CD: Quadragésimo (1999) traz peças inspiradas em episódios da revolução francesa, da cultura chinesa e de sua própria saga familiar. Nestas composições, habitadas por personagens como Marat e Wang Wei, há um sentimento de desconforto em relação à história, certa melancolia ou ceticismo em relação aos projetos utópicos. Ao mesmo tempo, celebra-se o corpo, a dimensão física do amor humano. Esta é a epifania possível, numa era de sombras?
Horácio: Sim, a história nos pesa com muito mais frequência do que o corpo, que nos permite escapar dela, vê-la, na explosão sensória dele, como um processo perfeitamente labiríntico. Na era das utopias, a história era não apenas redimível, mas também epifanável: caminhávamos para um mundo de liberdade, de felicidade universais, só que ele estava no futuro, e todos trabalhando sob a égide dos escolhidos — no mais das vezes, auto-escolhidos — para nos guiarem, pois, chegaríamos lá apesar dos tropeços. Esta narração ou este projeto, de origem fundamentalmente religiosa, ruiu aos poucos, e ainda está ruindo sob os nossos olhos. Hoje, funciona como catalisador de certos discursos para a, ou de, massa, sejam eles expressamente políticos ou não, e que têm o seu lugar no concerto da realidade tão difícil que vivemos para que, enfim, as coisas não descarrilhem de repente, como um tsunami de barbárie insalvável, o que pode parecer por certo algo imoral dizer, mas é fato. Não creio, entretanto, que a poesia contemporânea seja o melhor lugar para dar-lhes guarida. Pessoalmente tenho uma boa exposição a ruínas: sempre me senti congenial a elas, e de novo, se esta sensibilidade já existia para mim antes de sair do Brasil, que dizer do fato de ter vivido aos pés de civilizações desaparecidas ou mutadas?
Uma anedota: na primeira vez que fui a Nova Iorque, cheguei desde a Guatemala, horas depois de haver visitado Tikal, na selva do Petén. Em 1978. Quando vi pela primeira vez o skyline novaiorquino pensei: que belas ruínas não darão estes arranha-céus. Não quero parecer agoureiro, mas ao que tudo indica a nossa civilização, da qual Manhattan é, em muitos sentidos, o ícone máximo, está ferida de morte, porque somos muitos, porque não nos queremos, porque nossos recursos não são infinitos e porque o homem talvez não consiga não repetir grandes desastres periodicamente, para depois passar para uma melhor construção e percepção da realidade. Não prego o apocalipse, nem tenho certeza de que o que virá será apocalíptico no sentido bíblico ou no que se imaginava sucederia no contexto tão fantasmagórico da Guerra Fria; talvez simplesmente comecemos de fato a desacelerar globalmente e a entropia conquiste novos espaços, contra o projeto de um mundo organizado pela razão capitalista triunfante, que hoje está armada de uma arrogância totalmente descabida, se não francamente tanática.
Pois bem, o amor corpóreo, não o consumo do corpo alheio como produto de mercado mas o encontro físico e também espiritual entre os seres humanos, ainda oferece um bálsamo, mesmo que cercado das ameaças virais contemporâneas, contra esta erosão constante da realidade sob o império de um imaginário vinculado a valores de mercado. Nos últimos anos passei a valorizar cada vez mais o amor espiritual, e creio que devo dizer isso porque eu desconfiei dele por muito tempo, erroneamente considerando-o como um subproduto da cultura. Neste sentido, foi um crescimento, que veio com a experiência de mortes próximas, e talvez do amadurecimento que sofri em função do regresso ao Brasil. Mas a sensação de melancolia, tão própria da civilização ocidental, não pode abandonar a ninguém que observe o que está acontecendo nos mais diferentes quadrantes e culturas, dificultando a permanência da fé na capacidade da nossa civilização responder aos problemas que ela mesma criou. Agora, crer na vida é maior do que crer no humano e na nossa civilização precisa; esta é uma das certezas do, digamos, pós-humanismo atual. A vida não é nossa; nós somos dela, e ela é muito maior do que nós imaginamos, com as nossas meta-narrações encolhendo sobre nossos corpos como se roupas de aluguel debaixo da chuva e depois da festa. O corpo — e o espírito do corpo — ficará maravilhosamente exposto ao air-du-temps quando os ilhoses por fim arrebentarem.
