sábado, 3 de julho de 2010

UMA CONVERSA COM ARNALDO ANTUNES (III)

CD: Em vários de seus livros, há poemas que trabalham, de maneira consciente, com a linguagem e o imaginário das crianças. Esse processo foi influenciado por sua própria experiência com os filhos? O que essa pesquisa trouxe para o seu trabalho?

Arnaldo: Acho que sim, muita coisa vem da observação de como eles respondem, pensam, e algumas frases são literais. Por exemplo, tem uma frase que é da minha filha Rosa, quando ela tinha três anos. Foi ela que ilustrou o livro, porque quando percebi que havia essa influência do “sotaque” do pensar infantil, eu tive a idéia de convidá-la. Fui dizendo cada texto e ela ia fazendo as ilustrações, ficou muito interessante. O texto é uma coisa, a ilustração é outra, mas a relação do texto com a ilustração cria uma terceira idéia que sempre dá um atrito bacana. Fiquei muito espantado com o resultado. Um dos poemas desse livro é uma frase literal dela: "Dentro da boca é escuro". Esse é um ready-made de que me apossei, assim como numa canção minha com a Marisa Monte, Beija Eu, adotei o jeito como as crianças pequenas falam, com essa inversão ou subversão sintática, tipo "pega eu" ou "leva eu". Claro, isso na canção foi transposto para uma relação amorosa adulta, mas tem algo da afetividade infantil. Outra música que fiz, que está no disco Ninguém, chamada O Nome Disso, tem um refrão que fala "como é que chama o nome disso?", que me fez essa pergunta. Esses são alguns exemplos de apropriação mais literal de que me lembro, mas de uma maneira geral a maneira como as crianças costumam fazer analogias se aproxima muitas vezes do pensar poético. O Oswald de Andrade tem um poema muito bonito que diz: "aprendi com meu filho de dez anos / que a poesia é a descoberta / das coisas que eu nunca vi", que é coerente com o seu famoso "ver com olhos livres".

CD: O seu trabalho ficou mais experimental, depois que você saiu dos Titãs?

Arnaldo: Não sei dizer. Não é uma avaliação que eu possa fazer estando de dentro. Creio que não exista uma linha tão precisa entre o que é experimental e o que não é. Quem lida com música popular está lidando o tempo todo com redundância e novidade em diferentes graus, mas eu tenho ânsia de estar sempre experimentando, de fazer pesquisa de linguagem. Desde a época dos Titãs já tinha essa preocupação, tem várias músicas em que isso aparece com mais evidência; então, é difícil fazer uma avaliação. Sem dúvida, tem um trabalho claramente experimental que é o Nome. No momento em que saí dos Titãs, queria fazer algo muito diferente do que tinha feito com eles, para deixar explícito o motivo de minha saída. Saí para fazer um outro trabalho, que envolvia livro, vídeo e CD, tentando juntar coisas que até então fazia separadamente: a música nos discos e a poesia nos livros, ou a poesia visual em outros lugares. Quis juntar tudo isso numa outra linguagem que é o vídeo, com a inserção da palavra em movimento. Essa experiência, que foi muito sedutora naquele período, continua sendo hoje, apesar de não ter feito outros trabalhos nessa área, por falta de tempo. Mas acho que esse é um território de pesquisa muito fértil. Esse trabalho, por sua natureza híbrida, tem uma carga claramente experimental, mas acho que todos os meus discos têm, em maior ou menor grau, uma busca de experimentação, de estar fazendo coisas novas. Ao mesmo tempo, minha música tem um caráter que pertence à própria matéria em si, a música popular, para tocar no rádio, que faz parte de uma tradição que envolve um grau de repetição e assimilação de formas de massa. Tem toda essa mistura, e portanto não sei se a minha produção ficou mais ou menos experimental desde que saí dos Titãs. Procuro não repetir aquilo que já fiz. A cada disco, tento fazer algo que seja um desafio de linguagem, não uma repetição do que já sei fazer. Aí, não teria graça para mim, nem para o público, para a mídia, para ninguém.

CD: Como está o panorama musical brasileiro hoje, e, em especial, como está o rock and roll? Que compositores e intérpretes chamam mais a tua atenção?

