sexta-feira, 9 de julho de 2010

UMA CONVERSA COM HORÁCIO COSTA (IV)

CD: Você teceu reflexões sobre o ofício poético em diversas composições, como Os Jardins e os Poetas. Em sua opinião, qual é o sentido da criação literária numa época que cultua o monoteísmo do mercado (Garaudy), a tecnologia e os meios de comunicação de massa? Pintar quadros, escrever poemas serão ofícios inúteis, míticos ou semilendários como a falcoaria, a heráldica ou a edificação de câmaras mortuárias piramidais?

Horácio: Não se pode pedir ao poeta que não poetize, ao escritor que não escreva, ao pintor que não pinte, ao escultor que não esculpa, ao artista visual que se cegue, ao realizador de filmes que não filme, ao bailarino que não dance, ao ator que não represente, ao arquiteto que não projete etc. O sentido de produzir arte é o próprio do fazê-lo, não o de agregar sentido a este fazer. Veja bem, não se trata da defesa da arte pela arte dos simbolistas, distante do vulgo e perto de umas musas que hoje estão contando os centavos e os minutos para cobrar o seu cachê. Não se trata de defender, por outro lado, o fazer mecânico, alienado e alienante. Nem do elogio do fazer por mero descarrego hormonal. A arte é um assunto sério, que se justifica sozinho e que acontece há muito tempo, e que não se faz para o futuro nem para um tempo histórico qualquer; é mesmo fora do tempo que se faz dentro dele e para ele, como se para oferecer-lhe um seu trasunto, um seu equivalente, paradoxal: ars longa vita brevis, vaya. Por outro lado, o fragílimo jogo narcísico da produção da arte no mundo monoteísta de mercado, como você diz, é um risco que apenas algum artista que não conheça nada de psicanálise pode cair: hoje em dia, na arte séria, o narcisismo acabou, foi substituído pela crítica, e isto não quer dizer que a exploração da subjetividade, por tanto tempo satanizada, tenha se obnubilado, ela me parece objetivamente mais importante do que nunca. Só os realmente pior preparados diante da linguagem crêem que o Deus-Mercado é algo mais do que um tigre de papel. Acho que até ele, o tão decantado deus de pés de bode, ou o bezerro de ouro, sabe disso, mesmo que odiando esta consciência. Por isso ainda se produz e se recebe e se analisa arte.

O Mercado, que continuamente tenta conspurcá-la para afirmar-se, constantemente termina por respaldá-la, por homenageá-la, por puxar o saco dela, que continuamente lhe diz, você lá eu aqui, eu sei bem qual é a tua, você não me engana, sacana. Claro que seria melhor ter idéias mais assentes, como até há algumas décadas, um corpus cuja centralidade e autoridade fossem referenciais para um grande número de agentes sociais, entre eles os artistas, e melhor seria, em poucas palavras, não ter que lidar com a ameaça ou o fantasma constante do mercado e com a melancolia que isso necessariamente gera, e não ter sequer que continuamente afirmar o óbvio, como o faço agora, e simplesmente esquecer essa bem infeliz conjunção. Mas não é assim. Então, faz-se arte porque sim, e se ela virar ruína, que pena, mas tanto dá; a Biblioteca de Alexandria queimou-se, Pequim foi incendiada por Gêngis Khan, os maias regrediram misteriosamente para a selva, mas nós sabemos de Hipatia e Plotino, e o mundo dos mandarins virou tema para Marco Polo e Matteo Ricci, e hoje já se podem ler as estupendas estelas comemorativas na América Central. Talvez essa empreitada decodificadora não possa continuar indefinidamente devido ao quadro que nos encontramos, mas não temos saída: do bisonte grafado em Lascaux ao livro deixado na Lua, sempre apostamos contra Mammon e suas aparições e tentações. A poesia, pois, tem um lugar e uma dignidade específicos nesta estratégia milenar de resistência, nesta aposta cega. A arte do vento, como a chamo, sempre deu um jeito de ecoar. E segue ecoando. E se depender de nós, pois seguirá enquanto der, não? Se tudo virar pó, enfim, a poesia não sofrerá nada, porque não é material, e uns extraterrestres avançadíssimos e com cabeças parecidas a abóboras de água e com antenas cor-de-rosa, gelatinosamente identificarão nossos sussurros pelas dobras do universo através de seus sensores sensibilíssimos, e como serão tão superiores, saberão como separar o joio da palavra mamônica do trigo da poesia, e talvez venham a dizer que uma surpreendente forma de vida se desenvolveu num planeta polvorento e escasso, uma forma de vida que sabia expressar-se poeticamente.

