quinta-feira, 22 de julho de 2010

FANTASMAS NÃO BEBEM COCA-COLA (I)

O sol é música em Palma de Maiorca.

Fréderic sonha com a estranha irmã que lhe trazia doces e narcóticos.

Com a face terrível e angelical da mãe em Varsóvia, num domingo de canhões e baionetas.

George vela o sono do polonês e canta para ele uma pequena ária de concerto, com uma voz infinita de soprano e máquina de costura.

Depois, chama as crianças que faziam pouco das ondas, afundando as cabeças rubras na água como cavalos-do-mar.

Seremos felizes aqui, longe das loucuras de Paris, pensou, com um copo de vinho tinto e o leque de papel-da-china.

Estou aqui para amá-lo e cuidar de você, sou tua cadelinha de seda, teu guarda-chuva, teu pássaro de estimação.

Seremos felizes, longe de Monsieur Méprise e Madame Désespoir.

Viveremos juntos para sempre, eu para você, você para mim, mon petit dieu, mon joyau mélancolique.

As crianças correm de novo para o mar, onde encontram um gigante africano.

Elas olham fascinadas para o ancião, de longa barba e cabeleira, que diz palavras bizarras e agita colares de ossos e guizos.

George grita novamente, Maurice, Solange, voltem para cá, vamos para casa, está na hora do almoço, já é tarde, já é tarde.

Sim, mamãe, elas correm em direção ao guarda-sol, o negro continua as invocações e o sol permanece rútilo sobre as verdes águas espanholas.

Fréderic imagina o seu último recital para a Dama Sem Face.


* * *

Il faut être moderne, pensou Lúcia ao atender o celular, naquela manhã, vestida de tatuagens.

Wolfram dizia coisas obscenas a ela, nessa hora sonolenta em que os jasmins não são coelhos correndo em direção ao arco-íris.

A moça nua ria alto e seu riso misturava-se ao canto cego do jazz singer entre pilhas de revistas e ursinhos de pelúcia degolados.

Com uma touca nos cabelos, segurava o cigarro de canela, tragando devagar; depois, amassou a bituca no cinzeiro em forma de cisne.

Pegou o alicate e o vidro de esmalte para fazer as mãos e os pés, disse tchau amor e começou o jogo estratégico de lay out.

Ela, que sonhava com praias australianas, passou o batom devagar, nos lábios finíssimos, e depois pintou os biquinhos dos mamilos.

Então, escolheu a lingerie mais esperta e menos discreta, sentou-se para o longo ritual das meias e enfim vestiu o conjunto azul-turquesa.

Pronto, agora só faltava a escova nos cabelos e um rápido olhar no espelho antes de pegar o ônibus até a agência de publicidade.

No caminho, o chiclete com sabor de menta e um romance água-com-açúcar para passar o tempo.

Depois de alguns minutos, fechou o livro e olhou pela janela o muro com grafites de mísseis e caveiras, o cemitério, o oceano das ruas.

Pensava em Wolfram. Seu nome, sim, tem algo a ver com lobos, e foi tirado de uma ópera de Wagner.

Ela pensava no seu Lobo Mau como um sonho estranho.

O modo delicado como segurava suas mãos; o olhar de ave de rapina ou esgrimista.


A maneira como a despia, como se lidasse com pincéis e tinta plástica; como se bordasse figuras de triângulos e círculos coloridos.

— Vou ser uma Loba, uma Loba, Lua Negra de Lilith, ela pensava. Então, cuspiu o chiclete e desceu do ônibus, apressada.

Olhou para o relógio, oito horas, e correu como louca, de salto alto, sombrinha cor damasco e bolsa de couro na altura da cintura.

Até a Torre Norte do Paulista Work Station: para nova jornada de doze horas de telefonemas e reuniões com o senhor diretor.

Bater o cartão, retocar o batom, apertar o botão do décimo andar e abrir a porta de vidro da agência, onde alguém de óculos escuros e camisa amarela canta Lucy in the Sky with Diamonds.

(Fragmento inicial do conto Fantasmas não bebem coca-cola, de meu livro Romanceiro de Dona Virgo.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário