quinta-feira, 29 de julho de 2010

SEBASTIÃO NUNES ESCREVE SOBRE O ROMANCEIRO DE DONA VIRGO

AUTOR EXPLORA OS LIMITES DA LINGUAGEM

A literatura de ficção do século 20 pode ser dividida, grosso modo, em dois grandes grupos de escritores: os contadores de história e os pesquisadores de linguagem. Claro que está longe de mim tentar estabelecer blocos monolíticos de autores de uma ou outra tendência. Temos dezenas de bons e ótimos prosadores transitando com a maior desenvoltura de um lado para o outro, aos saltos e cambalhotas. Talvez os maiores exemplos desses grupos hipotéticos sejam, de um lado, James Joyce e, do outro, Marcel Proust, Thomas Mann ou ainda Franz Kafka. Já nos exemplos fica clara a superioridade numérica dos contadores de história sobre os pesquisadores de linguagem. Também no Brasil a tendência joyceana sempre esteve em minoria, mesmo porque num país de poucos leitores há o esforço natural para atrai-los através de narrativas lineares e de mais fácil assimilação. Não foi, contudo, o que aconteceu na virada de século. Incrivelmente, há uma crescente efervescência de autores voltados para a construção (ou para a desconstrução) da linguagem – e o mais recente deles, e dos mais criativos, originais e instigantes, é Claudio Daniel, com seu Romanceiro de Dona Virgo. Poeta com três ótimos livros publicados, Claudio partiu para uma prosa radical, em que – paradoxalmente – usa como referência e suporte alguns dos principais clássicos da língua, tanto na biografia como na obra. De fato, dos seis textos que compõem o livro, quatro se estruturam em torno de Camões, Gregório de Matos, Cláudio Manuel da Costa e Cruz e Sousa. Um outro toma como mote o romance entre George Sand e Chopin, enquanto o último retorna à época dos trovadores, para entremear à intrincada narrativa poemas em português arcaico, quando a língua se consolidava. Nesse nível de construção, em que a prosa ficcional é pretexto para a exploração ao máximo do potencial da língua e das estruturas narrativas, não se pode esquecer os que o antecederam entre nós, e cujos nomes só o valorizam, especialmente Guimarães Rosa, Haroldo de Campos e Paulo Leminski (via Catatau). É uma vertente riquíssima e da maior importância em nossa literatura. Ao lado de textos que se propõem mais narrativos, como o que conta uma hipotética aventura de Camões em Macau, no capítulo do mesmo título, o leitor vai encontrar textos de invenção radicalíssima, como Gavita, Gavita, em que Daniel mergulha na própria linguagem da loucura, numa construção densa e estranha, “entrecortada de pausas, silêncios e claridades súbitas”, com escreveu no posfácio Maria Esther Maciel. E também de textos em que, como destacou Sérgio Sant’Anna na orelha, “um jovem guerrilheiro, vestido de mulher, se refugia num mosteiro beneditino e vê Deus, e Ele é azul”, numa história que, apropriando-se de trechos de Gregório de Matos e do Padre Antônio Vieira, ecoa os momentos mais violentos da ditadura militar brasileira, séculos depois. O Romanceiro de Dona Virgo é um livro múltiplo e complexo. Desses que exigem tempo, argúcia e experiência na leitura da melhor literatura, e agora não apenas da ocidental, porque o romanceiro de Claudio Daniel nos remete a todos os tempos e a todos os povos, com sua multiplicidade de culturas e costumes, como se neste livro se reedificasse, mais uma vez, a Torre de Babel, em toda a sua extraordinária multiplicidade de linguagens.

(Resenha publicada em 2004 no jornal O Tempo, de Belo Horizonte.)

Em tempo: encontrei um pacote em casa com dez exemplares da primeira edição do Romanceiro. Se alguém estiver interessado em adquiri-lo, escreva para o meu e-mail, claudio.dan@gmail.com.

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