CD: Em ensaio publicado na revista Coyote, Eduardo Milán comenta o descompasso entre linguagem e realidade. As palavras são insuficientes para a representação do mundo? Cabe ao poeta insistir na tentativa da mímese ou buscar a criação de novas realidades, quer dizer, realidades estéticas (e através delas influir na mudança do mundo atual)?

Horácio: As palavras nunca cobriram a realidade, elas inventam outra, ou outras, que está, ou estão, em contato com a realidade dita tangível pelos nossos pobres e insuficientes sentidos. A correspondência entre realidade e linguagem nunca foi direta, nem simples. Derrida fala disso bem em La Mythologie Blanche, no famoso ensaio La Pharmacie de Platon. Thot pode matar ou curar; depende da dose e do acerto. Não há muitas regras, de fato, para estabelecer a distância entre a criação de linguagem e sua recepção, ou melhor dito: o seu cabimento, num determinado momento histórico. O que pensaram os contemporâneos de Dante sobre a Divina Commedia? Nunca se saberá. Dante era antipático aos gibelinos, foi expulso de Florença, tinha um imaginário pedófilo e seria um cripto-fascista, em termos da ideologia que circulava há cinqüenta anos — preferia o imperador germânico a seus fellow citizens. Mas escreveu, ou melhor: fez, no sentido de realizar, a maquete mais acabada de uma forma mentis, que hoje nós chamamos de medieval. Quantos de seus contemporâneos se reconheceram nela, à época da sua escritura? Nunca se saberá. Então vejamos: há, sim, hoje, uma grande aceleração na superfície do lago, uma turbulência que parece digna de um macroliquidificador de tudo, menos de si mesmo, mas eu quero crer que é só aparencial, embora nós a vivamos como Realidade, ou pelo contrário, essa turbulência é tão estrutural que só a podemos perceber como aparência, por que a nós humanos não é dado o entendimento completo (e por que seria?).

Michio Kaku, um matemático japonês, fala de dez dimensões detectáveis e que quiçá venham a ser mensuráveis (quando?). A turbulência da nossa realidade se somará às de todas as demais, potencializada? E se o "natural" da ordem for a desordem, no sentido da turbulência? Então, se for assim tudo sempre foi e será eminentemente turbulento. O melhor é não se assustar com isso, começar a encarar o caos como fator condicionante daquilo que pensávamos ser ordem, e condicionante para a criação de outras utopias futuras, e tratar de viver a nossa dimensão turbulenta como se fosse — e parece ser — o normal das coisas, ainda que tenhamos momentos de suspensão, alguns deles induzidos pela poesia, ou pela linguagem em função artística, que criam uma outra vertigem, a da arte, que podemos crer ou não que nos compensam desta sina cósmica. Também é importante que incorporemos de vez que só na aparência algumas obras de arte que nos parecem "monumentos", no sentido anterior da palavra, parecem-nos estáveis, uma vez que a crítica já faz tempo que se encarregou de dissecar essas brilhantes superfícies canônicas que eram as obras de arte até o século passado, e hoje a inteligência crítica ensina ao leitor, ao espectador, ao aluno médio que a instabilidade é talvez um dos condimentos mais importantes para a artisticidade da obra de arte, que só pode viver quando recebida por alguém preciso, individual, e daí instável, e não simplesmente fechada por uma interpretação, um valor, um sentido únicos, que almejam à estabilidade, à autoridade, à morte, em resumo.

Um comentário:

  1. cuore che ama
    As curtas horas de Romeu
    Autor: Orácio Felipe
    Sinopse:
    - Mas que dor as horas retarda de Romeu? - Não ter aquilo que, se o tivesse, as deixaria curtas.

    www.clubedosautores.com.br

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