madeixas, manadas de bois, pedras, arbustos, um pássaro azul-safira, odor de estrume, não toca um sino. Aqui é Pontevedra, meu amigo, lugar de maravilhas várias, valha-me a virgem, milagres ou miragens, tão belas e raras como a pena do faisão, o reflexo da lua em espátula de prata ou máscara chinesa em verde jade esculpida. Após léguas, a língua já seca, o corpo à míngua, cheguei à Vila Vasco, mio caro fratello, onde vi um velho cego tocando mudo violino, seus olhos brancos, em pele negra rugosa, plenos de solfejos e melancolia; crianças viçosas de rubor violeta e longos cachos corriam atrás de um porco em latão coroado; e um rapaz sandeu, quase nu, com tonel-capacete e vassoura-alabarda, terçava armas com sua sombra. Ninguém dizia meia palavra, e eu, mudo fingido, não disse patavim. Tendo encontrado — Cristo louvado! — um bom albergue, por puro acaso, fiz menção, com sinais, do que queria: e recebi, para o almoço, um prato de feijões e legumes com forte pimenta, grossa fatia de pão e vinho. depois, deitei-me na dura cama de ferro e li mais alguns trechos da Imitação de Cristo, até a hora de dormir:

O verdadeiro sinal de virtude sólida e de grande merecimento é combater os movimentos desordenados da alma, e desprezar as sugestões do demônio. Não te perturbem as imaginações que te ocorrem de qualquer espécie que sejam.

No dia seguinte, fui à praça, e lá vi mulheres que bailavam como loucas no gramado; um palhaço vestido de frade com peruca de mulher que virava cambalhotas; e um pipoqueiro ruivo que imitava um macaco. Nos degraus da igrejinha, velhas beatas surdas e mudas recitavam sem voz suas preces, e num banco de pedra da praça um senhor inglês de terno xadrez, bigodes pequinês e cachimbo sherloquês lia o jornal em branco com o seu pince-nez. E eu pensei: sim, pirei, estou maluco, doidão, gira, dedéu, insano. o que é isso tudo? Que diabos!? Nisso, um fox terrier mordeu a batata da perna do velho cego, que o espancou com o violino; Sherlock Holmes fez strep-tease, ficou nu para as beatas, o palhaço vestido de frade foi dançar com as moças e o pipoqueiro de repente ficou com os olhos serenos de quem alcançou a iluminação. Levantei-me para voltar ao albergue quando a niña judia de Tétuan passou por mim, numa metálica Yamaha verde-escura, e fez sinais para que eu sentasse na garupa. Fiz isso, sem saber por quê, e ela voou na estrada, como o arcanjo da trombeta do juízo final.

Ah, maga magana, mana marrana, onde me levas, madre magriça, mina macanja, onde me levas, mirrada morgana? Vais a Belém, a Jerusalém? Talvez a Jafa, Haifa, Arava, Mizpe Ramon? Baruj ata Adonai, eloheinu melech aulam, acher quidechanu vemits votab, benatanlam Torat hemed, baruj ata Adonai, Adonai ehad. Ah, meraviglia! Miraculo! Estamos chegando, enfim, signorina? Diga para mim, moça-de-jasmim! Seus longos cabelos, como revoam ao vento! Baruj elohenu, baruj adonenu, baruj malkenu, baruj moshienu, atau elohenu, atau adonenu, atau malkenu, atau moshienu, atau sheiktidu, abotenu lefaneha, ektoret azamim. Ah, morena macabéia, meninha da Judéia, herética hebréia, levas-me ao Jordão? Ou ainda, quem sabe, ao rei Salomão? Salame, salaminho, salmão, Josafá, Josafá, e a rainha de Sabá! há, há, há! Seu cavalo fogo-fátuo, faceira-fogosa-feiticeira, vai ao reino de Judá? Shema Israel, Adonai eloheinu, Adonai ehad. Então, mio caro fratello, ela parou sua macchina malva móbil, bem em frente a uma velha capela. Apeei, o sol a pino, e entrei no lugar santo, na pedra viva de São Roque, Kyrie eleison, Chryste eleison, Kyrie eleison. Mal pude ver suas imagens e vitrais, amigo romeiro, e digo de boa fé: ao fundo, sobre o altar, per nostro senhor, vi a cabeça do Salvador, lacerada de espinhos, inclinar-se à direita. Pater noster qui est in coelis, santificetur nomem tuum. Caminhei nessa direção, o coração tumultuado, os membros trêmulos, e encontrei, numa meseta de mogno, um arcaico Macintosh, que irradiava rubra luciferina auréola. sentei-me em frente ao mefistofélico bruxedo, inicializei, e, para meu espanto, surgiu a seguinte mensagem, na tela de cristal líquido:
o G r Q n D z

Estava em sonho? Bêbado sorumbático, sonâmbulo lunático? Num átimo, sem pensar, apenas abri o envelope, prenda cabalística da ninã de Tétuan e retirei o talismânico CD; coloquei-o no drive e comecei a limpar a winchester do vírus. And has thou slain the jabberwock! Come to my arms, my beamish boy! O frabjous day! Callooh! callay!

— Ah, júbilo de júbilos, alegria-oh-aleluia, está morto o Ogre-que-Não-Diz!

— Foi você, meu rapaz?

— O quê?

— Ah, não! ele?

— É, sim, ah, esse tem culhão!

— Parabéns, querido! Vá com Deus. Passe bem.

— Esse é o herói? Duvido.

— Não foi, não.

— Esse João-ninguém, brasileño, fracote, Zé-bosta, borra-botas?

— Não foi, não!

— Foi, eu vi!

— Fui eu, eu, eu, que matei o Ogre-que-Não Diz!, disse um garoto imberbe.

— Meu filho, ah, filho meu!

E todos falavam, gesticulavam, cantavam e rezavam, e muitos agradeciam a São Roque e a São Tiago. Quando pude ver-me livre da turba, de seus dentes amarelos, de seus olhos baços e bocas tortas, de suas toucas, lenços e cachimbos, de seus grossos dedos que tocavam em minhas roupas, como quem toca um grifo, elfo, silfo ou basilisco, saí correndo, o mais célere que pude. foi então que aconteceu uma aventura de maravilha, mas isso eu não vou contar. Digo apenas que parti de Pontevedra, e voltei a pôr o pé na estrada, rumo a Compostela.

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