terça-feira, 27 de julho de 2010

FANTASMAS NÃO BEBEM COCA-COLA (V)

Mar nupcial de árvores e pianos, ninfa submerge na água, escreve mandalas de branca espuma na areia alucinada.

Meninos brincam. Bola vermelha avança no horizonte de pássaros e nuvens com formato de estranhos animais com chifres e corcovas.

A senhora obesa fecha o jornal após beber seu chá do Ceilão, abre as longas asas de harpia e voa num grito único, escuro.

Fréderic sorri com olhos de lua sanguínea.

A moça quase nua mergulha no esmeralda vivo das ondas como serpente do mar, seus braços dissolvem-se na água, os cabelos metálicos viram reflexo do sol e o corpo todo reconverte-se em verde céu.

O polonês tem medo do mar. Ele se afasta do sonoro pugilato das vagas que batem nas rochas com a ferocidade de um mamute.

Prefere pintar sóis de partituras com as mãos de esqueleto, dançar com os meninos na areia ou sonhar com música chinesa e otomanos.

Onde é possível divisar luzes mediterrâneas, perceber o azul que atravessa o verde como espátula e flagrar uns seios molhados.

Este é um quadro de Delacroix, ópera plástica com sopranos em nuances imprecisos e uma orquestra noturna de plantas marinhas.

A felicidade é uma vida medíocre, pensou.

Longe das gazetas e salões, dos cachimbos e monóculos em balcões de teatros apodrecidos, do abade insano e da condessa meretriz.

Longe do próprio vômito.

George emerge entre círculos concêntricos de espuma em uma concha de Botticelli e chama o polonês, que por fim adentra a água.

Súbito, ela afunda a cabeça risonha e brinca de afogar Fréderic, para depois salvá-lo com palavras de melodrama e teatro de bonecos.

O pálido músico contempla num segundo o estranho prelúdio em teclas brancas e negras sob o olhar cabalístico da Morte.

* * *

(Primeira Ária de Lúcia)

— Wolf, eu já te contei os meus pesadelos?

The lunatic is on the grass / The lunatic is on the grass / Remembering games and daisy chains and laughs / Got to keep the loonies on the path.

Eu vejo cenas de minha infância, como num cinema mental.

The lunatic is in the hall / The lunatic are in my hall / The paper holds their folded faces to the floor / And every day the paper boy brings more.

Vejo bonecas de pano sem cabeças. Vasos de violetas e avencas, no jardim. Cacos de vidro e um canário morto, na sala de jantar.

And if the dam breaks open many years too soon / And if there is no room upon the hill.

Ouço vozes nuas, das paredes da casa. Sinto o cheiro da compota de pêssego e do casaco de naftalina. Ouço aquela velha canção de ninar.

And if your head explodes with dark forbodings too / I’ll see you on the dark side of the moon.

A casa estava morrendo, e eu não sabia. Ela apodrecia aos poucos em sua lepra surda, solitária.

The lunatic is in my head / The lunatic is in my head / You raise the blade, you make the change / you re-arrange me ‘till I’m sane.

Eu fugia para o quintal, e brincava com meus jogos de crueldade. Decepava cabeças de lagartos, sorrindo para a líquida explosão verde.

You lock the door / And throw away the key / There’s someone in my head but it’s not me.

Fazia sopas de flores para as fadas, que nunca vieram para o jantar. Olhava o céu e sonhava com futuras tatuagens, uma para cada estrela.

And if the cloud bursts, thunder in your ear.

Gostava de correr na chuva, longe do cheiro de bebida, longe dos gritos amarelos. Um dia, mamãe não gritou mais.

You shout and no one seems to hear.

Eu queria ser estrela de cinema, sabia? Usar aqueles vestidos apertados, colecionar carros de luxo, ter uns olhos verdes de enfeitiçar.

And if the band your’e in starts playing differents tunes.

Depois que papai fugiu, nunca mais perdi um filme de Nastassia Kinski.

I’ll see you on the dark side of the moon.

6 comentários:

  1. Cláudio,

    a dimensão que vc cria poderia fornecer um material poético para toda uma vida.

    Nem sei em qual das partes comecei a me evolar.

    Abraços!

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  2. Wilson, grato. Escrevi o Romanceiro de Dona Virgo ao longo de cinco anos. Foi um livro muito difícil de escrever. Sou suspeito para falar do que criei, mas há algumas frases de que gosto. Abraço,

    CD

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  3. Sinceramente Claudio, isso é uma das coisas mais bonitas que li nos últimos tempos. Você precisa reeditar urgente. Eu quero um exemplar pra deixar junto aos meus diletos de cabeceira. beijo!

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  4. Nydia, agradeço pelas palavras! O Romanceiro saiu em 2004, por uma pequena editora do RJ, que não fez distribuição em livrarias nem trabalho de divulgação junto à imprensa. Os exemplares do livro ficaram amontoados no estoque da editora até o vencimento do contrato. Fiqui muito aborrecido com essa experiência, e agora só aceitarei republicar o Romanceiro por uma editora grande, que saiba distribuir e divulgar, caso contrário, prefiro aguardar a edição póstuma (rsss). Mas vou publicar outros contos do livro aqui e vou ver se arrumo um exemplar da primeira edição pra você! Beso,

    CD

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  5. Oba! :)

    Mas é mesmo complicado todo este processo de publicação, distribuição e divulgação de um livro, não é Claudio? Sempre acreditei que as pequenas editoras seriam a solução para este mercado tão complexo, mas pelos depoimentos que tenho ouvido, a realidade é bem outra. Que coisa.

    Não sei por que me lembrei agora deste poema da Kátia Borges:)

    “fazendo poesia, vamos, os delicados
    sendo triturados pela grande máquina
    (até que Deus nos salve)” bjo.

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  6. Nydia, há editoras pequenas sérias, como a Lumme, a Annablume, a Travessa dos Editores, entre outras. Para poesia, o problema de divulgação e distribuição em livrarias sempre houve. Mas com livro de FICÇÃO é outra história. Aí, se o editor é competente, é muito mais fácil distribuir. O problema é que quem publicou o Romanceiro foi uma editora inexperiente, amadora, tanto que inscreveu o meu livro no Portugal Telecom trocando o nome do autor (ou seja, em vez do meu nome, colocou o do Nelson de Oliveira!). Idem, em alguns sites de vendas de livros, o meu nome foi trocado! E o próprio Nelson de Oliveira sofreu com isso, pois o livro dele foi atribuído a... Nelson Rodrigues! (rsss), até agora está assim no site Submarino... isto se deve, provavelmente, a releases mal escritos, por redatores incompetentes, que sequer se deram ao trabalho de olhar para as CAPAS dos livros para conferir o nome correto dos autores. Após muito sofrimento, cancelei o meu contrato com a Lamparina, quando venceu o prazo de cinco anos, e só republicarei o livro por uma editora que saiba distribuir em livrarias e divulgue direito, caso contrário, posso esperar mais dez, quinze ou trinta anos para relançá-lo. É o melhor trabalho que realizei até hoje, e merece um tratamento mais profissional. Beso,

    CD

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