Arnaldo: Ah, tem muita coisa, acho que a música popular brasileira tem uma tradição muito rica. A tradição da poesia cantada é muito sofisticada. Apontar nomes é sempre complicado. Agora, há muitos grupos que admiro: outro dia, vi pela primeira vez, uma banda de hip hop chamado Záfrica Brasil, e fiquei extremamente impressionado. Eles têm um tipo de divisão de texto totalmente maluco, muito interessante, fiquei fascinado. Foi um dos trabalhos mais empolgantes que ouvi nos últimos tempos. Mas adoro o Carlinhos Brown, Marisa Monte, Cássia Eller, Lenine, Nação Zumbi, Planet Hemp. Eu me interesso pelo rap, pelos Racionais. As coisas hoje acontecem em várias direções, a novidade ocorre em muitos lados, não há porque a gente pensar o futuro por uma só face. Citei esses nomes mais recentes, mas tem também a produção do Caetano, do Gil, do Tom Zé, Luís Melodia, Benjor, João Gilberto, tudo isso continua me interessando muito, assim como alguns dos artistas dos anos 80, como os Paralamas, Titãs, Frejat, Barão Vermelho, Lobão, existem muitas coisas interessantes em várias áreas que despertam a minha atenção e me surpreendem.

CD: Você acredita que a programação atual das rádios e da televisão reflete a riqueza e a diversidade da música brasileira?

Arnaldo: Eu acho que a gente vive uma crise séria nessa música mais hegemônica, que faz sucesso no rádio. Há uma crise da indústria fonográfica e uma situação cada vez mais difícil nas relações dela com as rádios. É necessário que o rádio se democratize um pouco mais, e revele a variedade que se produz no Brasil. A gente vê muita produção interessante ficar presa ao estigma dos independentes, à música underground, que não toca no rádio. E não há motivo para isso. Acho que existe um descompasso muito grande entre o que realmente faz sucesso no rádio e a grande variedade de coisas boas que não têm espaço. Estamos chegando a uma situação insuportável. De uma forma geral, as programações das rádios são muito limitadas, e um tanto cegas em relação à enorme variedade musical do país. Acredito que há também uma subestimação da capacidade de assimilação dos ouvintes. O público está muito mais apto para a novidade do que querem fazer crer as pessoas que ditam a programação.
CD: Quais são os seus projetos para o futuro?

Arnaldo: Estou fazendo um livro novo, com a artista plástica e fotógrafa Márcia Xavier, que é um diálogo entre imagem e palavra. Trabalhamos há mais de um ano nesse projeto. No começo, fazíamos tudo por e-mail, ela mandava uma imagem, eu respondia com um poema, ou uma frase, e isso foi propiciando um diálogo muito fértil. A gente vem trabalhando no projeto gráfico há uns meses. O livro deve sair no começo do ano que vem. Gosto desse tipo de diálogo entre códigos, e no caso é uma situação delicada, porque é muito difícil você estabelecer uma relação entre texto e imagem que não caia na mera ilustração. A intenção do projeto é criar um pensamento, uma afinidade estrutural ou isomórfica, que transcenda a relação do texto ilustrado ou da legenda. Achar esse registro foi um trabalho envolvente, estou gostando muito de fazer. Além disso, vou a Roma no início de outubro, participar do festival RomaPoesia. Fui convidado para fazer uma performance, numa noite dedicada à poesia brasileira, junto com João Bandeira, Cid Campos e Lenora de Barros. Em novembro, vou fazer uma exposição de caligrafias em Buenos Aires, no Centro de Estudos Brasileiros, e participar de uma noite de performances organizada pelo Reynaldo Jiménez, da revista Tsé Tsé. Tem também o projeto de um DVD que abrange várias áreas da minha produção, sendo realizado aos poucos pelo Tadeu Jungle. Tem registros de shows, gravações, performances, entrevistas, gravação de clipes, entre outras coisas. Fora isso, continuo fazendo os shows da excursão do Paradeiro, meu último disco, lançado no ano passado, e estou começando a pensar num próximo disco para gravar no ano que vem.

CD: Você concorda com a tese do fim das utopias? O conceito de vanguarda, em sua opinião, ainda tem atualidade?

Arnaldo: Acho que não é possível, hoje, você pensar num futuro que tenha uma só face. A novidade acontece muitas direções. Esta é uma época de diversidade e de projetos mais individuais. A possibilidade de um movimento coletivo voltado a uma única direção não existe mais, tal a diversidade de manifestações com as quais a gente convive. Acho que permanece tendo validade, como herança das vanguardas, o espírito de busca, de estranhamento, de renovação de formas, de experimentação. Esse espírito das vanguardas é importante para qualquer manifestação artística. Acredito que os próprios movimentos de vanguarda que já aconteceram continuam servindo de nutrição, continuam nos alimentando de impulsos para a criação. O que é potente em sua época continua potente em outros tempos. Agora, os caminhos se multiplicaram, eu acho inadequada a idéia de movimento nos dias de hoje. Vivemos num contexto cultural onde não vejo a necessidade de uma resposta única, na forma de um movimento.

CD: A utopia hoje é plural e multifacetada?

Arnaldo: É!
(Entrevista pubicada em 2003 na revista Et Cetera.)

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