Horácio: Sim, a história nos pesa com muito mais frequência do que o corpo, que nos permite escapar dela, vê-la, na explosão sensória dele, como um processo perfeitamente labiríntico. Na era das utopias, a história era não apenas redimível, mas também epifanável: caminhávamos para um mundo de liberdade, de felicidade universais, só que ele estava no futuro, e todos trabalhando sob a égide dos escolhidos — no mais das vezes, auto-escolhidos — para nos guiarem, pois, chegaríamos lá apesar dos tropeços. Esta narração ou este projeto, de origem fundamentalmente religiosa, ruiu aos poucos, e ainda está ruindo sob os nossos olhos. Hoje, funciona como catalisador de certos discursos para a, ou de, massa, sejam eles expressamente políticos ou não, e que têm o seu lugar no concerto da realidade tão difícil que vivemos para que, enfim, as coisas não descarrilhem de repente, como um tsunami de barbárie insalvável, o que pode parecer por certo algo imoral dizer, mas é fato. Não creio, entretanto, que a poesia contemporânea seja o melhor lugar para dar-lhes guarida. Pessoalmente tenho uma boa exposição a ruínas: sempre me senti congenial a elas, e de novo, se esta sensibilidade já existia para mim antes de sair do Brasil, que dizer do fato de ter vivido aos pés de civilizações desaparecidas ou mutadas?
Uma anedota: na primeira vez que fui a Nova Iorque, cheguei desde a Guatemala, horas depois de haver visitado Tikal, na selva do Petén. Em 1978. Quando vi pela primeira vez o skyline novaiorquino pensei: que belas ruínas não darão estes arranha-céus. Não quero parecer agoureiro, mas ao que tudo indica a nossa civilização, da qual Manhattan é, em muitos sentidos, o ícone máximo, está ferida de morte, porque somos muitos, porque não nos queremos, porque nossos recursos não são infinitos e porque o homem talvez não consiga não repetir grandes desastres periodicamente, para depois passar para uma melhor construção e percepção da realidade. Não prego o apocalipse, nem tenho certeza de que o que virá será apocalíptico no sentido bíblico ou no que se imaginava sucederia no contexto tão fantasmagórico da Guerra Fria; talvez simplesmente comecemos de fato a desacelerar globalmente e a entropia conquiste novos espaços, contra o projeto de um mundo organizado pela razão capitalista triunfante, que hoje está armada de uma arrogância totalmente descabida, se não francamente tanática.
Pois bem, o amor corpóreo, não o consumo do corpo alheio como produto de mercado mas o encontro físico e também espiritual entre os seres humanos, ainda oferece um bálsamo, mesmo que cercado das ameaças virais contemporâneas, contra esta erosão constante da realidade sob o império de um imaginário vinculado a valores de mercado. Nos últimos anos passei a valorizar cada vez mais o amor espiritual, e creio que devo dizer isso porque eu desconfiei dele por muito tempo, erroneamente considerando-o como um subproduto da cultura. Neste sentido, foi um crescimento, que veio com a experiência de mortes próximas, e talvez do amadurecimento que sofri em função do regresso ao Brasil. Mas a sensação de melancolia, tão própria da civilização ocidental, não pode abandonar a ninguém que observe o que está acontecendo nos mais diferentes quadrantes e culturas, dificultando a permanência da fé na capacidade da nossa civilização responder aos problemas que ela mesma criou. Agora, crer na vida é maior do que crer no humano e na nossa civilização precisa; esta é uma das certezas do, digamos, pós-humanismo atual. A vida não é nossa; nós somos dela, e ela é muito maior do que nós imaginamos, com as nossas meta-narrações encolhendo sobre nossos corpos como se roupas de aluguel debaixo da chuva e depois da festa. O corpo — e o espírito do corpo — ficará maravilhosamente exposto ao air-du-temps quando os ilhoses por fim arrebentarem.
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