terça-feira, 19 de janeiro de 2010

UMA CONVERSA COM REYNALDO JIMÉNEZ

RJ: Começarei perguntando sobre a tua experiência, no ano passado, em um mosteiro budista e, se você achar interessante, a partir daí entrar em teu conceito de escritura de poesia.

CD: O meu interesse pela filosofia budista começou em 1990, quando estive no mosteiro zen Morro da Vargem, no Espírito Santo. Esta viagem foi motivada pelo descobrimento da poesia japonesa, e em especial Bashô, que me encantou com suas imagens precisas, breves, imprevistas: pequenas paisagens verbais construídas com poucas palavras, mas de grande intensidade e concentração (tal como acontece na pintura sumi-ê ou nos arranjos florais). Para entender melhor o que era o haicai, fui estudar o zen, primeiro nos livros (Suzuki, Herrigel), que é a maneira inadequada de compreender esta filosofia, e depois pela meditação. Esse contato mais próximo com o zen foi breve, mas trouxe-me benefícios, na vida e na poesia (não pratiquei muito o haicai, mas os meus poemas ficaram impregnados pela brevidade das linhas e pelas imagens concisas). Confesso que o tema espiritual sempre foi delicado para mim. Durante minha juventude, fui ateu e tive completa aversão a tudo o que se relacionasse com a questão religiosa; isso aconteceu devido à minha recusa da fé cristã (por sua história de inquisições, cruzadas, apoio a regimes autoritários e falso moralismo), e também pela leitura de autores como Nietzsche, Freud, Marx, que me entusiasmaram. No entanto, após a queda do Muro de Berlim e o surgimento do consenso neoliberal, senti a necessidade de buscar outros modelos de ética e humanismo, como contraponto ao processo de robotização (ou idioditazção) do ser humano.

Nessa busca, estudei muitas coisas, além do zen-budismo: doutrinas da Índia (Shankara, Ramakrishna), da China (Lao Tzu, Chuang Tzu), místicos ocidentais (Plotino, San Juan de la Cruz), alguns filósofos pouco convencionais (Montaigne, Schopenhauer), com espírito aberto, sem preconceitos. Foi o descobrimento de um oceano, de um universo com argumentos que satisfaziam minha racionalidade (muitas coisas da física, da astronomia e da psicologia remontam a este pensamento ancestral: está tudo ali nos Vedas!) e o desejo de uma ética profunda, baseada na compaixão e no cultivo da paz. Para encurtar a conversa: depois de conhecer um pouco dessas diferentes tradições, escolhi como caminho pessoal a via do budismo tibetano, o Vajrayana (talvez por ser mais “barroco”, em sua iconografia, cerimônias e práticas mântricas; brinco, o que me seduziu aqui foi o seu modo de exposição do dharma, em harmonia com a vida ocidental, e o charme irresistível de Lama Gangchen Rimpoche).

Quem ler isto talvez pense em mim como um monge, lunático ou excêntrico, o que é parcialmente verdade. Confesso, no entanto, que sou um péssimo budista, relaxado, desordenado, rebelde, indisciplinado; não recuso o vinho nem o tabaco, nem deixo de sentir paixão e fúria. Sou, desde sempre, obsessivo, contraditório, ambíguo. Estou muito longe de ser um boddhisattva. Porém, considero que estou melhor hoje do que antes, por saber conviver melhor com as confusões da mente, e tenho a esperança de seguir mais profundamente a jornada espiritual. Respondendo (finalmente!) a sua pergunta: não estive em um mosteiro, no ano passado, e sim num retiro de meditação em Tara Verde, realizado num belíssimo sítio em Minas Gerais. Foi uma pequena epifania, um breve instante de deslumbramento, e momentos como este são sempre raros, profundos e indispensáveis para seguir suportando a dor.

(Entrevista publicada na revista argentina Tsé-Tsé n. 17, em 2006)

5 comentários:

  1. Escrevi esta resposta a uma pergunta de Reynaldo Jiménez há cerca de quatro anos; relendo hoje, sinto uma reação curiosa, como se fosse outra pessoa que estivesse falando, embora seja eu mesmo. Ao longo desses quatro anos, deixei de fumar, tive nova crise de valores e hoje, confuso, busco um novo ponto de apoio. Creio que, em toda essa resposta à pergunta de Reynaldo, a frase que me defina melhor seja esta: "Sou, desde sempre, obsessivo, contraditório, ambíguo". Respeito profundamente a filosofia budista, que a meu ver ajuda a explicar, e muito, essa enorme confusão que é o mundo em que vivemos, mas declarar-me budista já não me soa sincero, porque não vivo de acordo com esse ensinamento: há concordância intelectual, mas o meu coração ainda se move por aversão, apego, desejo, raiva e outros venenos que não fui capaz, ainda, de purificar. Sou, no máximo, um companheiro de viagem, alguém que olha o caminho mas ainda não foi capaz de seguir por essa via. Permaneço no samsara, na esfera da confusão e da dor. Um dia, quem sabe, terei humildade e coragem suficientes para ingressar no grande oceano.

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  2. Gostei das tuas considerações sobre a resposta. Acho que ter aversão, apego, desejo, raiva, é ser gente... E também que a própria arte lida, ou brinca (?), com essas forças contraditórias, opostas - nem céu nem inferno, mas mundo -, que são tão características da condição humana. Talvez por isso arte seja tão apaixonante... Talvez por isso a sua 'mensagem', digamos, seja tão profunda, tão certa.

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  3. Marceli, a meta do budismo é transformar os sentimentos negativos em positivos (por exemplo, a avareza em generosidade, o ódio em compaixão, o ciúme em desapego e assim por diante). Não é fácil, não. Mas é a única forma de escaparmos ao samsara, ou sofrimento cíclico. Não é fácil, nem impossível. Um dia, quero retomar a prática, assim que a minha vida estiver minimamente estável. Beso do

    CD

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  4. É, difícil mesmo. A prática da meditação sempre esteve relacionada, pra mim, à necessidade de (como tu diz na resposta) seguir suportando a dor, não à ideia de que eu possa pará-la, fazê-la cessar... Quando me flagro estou criando expectativas de novo e, se elas não são respondidas, sofrimento. O bom da coisa é que o processo de luto depois da frustração vai ficando, com a meditação, cada vez mais fácil de ser encarado, cada vez mais curto, mais tranquilo. Mas ainda existe.

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  5. Marceli, as quatro nobres verdades e o caminho óctuplo indicam um caminho para fazer cessar a dor, o difícil é chegar lá... mesmo os monges, que passam a vida inteira nos mosteiros, experimentam a mesma dificuldade que nós. Sair do samsara não é fácil, não... beso do

    CD

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