sábado, 26 de dezembro de 2009

UMA RESENHA DE FERA BIFRONTE







André Dick


O barroco – ou neobarroco – é conhecido por sua pretensa ilegibilidade, e E. M. de Melo e Castro, autor do posfácio do mais recente livro de Claudio, Fera bifronte, texto publicado também na antologia do poeta em Portugal, Escrito em osso, escreve:

“A poética do escritor, ou do autor, é a mais remota e obscura. A problemática que leva o autor a escrever o seu texto é fechada e só acessível ao leitor através de hipotéticas tentativas de penetração naquilo a que muitos chamaram “o mistério da criação”. Essa poética é muitas vezes também pouco clara para o próprio autor, no momento mesmo da criação.”

Lendo este fragmento do posfácio – que traz, por outro lado, dados muito interessantes para se entender a obra de Claudio Daniel –, há um elemento a ser debatido: o de o crítico considerar que a poética do autor, caracterizada pelo chamado barroco, é remota, obscura, fechada, pouco acessível ao leitor. A argumentação está de acordo também com aquela utilizada por Hugo Friedrich para caracterizar a lírica moderna. Mais estranho ainda seria essa poética ser pouco clara para o próprio autor. Não me parece adequada essa argumentação tanto no caso da poesia moderna quanto no caso de Claudio Daniel. Sua poesia é elaborada e baseada, por sua própria formação, como leitor da poesia concreta, de poetas simbolistas, da tradição oriental, por exemplo – que não nublam a linguagem, a não ser que se considere que a utilização de signos em uma sintaxe mais entrecortada seja inacessível ao leitor – na linguagem. Mais adequado parece ser entender que na poesia de Claudio haja uma “cadeia de significantes”.

Para Severo Sarduy, o barroco “consiste em obliterar o significante de um significado dado, substituindo-o não por outro, por distante que este se encontre, mas por uma cadeia de significantes que progride metonicamente e que termina circunscrevendo o significante ausente, traçando uma órbita ao redor dele, órbita de cuja leitura – que chamaríamos leitura radial – podemos interferi-lo”. O neobarroco, segundo Claudio Daniel, em sua introdução à antologia Jardim de camaleões, não é uma vanguarda stricto sensu – ou seja, não é um movimento considerado apenas possível no “primeiro mundo” ou um movimento a ser copiado por autores de uma tradição pobre –, à medida que “não se preocupa em ser novidade”: “ele se apropria de fórmulas anteriores, remodelando-as, como argila, para compor o seu discurso: dá um novo sentido a estruturas consolidadas, como o soneto, a novela, o romance, perturbando-as”. A restrição da obra do poeta ao neobarroco parece equivocada – isso porque essas características acima podem ser vistas em qualquer poesia construtiva, com influência ou não do barroco, o que pouco importa para seu entendimento no sentido mais amplo, e encobrem seu diálogo com autores como Herberto Helder, citado na epígrafe.

O fato é que Fera bifronte expande uma poética que vinha se delineando mais sintática desde A sombra do leopardo, ou seja, mais voltada à construção de um verso contínuo, que vai se construindo tanto por enumerações (característica de certo poema moderno) quanto por idéias que adotam vários discursos.

“Tudo é cinema mental”, escreve Claudio em Estudos de anti-realidade. De certo modo, esse “cinema mental” corresponde-se com sua narrativa poética Romanceiro de Dona Virgo, que parece ser antecessora do poema Anticabeça II e da série Gabinetes de curiosidades, em que o poeta lança uma visão extremamente crítica sobre o universo contemporâneo, enfocando três ambientes: o sex shop, o pet shop e o coffe shopp, nos quais visualiza uma certa decomposição do sujeito moderno: “Aceitamos todos os cartões de crédito e os animais, como os seus donos, devem ser castrados” ou “Cabeças de executivos são caixas registradoras com um número limitado de palavras”. Essa paisagem humana ligada a um universo animal está presente também no poema Fera, que encerra a obra – a “fera” como uma metáfora que configura, sobretudo, a violência, com gestos ríspidos, desde o poema Muro. O ser humano parece se transformar exatamente nessa “fera”: “Em branco aniquilar / sua mandíbula, / aberta como fenda sexual / interrogante” (Fera). Esse ambiente de violência capta, ao mesmo tempo, um universo de animais: “palavras desventradas / da cadela” (“Escrito em osso”), “ambivalência do inseto / que se desenha íbis, / amêijoa, escaravelho, / folhas ou fíbulas, fúrias ou órbitas” (Anticabeça I), “Peixe branco, gris ou amarelo / desgarrado de sua gueldra, / no desvio das águas” (Desvio) – até a figura do corvo, presente em vários poemas.

Se há, em Partitura, referências a “raios de um sol / que redesenha seu centro; / essa matéria tão delicada, / ferozes epitélios da flor”, o certo é que na poética de Claudio predomina uma paisagem desolada, em que surge um “céu abortado” (Betty Blue), a paisagem é feita de “dissoluções” (A memória), corpos passam por um contínuo sofrimento, não só no poema “Fera” final, com sua imagética violenta, mas em outras peças igualmente fortes: “mordendo os próprios pulsos / movimenta-se, / desorientado” (Anticabeça IV); “Até consumir todo o olhar / e desfazer a pele / obsoleta” (Muro); “Paraíso clorofórmio: / inscrever o exílio / dos lábios na pele, / mentalizada e muda” (Betty Blue); “escura caligrafia / rasurando crânios”; “órgãos retirados / de corpos sem autópsia” (Escrito em osso); “Desabitar os fêmures, / os tendões / do que obceca” (A memória); “Vozes multiplicam-se; / lanhadas peles / vociferam, guturais”; “cicatrizes alinhadas / nos pulsos, em desenhos / de fetos inanes” (Paisagem-vértebra). Não há nenhuma linha da tranqüilidade mais remota encontrada em Sutra ou Yumê, seus primeiros livros, mais voltados a imagens da cultura oriental, nem também uma sonoridade mais voltada a imagens que focalizam o zen, embora em Anticabeça I haja o Lao Tzu “rumando ao Sul”.

No plano da interferência simbolista na escrita de Claudio, ao mesmo tempo, há referência a cores – numa espécie de referência a Georg Trakl – como em Escrito em flor, no qual há uma paisagem musical “onde o amarelo / dá sentido ao vermelho”, um “lábio (pétala) / submerge / em topázio-tigre”, “violetas indagam” e “cada abelha sonha / uma rosa imantada”; em Rapto, no qual “[...] a expansão do branco / bifurca-se, espraia-se / esqualidamente / do lábio ao umbigo”; em Estudos de anti-realidade, há um “vago perfume de papoulas, / até dessangrar / as pétalas / do canto”, “cristal negro, / praia negra, / papoula enegrecida”; em Anticabeça II, há um “verde-prata, verde escuro, verde panther, na boca do dragão” e o tempo é sombrio em razão do “branco mesclado ao amarelo”; em Fera”, há “passos súbitos / num deslocamento de vermelhos”, em Paisagem-vértebra, há “unhas negras, / peitos brancos”.
(Excertos de O cinema mental de Claudio Daniel, de André Dick. Leiam o texto na íntegra na revista Germina.)

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