sexta-feira, 2 de julho de 2010

UMA CONVERSA COM ARNALDO ANTUNES (II)

CD: Na trilogia Nome, você uniu diferentes suportes, como o livro, o CD e a fita de vídeo. Essa estratégia de união entre imagem, som e movimento, já prenunciada pela poesia concreta, está presente em sua pesquisa na área da poesia digital. Qual é a importância do computador para o seu trabalho?

Arnaldo: Tem uma importância enorme. Quando comecei a lidar com poesia visual, eu mesmo fazia as artes-finais, com fotocomposição ou caligrafadas, o que faço até hoje, pois sou seduzido pela idéia da entonação gráfica, de correspondências entre os aspectos entoativos da fala na escrita. Pois bem, nessa época, eu me lembro que toda a arte-final era feita com paste-up, fotolito. Hoje, basta apertar um botão. É uma facilidade enorme fazer a arte-final. Foi também através do computador que comecei a fazer animação. Para mim foi uma descoberta: a palavra em movimento na tela é uma ocorrência espacial, mas que se manifesta também no tempo, então tende para a música, embora sendo imagem. Em produção gráfica, o computador oferece recursos que antes não tínhamos, e esse novo repertório é muito sedutor, porque, muitas vezes, você passa a criar em função dele. Certas idéias poéticas você desenvolve especialmente para determinado efeito digital. Hoje, existe um repertório de recursos muito rico, e poucas soluções de linguagem que dêem conta dele. Muita gente acaba usando os recursos gráficos do computador de maneira injustificada, apenas pelo fascínio do efeito em si, o que acaba sendo algo pobre. No início da poesia concreta, havia uma linguagem muito avançada e meios muito limitados; hoje vivemos o contrário, temos poucas respostas de linguagem adequadas ao rico repertório tecnológico disponível. Agora, uso o computador em pelo menos uma etapa de quase tudo o que produzo — para a edição de música, produção de textos, procedimentos de colagem, algo que me atrai muito. Mas nunca trabalho só no computador, tenho necessidade de ver materialmente a coisa no papel: então, imprimo uma versão, corrijo à mão, volto a digitar, salvo e imprimo várias versões, comparo... Sempre há um híbrido, um trânsito entre o artesanato manual misturado com a tecnologia. Com a música, existe uma possibilidade muito interessante, que não existia anteriormente, de você compor a partir dos sons. Hoje, você grava um determinado conjunto de timbres ou sons ou sílabas, qualquer coisa, e a partir daí você pode ir compondo aquilo, construindoestruturas com os sons pré-gravados, depois acrescenta um instrumento, ou mais. Isso é algo muito novo em relação aos métodos de composição. Algumas pessoas já vinham fazendo isso antes, mas com dificuldade enorme, com edição de fita cortada a gilete, uma coisa muito mais complicada. E só o fato de você ver na tela o desenho dos sons a serem editados já transforma inteiramente a maneira de criar.

CD: A preocupação com a visualidade do poema está presente em toda a sua obra, e se manifesta na escolha da tipologia de letras, na diagramação, na inserção de fotos e desenhos, na aplicação de recursos da informática. Como você encara uma recente declaração de Marjorie Perloff criticando o uso de tais recursos na poesia concreta, o que, segundo ela, teria levado a uma comunicação mais fácil, de apelo publicitário?

Arnaldo: Eu teria de ler o depoimento da Marjorie, que é uma crítica que respeito muito. Gosto de seu livro Momento Futurista, que foi traduzido pelo Sebastião Uchoa Leite. Seria leviano comentar sem ter lido a declaração dentro do contexto. Agora, pelo que você me relata, dá para perceber uma certa resistência em relação ao aspecto direto da comunicação, como ela ocorre, por exemplo na publicidade. Eu não tenho nenhum problema com isso. Hoje, nós vemos muita coisa na publicidade que foi (e é) influenciada pelas áreas de criação artística, seja da poesia concreta, seja do cinema, da música pop, ou de outras áreas. Eu mesmo,que publiquei Palavra Desordem, um mês depois abri o jornal e vi o anúncio de um condomínio que era um negócio assim: "A moda mudou", em letras grandes, aí você virava a página e via do que se tratava. Por coincidência ou não, é a reprodução quase literal de uma das frases de Palavra Desordem ("A moda já mudou"). Esse livro é todo inspirado no slogan, no ditado popular e em vários tipos de registros arquetípicos, esses registros de frases-feitas, claro que esvaziadas de sua finalidade comercial ou ideológica, transformadas em outro tipo de discurso. Acho que não deve haver purismo nesse trânsito com a publicidade ou com outras formas de discurso mais mundanas. O que me influencia não sãoapenas os poetas, mas também a bula de remédio, o gibi, o outdoor. Agradam-me mais essas coisas que estão vivas no mundo do que isolar a poesia numa redoma intocável.

CD: Em As Coisas, e também em peças de seus outros livros, como Tudos e 2 ou + Corpos, você praticou o poema em prosa, com ênfase nos substantivos, em frases curtas, diretas, buscando a surpresa e o estranhamento a partir da observação de fenômenos da realidade imediata. Comente essa linha de criação.

Arnaldo: Este é um procedimento que surgiu com a idéia do livro As Coisas, e tem alguns outros textos nos outros livros com esse tom de discurso, quase pedagógico, digamos assim, que foi inspirado no olhar infantil, no jeito como as crianças fazem associações inusitadas. Busquei também dizer aquilo que é óbvio, só que de um óbvio tão óbvio que a gente não vê por estar acostumado com outro tipo de registro. Um óbvio que atinge a estranheza, no sentido aparentemente oposto. Então, tem esse procedimento de olhar de um jeito puro, virgem, quase que tentando subtrair um pouco da cultura para olhar as coisas de um jeito mais inusitado. Ao mesmo tempo, há essa obsessão pela definição. Um desejo de definição, de foco. Um desejo de olhar prismaticamente o mesmo objeto, sob muitos ângulos, pela sua função, forma, cor, cheiro, tamanho, como no texto final de As Coisas, que diz: "As coisas têm peso, massa, volume", CD.. Muitos dos textos a que você se refere pegam um objeto e tentam cercá-lo de olhares múltiplos, com essa obsessão pela idéia de definição. Claro que a definição absoluta é impossível, seria algo assim como o Aleph do Borges, para ver sob todos os pontos de vista possíveis, simultaneamente. É algo impossível, mas sou movido por esse anseio. As Coisas é de certo modo um compêndio pedagógico dos objetos do mundo sob esse tipo de olhar e sob essa ânsia de definir tudo de uma maneira prismática. Tem a ver com a crise da palavra dicionarizada e também com a teoria de Wittgenstein sobre o objeto complexo. Se você pega um copo, por exemplo, você pode chamá-lo de água, ou de copo, ou de cilindro, ou de vidro, ou de transparência.... daí a importância do contexto. Tem um pouco disso tudo nesse tipo de procedimento.

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