quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

RELENDO MOI-MÊME (V)


BETTY BLUE


I

Piano, tarântula;
punho ferido
e o globo ocular
pelo desmanche
da memória.

II

(Ofélia descentrada,
banha-se em prata
de céu abortado.)

III

Paraíso clorofórmio:
inscrever o exílio
dos lábios na pele,
metalizada e muda.

IV

(Flashback)

Nereida meretriz
na gravata epitáfio;
tufos de barba
da morta madre,
como um presságio.

V

(Finale):

Ele travestiu-se
para o ofício de Perséfone,
após domar a dor.
Repousa agora
o olho único da inquieta.


PARTITURA

Perplexidade, raios de um sol

que redesenha seu centro;

essa matéria tão delicada,

ferozes epitélios da flor;

deslizando das pupilas,

revoluta, para outro mar,

após tingir o flanco da noite.

Fosse apenas o perambular

em outra relva, seria tema

de chanson; dissociada de mim,

reclinada em lua minguante,

seria musa de retrato fauvista,

excedendo o rubro tigrino.

De todo modo, um dia vou

felinizá-la em partitura.


CARANGUEJO

Aquática paisagem, faixas de areia e uma seqüência de morros, horizonte simulando música. Quiosques vendem camarões e mariscos. Meninos magros e morenos jogam bola com uma cabeça decepada. A velha senhora inglesa lê o Herald Tribune com lentes bifocais. O sorveteiro anuncia profecias apocalípticas. Há um furacão nas ilhas Fidji. Esferas planas surgem no céu de Okinawa, como pegadas de urso. Um sargento aposentado em Kansas conversa com os peixes. Não há nada que seja realmente absurdo. Tudo está escrito em algum lugar, nas Tábuas de Esmeralda, no Popol Vuh, no Livro Tibetano dos Mortos. Há quem diga que a espuma no oceano é uma linguagem. Há uma lógica irrefutável no movimento dos astros. O destino foi escrito nas palmas de nossas mãos. Tudo isso ignoro, não me diz respeito; palavras são detritos como algas, conchas ou brincos oferecidos à deusa das águas. Eu só deslizo as pinças entre possibilidades. Invisto minha carapaça vermelho-marrom, que você tanto ama, até o centro da dúvida, para encontrar minha fábula. Eu sou a imagem deste enigma, a contradição de um crustáceo.


ANTICABEÇA (II)

Lona podre, nacos de carne, torsos caindo; escuras mariposas (stukas) caindo; sirenes, uma canção.

Bater nos cornos do céu, capricórnio adoece em luzes de urina; olhos blindados; cano de fuzil apontado para a lua.

Esferas ou cilindros de cérberos; o aço grunhe; rajadas de agni; fogos-fátuos; bocas lanhadas por detritos.

Há um pássaro de três cabeças, e um só canto; uma jovem nua flutua no céu.

Emily pediu um livro (borboleta voando) de gravuras coloridas (sonhada por um chinês), com capa veludosa (desejada por um gato) e marcador de páginas (com bigodes de mandarim).

Ela, que ama peônias, biombos, nanquins, e sonha ser enfermeira num grande hospital em Berlim.

Ela, que ama o verde mar de gaivotas, e a prata que cintila nas peças do aparelho de chá.

Isso foi há quanto tempo? Havia um piano de cauda e lenços brancos, pedaços de carneiro e o pôr-do-sol.

Agora, só há o verde-prata, ou verde-escuro, verde-panther; na boca do dragão.

(Como um livro) (de figuras) (metálicas;) (imagens) (d’esqueletos) (turvos;) (surdos) (espectros) (em sarabanda,) (invernal.)

Palavras zumbem na mente; difícil caminhar com o peso do mundo. Este é um tempo sombrio, tempo da impureza, do branco mesclado ao amarelo.

Lao Tzu rumou para o Sul, montado num touro, búfalo ou grou. O guarda da fronteira pediu-lhe sua inútil sabedoria.
(Poemas do livro Fera Bifronte. Bauru: Lumme Editor, 2009)

2 comentários:

  1. Claudio,

    Bela organização. Uma (re)antologia de seus poemas, com outras peças adicionais e mais recentes.

    Gostei de rever tudo isso.

    Grande abraço,

    Ponce.

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  2. Caro Thiago, grato, caro!

    Abração,

    CD

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