quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

RELENDO MOI-MÊME (IV)

DIBUJO
(Abu Ghraib)

Uma figura
de enguia
-palavras
de carbono,
forma esquálida
de garra,
à maneira
simples
de tubérculo.
Dizer
o diamante?
Não, a demência
papilar
traçada
em rocha:
pintura
de mortos,
caligrafia
de grunhidos.
Assim
porque
ferrugem
ou azul-ferrete,
despetalar
os corvos
brancos
- tudo
é tumulto,
gritos
fanhos
na pupila.

TRAÇA

(Entre fólios de ciência antiga e espectros de monjas nuas desencarnadas.)

(Olhos opiados afundam em partituras da Outra Margem.)

(Ruge um leão hipnótico.)

(Letras sangradas na pele de carneiro. Figuras metálicas em expansão.)

(Palavras criam realidades.)

(Traças cavam sendas no papel.)

(Toda leitura é uma cicatriz.)


PULGA

Quando enlouquece na hora vermelha - surda e ascética, em gago contorcionismo - labora semeadura de pústulas, até saciar a fome.


BARATA

Seminuas vendem sabonetes e o mar azul-da-prússia de paisagens recortadas de cartão-postal. Movimentos sincopados de ancas revelam saliências epidérmicas ao som da música melíflua de oboés. Jatos d'água escorrem pela concha do umbigo sob o céu cocainado, longe de estrias e da micose que avança nos pés. O verde em alta definição da folhagem oculta o sulco espesso da cavidade e atrai suspiros plásticos, romanescos, fluindo como sangue menstrual. Súbito, assoma a logomarca com a inocência animal de uma máquina de calcular. Iates e sol jamaicano anunciam o novo capítulo da novela. Seminuas têm medo de barata.


PIOLHO

Barítono de carapaça e gravata quase lilás mergulha os olhos baços no copo de cerveja irlandesa entre cotações do mercado financeiro.(Passa uma sombra magra de seios fumantes.) Verde álcool, cogumelos e vozes graves de semblantes que suicidam a noite estrelada. Lady sings the blues para vocal e piano. Retrato de Wilde na parede e tapeçarias com toscos motivos de gnomos de barba pontuda. O business man engole nacos de carne vermelha entre chamadas ao celular e citações do Economist sobre a crise da balança comercial. Tabaco provoca câncer. Trabalho conduz à liberdade. Café com creme e canela. A metafísica do compromisso institucional. Todo homem de negócios é sério. Tem sapatos sérios de couro italiano e óculos sérios com aro de tartaruga. New York, New York. Bico de papagaio na coluna recurvada. Folders de lançamento do novo produto. Brieffings para a mídia. Um calor estival, quase Saara. Relógio digital marcando quinze minutos para Qualquer Tempo. Uma vaga sensação de arritmia (fadiga ou problemas coronários). Executivos sempre usam marcapasso, água-de-colônia e longas meias pretas.

(Poemas do livro Pequenas aniquilações, incluído na minha antologia pessoal Figuras Metálicas. São Paulo: Perspectiva, 2005.)

4 comentários:

  1. Ótimos poemas, Claudio. O business man do Piolho dá até um nó na garganta. Para onde temos "evoluido"...
    Super abraço do Chico

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  2. excelentes poemas caro Claudio, un abrazo desde Santiago de Chile

    Leo Lobos

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  3. O crítico José Arnaldo Villar escreveu o seguinte texto sobre Figuras Metálicas:

    Claudio Daniel apresenta em Figuras Metálicas o registro de sua “travessia poética”, percorrida ao longo de vinte anos de labor criativo. Comparecem aqui poemas escritos entre 1983 e 2003, incluídos nos livros Sutra, Yumê e A Sombra do Leopardo, mais o inédito Pequenas aniquilações. Este conjunto de composições revela um autor com voz própria, singular e inquieta. Dialogando com a Poesia Concreta, o Neobarroco, o Simbolismo e o Oriente, realizou uma fusão onde são evidentes as imagens sonoras, que não raro perturbam ou dissolvem o sentido aparente em curiosas associações de termos (“Água-de-serpente para esquecer jamais esta música de peles”). Os poemas são reunidos em ciclos ou séries, como se fossem peças de um quebra-cabeças ou verbetes de uma enciclopédia imaginária. Aqui, as palavras não se curvam à função passiva de apenas retratar ou traduzir o mundo das coisas, mas constituem uma realidade própria, obsessiva. Cada poema é um organismo, com rigorosa concepção estrutural, que distancia-se da lógica linear, discursiva, por meio da elipse, da analogia e da colagem semântica. Este caminho de desfiguração dos vocábulos mimetiza a perda de sentido dos valores culturais em nossa época, regida pela loucura do mercado e da mídia, ao mesmo tempo que aponta para a criação de outras realidades, por meio da poesia.

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  4. ... e o mestre João Alexandre Barbosa escreveu:

    Escrevendo sobre Mallarmé, Valéry levanta uma questão de interesse para qualquer aproximação à criação poética: a relação entre esta criação e as origens mais remotas das funções da linguagem humana.

    É que a poesia, diz ele, vincula-se, sem nenhuma dúvida, a algum estado dos homens anterior à escritura e à crítica. Encontro, pois, um homem muito antigo em todo poeta verdadeiro: ele bebe ainda nas fontes da linguagem; ele inventa "versos", um pouco como os primitivos melhor dotados deviam criar "palavras", ou ancestrais de palavras.

    Em todo o poema bem realizado, o leitor há de sentir a palavra como se ela surgisse para uma nomeação originária, transformando o que se nomeia em algo novo por força da própria nomeação, conferindo ao poeta características de um oficiante de ritual em que dominassem os poderes da memória (pela recuperação das fontes da linguagem) e da magia -pela criação de uma nova realidade que é a poética.

    Daí a importância das materialidades sonora e visual que, somente depois de organizadas num estrutura passada pelos rigores da sintaxe e da semântica, impõem um outro tipo de racionalidade que é o poema. É a qualidade encantatória da poesia que faz pensar no poeta como herdeiro daqueles primeiros homens que inventavam palavras para a nomeação espantada do mundo.

    Creio que a poética desta antologia de Claudio Daniel, vinte anos de uma travessia, tem como dominante aquela qualidade. O que significa dizer que o leitor, lendo este livro, é convidado a se deixar envolver por tudo o que é reverberação de som e imagem, abdicando da objetividade e mergulhando no tumulto das sensações gravadas na pele das palavras.

    Em todos os poemas, extraídos de três livros publicados entre 1992 e 2001 (Sutra, Yumê e A sombra do Leopardo) e do inédito Pequenas aniquilações, passa uma inquietação que, sendo o registro daquele jogo de encantamento referido, mantém os textos nos tensos limites do indizível.

    Por onde são convocados todos os valores sensíveis da linguagem mas, atenção! sob o controle estrito de uma consciência acesa pelos valores da história, seja a circunstancial, seja a da própria linguagem da poesia.

    Daí ser possível, sobretudo nos primeiros textos, realizar os entrecruzamentos de culturas pela utilização literal de trechos de obras orientais.

    É, mais uma vez, a lição que se pode extrair do trabalho verdadeiro com a criação: o encanto da poesia, como queria Valéry ao chamar de Charmes o seu grande livro de 1922, e como está neste livro, é sempre dependente do trabalho com que se enfrenta o próprio enigma da invenção.

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